sexta-feira, 9 de novembro de 2012

PROCESSO DISCIPLINAR - MEIOS DE PROVA - DEVER DE RESERVA E CONFIDENCIALIDADE




Proc. Nº 24163/09.0T2SNT.L1-4  TRL  7.03.2012

I – A norma constante do artigo 659.º, número 2, do Código de Processo Civil é restritiva no que à matéria do exame crítico das provas se refere, pois limita o mesmo aquelas provas de que o juiz, na altura da elaboração da sentença, cumpra conhecer.
II – O exame crítico previsto no transcrito artigo 659.º, número 2, do Código de Processo Civil é posterior e complementar daquele que se acha estatuído no número 2 do artigo 653.º, tendo, em regra, uma projecção nos autos e na decisão do litígio, em termos fácticos e jurídicos, muito menor do que a estatuída nesse segundo preceito legal.
III – Face à inexistência de qualquer regulamentação prévia para a utilização pessoal e profissional da Internet por parte dos trabalhadores da Ré verifica-se o acesso e conhecimento indevidos e ilícitos por parte da empresa ao conteúdo de conversas de teor estritamente pessoal da Apelada com três amigas e o marido/namorado, numa situação que se pode equiparar, de alguma maneira, à audição de vários telefonemas particulares (no fundo, uma espécie de «escutas» ilegais) ou à leitura de cartas dessa mesma índole, sem que, quer o remetente, como o destinatário, tenham dado o seu consentimento prévio a tal “visionamento” escrito das ditas conversas (artigos 15.º e 21.º e 16.º e 22.º dos Código do Trabalho de 2003 e 2009).
IV – O facto das referidas conversas/mensagens electrónicas se acharem guardadas no servidor central da Ré, a ela pertencente, não lhes retira, por um lado, a sua natureza pessoal e confidencial.
V – As pessoas, normalmente, quando estão em círculos privados e fechados, em que sabem que só são escutadas pelo destinatário ou destinatários presentes e relativamente aos quais existe um mínimo de confiança no relacionamento que se estabelece - como parece ser o caso dos autos -, falam à vontade, dizem disparates, queixam-se, exageram, troçam de terceiros, dizem mal deles, qualificando-os, muitas vezes, de forma pouco civilizada, “confessam-se”, afirmam coisas da boca para fora, no calor da conversa ou discussão, e tudo isso porque contam com a discrição dos seus interlocutores para a confidencialidade de algumas das coisas referidas e a compreensão e o inevitável “desconto” para as demais.
VI – Uma das inúmeras vertentes em que se desdobra o direito fundamental e constitucional da liberdade de expressão e opinião é aquela que normalmente se define como uma conversa privada entre familiares e/ou amigos, num ambiente restrito e reservado, tendo a Autora, bem como as suas amigas e companheiro, se limitado a exercê-lo, por estarem convictos de que mais ninguém tinha acesso e conhecimento, em tempo real ou diferido, do teor das mesmas.
VII – Tendo tais conversas essa natureza e não havendo indícios de que delas derivaram prejuízos de índole interna ou externa para a Ré, tendo sido desenvolvidas por uma trabalhadora com 8 anos de antiguidade e com um passado disciplinar imaculado, tal conduta, ainda que prolongada no tempo, não se reveste de uma gravidade e consequências tais que, só por si e em si, de um ponto de vista objectivo, desapaixonado, jurídico, implique uma quebra irremediável e sem retorno da relação de confiança que o vínculo laboral pressupõe entre empregado e empregador, impondo, nessa medida, a este último, o despedimento com justa causa, por ser a única medida reactiva de cariz disciplinar que se revela proporcional, adequada e eficaz à infracção concreta e em concreto praticada pelo trabalhador arguido.

ACORDAM NESTE TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – RELATÓRIO

AA, (…), veio instaurar, em 07/09/2009, a presente acção declarativa de condenação com processo comum laboral contra BB – SOCIEDADE DE MÁQUINAS AUTOMÁTICAS, LDA., (…), pedindo o reconhecimento de inexistência de justa causa para o seu despedimento, o que peticiona com as devidas consequências legais, nomeadamente:
a) A condenação da Ré a pagar-lhe uma indemnização por antiguidade, nos termos do art.º 391.º do Código do Trabalho (pela qual opta);
b) As retribuições vencidas e vincendas desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão.
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A Autora alega para tanto e em síntese a falsidade dos factos imputados em sede de processo disciplinar e constantes da respectiva nota de culpa.
Em sede de invalidade do procedimento disciplinar, invoca as seguintes irregularidades:
a) A falta de notificação escrita da Ré da decisão de despedimento, dizendo que apenas recebeu uma comunicação escrita da instrutora do processo;
b) A inexistência da descrição circunstanciada dos factos que lhe são imputados;
c) A falta de deliberação da gerência para instaurar o processo disciplinar;
d) A falta de nomeação da Instrutora do processo disciplinar;
e) A circunstância de não terem sido atendidas as diligências probatórias requeridas pela arguida/Autora na sua contestação à nota de culpa;
f) E, a final, invoca a nulidade da prova produzida pela Ré.
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Designada data para audiência de partes, que se realizou, nos termos do artigo 54.º do Código do Processo do Trabalho, com a presença das partes (fls. 66 e 67), tendo a Ré sido citada para o efeito a fls. 60 e 64, por carta registada com Aviso de Recepção – não foi possível a conciliação entre as mesmas.
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A Ré apresentou, a fls. 69 e seguintes, contestação, impugnando parte dos factos alegados pela Autora e mantendo a posição assumida em sede de processo disciplinar, concluindo pela improcedência da acção.
Juntou o processo disciplinar instaurado contra a Autora e no quadro do qual foi decidido o seu despedimento com justa causa (fls. 282 a 365).
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Foi proferido despacho saneador, com dispensa da realização de Audiência Preliminar, regularização da instância e dispensa da selecção da matéria de facto assente e elaboração da base instrutória.
Procedeu-se à realização de audiência de discussão e julgamento, com observância das legais formalidades, conforme melhor resulta da respectiva acta (fls. 299 a 301), não tendo a prova aí produzida sido objecto de registo-áudio e tendo a Autora informado nos autos acerca das actividades remuneradas que tem desenvolvido desde o seu despedimento, com a junção dos correspondentes recibos (fls. 305 a 351).
A matéria de facto controvertida foi objecto da Decisão constante de fls. 358 a 369, que não foi alvo de reclamação por nenhuma das partes presentes (fls. 370 e 371).
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Foi então proferida a fls. 376 a 391 e com data de 21/06/2011, sentença que, em síntese, decidiu o litígio nos termos seguintes:
“Pelo exposto, julgo a acção procedente, declarando o despedimento promovido pela Ré à Autora ilícito e, em consequência, condeno a Ré a pagar à Autora as seguintes quantias:
a) A importância correspondente ao valor das retribuições devidas à Autora, vencidas e não pagas desde 7 de Agosto de 2009 até ao trânsito em julgado da decisão do Tribunal, deduzido o montante das retribuições respeitantes ao período decorrido desde a data do despedimento até 30 dias antes da data da propositura da acção, se esta não for proposta nos 30 dias subsequentes ao despedimento e demais valores a que alude o art.º 390.º, n.º 2 do citado diploma, a liquidar em execução de sentença.
b) A quantia correspondente a 30 dias de remuneração base no valor de €816, por cada ano de antiguidade ou fracção, contando para o efeito todo o tempo decorrido desde 7.08.2009 até ao trânsito em julgado da presente decisão, a liquidar por simples cálculo.
d) Sobre a quantia referida na alínea a) são devidos juros de mora, desde o trânsito em julgado da sentença até integral pagamento.
Custas a cargo da Ré.
Registe e notifique”
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A Ré, inconformada com tal sentença, veio, a fls. 401 e seguintes, interpor recurso da mesma, que foi admitido como de Apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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A Apelante apresentou, a fls. 401 e seguintes, alegações de recurso e formulou as seguintes conclusões:
(…)
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A Autora apresentou contra-alegações dentro do prazo legal, na sequência da respectiva notificação, tendo formulado as seguintes conclusões (fls. 418 e seguintes):
(…)
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O ilustre magistrado do Ministério Público deu parecer no sentido da improcedência do recurso de Apelação (fls. 430 a 434), não tendo a Autora se pronunciado acerca do mesmo dentro do prazo legal, apesar de notificada para o efeito, ao contrário do que aconteceu com a Ré, conforme ressalta de fls. 437 e seguintes dos autos, onde, discordando em absoluto do dito parecer do Ministério Público, pugnou pela procedência do recurso de Apelação.
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Tendo os autos ido a vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – OS FACTOS

Foram considerados provados os seguintes factos pelo tribunal da 1.ª instância:

1. A Autora foi contratada pela Ré em 4 de Setembro de 2001, ao abrigo de um contrato de trabalho com o teor que consta de fls. 17 e que se reproduz, para exercer as funções inerentes às funções de escriturária.
2. Em 7 de Agosto de 2009 recebeu uma carta da instrutora do processo disciplinar, com o teor de fls. 20 a 26 dos autos comunicando-lhe que “a entidade patronal decidiu aplicar à trabalhadora a sanção disciplinar de despedimento da trabalhadora com justa causa”.
3. No dia 1 de Setembro de 2009 a Ré pagou à Autora a quantia total de €1.386,81 referente a créditos laborais que não especificou.
4. Em Agosto de 2009, a Autora auferia a retribuição base de €816, acrescido de subsídio de refeição no valor diário de €5,75 e de subsídio de transporte no valor mensal de €40,00.
5. Datada de 17 de Julho de 2009, a Autora notificada da Nota de Culpa integrante do processo disciplinar contra si instaurado pela Ré, com o teor de fls. 30 a 34 dos autos que se reproduz.
6. A Autora respondeu à Nota de Culpa com o teor de fls. 301 a 310 que se reproduz.
7. A Autora requereu, igualmente, a audição das testemunhas CC, DD e EE.
8. A instrutora do processo não procedeu à audição das testemunhas indicadas pela Autora, por considerar que “(...) as testemunhas apresentadas pela arguida são antigas trabalhadoras da empresa, que há mais de 3 anos não têm vínculo. Sendo a testemunha CC participante nos diálogos do Messenger que se encontra junto aos autos. Não se considera assim o depoimento das testemunhas possa trazer esclarecimentos para a descoberta da verdade material, pelo que se opta pela não audição das testemunhas”.
9. No dia 18 de Junho de 2009 a 29 de Junho de 2009, a Autora apresentou baixa médica que durou até ao início das férias.
10. Resulta de fls. 298 dos autos (processo disciplinar integrado) que o gerente da Ré comunicou à instrutora do processo que concordava com a decisão de despedimento da Autora conforme proposta desta que consta a fls. 20 a 26 dos autos.
11. Do processo disciplinar não consta a nomeação expressa da instrutora do processo por parte da Ré.

Factos não provados ou não considerados pelo tribunal recorrido:

Pode ler-se na Decisão sobre a Matéria de Facto de fls. 358 e seguintes o seguinte:
B) Matéria que não se responde por ser manifestamente conclusiva e ainda sem imputação de acções concretas e, bem assim, da sua localização no tempo e espaço:
· A Autora tinha a seu cargo várias tarefas como é comum numa empresa de pequena dimensão em que a cooperação entre os vários colaboradores é necessária para a prossecução da actividade da sociedade (art.º 3.º da contestação).
· Desde o início do ano de 2008 que a Autora era negligente na prossecução do seu trabalho, não efectuando as tarefas para que está contratada (…) (art.º 4.º da contestação - parte).
· Também a entidade patronal verificou e advertiu a arguida que tarefas que foram solicitadas não eram executadas em devido tempo (artigo 5.º da contestação).
· A entidade patronal começou a receber queixas sucessivas dos colegas da Autora porque esta não respondia às solicitações efectuadas, não fornecendo a documentação solicitada pelos vendedores (artigo 7.º da contestação).
· No entanto, a entidade patronal foi advertindo a trabalhadora que o seu comportamento tinha de ser alterado, pois estava a causar prejuízos graves à empresa (artigo 10.º da contestação).
· Os colegas queixavam-se que a Autora não os coadjuvava no seu trabalho como era sua obrigação e que os clientes também se queixavam da sua negligência (artigo 11.º da contestação).
· A Autora ouvia com arrogância a advertência mantendo os comportamentos (artigo 12.º da contestação).
· Era dever da Autora promover e executar actos tendentes para a melhoria da produtividade da empresa, tendo a Autora conhecimento desse dever, a sua conduta é a oposta.
· Tendo a Autora ainda conhecimento que tem o dever de velar pela boa utilização dos bens relacionados com o trabalho, a Autora utilizou os meios da empresa postos ao seu dispor para a prossecução de motivos fúteis ligados à sua pessoa, descurando ou não executando as tarefas para que foi contratada.
C) Factos não provados:
a) Desde o início de 2008 que a Autora não dava apoio administrativo ao vendedor e clientes, não dando apoio apresentando estes queixas.
b) Artigo 6.º da contestação.
c) Os clientes queixaram-se que diversas vezes deixavam recados à Autora e que o visado não respondia as solicitações, veio a Ré constatar que a Autora não transmitia as mensagens recebidas.
d) Artigos 14.º e 15.º da contestação.
C.1) Matéria que contém factualidade obtida mediante meio de prova ilegal e como tal se considera como não provada, sem prejuízo das expressões conclusivas que encerra:
- Artigos 19.º a 33.º; 51.º, 52.º e 54.º da contestação.”
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III – OS FACTOS E O DIREITO

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 685.º-A e 684.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660.º n.º 2 do Código de Processo Civil).
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A – REGIME ADJECTIVO E SUBSTANTIVO APLICÁVEIS

Importa, antes de mais, definir o regime processual aplicável aos presentes autos, atendendo à circunstância da presente acção ter dado entrada em tribunal em 07/09/2009, ou seja, antes da entrada em vigor das alterações introduzidas no Código do Processo do Trabalho pelo Decreto-Lei n.º 295/2009, de 13/10, que segundo o seu artigo 6.º, só se aplicam às acções que se iniciem após a sua entrada em vigor, tendo tal acontecido, de acordo com o artigo 9.º do mesmo diploma legal, somente em 1/01/2010.
Esta acção, para efeitos de aplicação supletiva do regime adjectivo comum, foi instaurada depois da entrada em vigor (que ocorreu no dia 1/1/2008) das alterações introduzidas no Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/08, e que só se aplicaram aos processos instaurados a partir de 01/1/2008 (artigos 12.º e 11.º do aludido diploma legal) bem como da produção de efeitos das mais recentes alterações trazidas a público pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20/11 e parcialmente em vigor desde 31/03/2009, com algumas excepções que não tem relevância na economia dos presentes autos (artigos 22.º e 23.º desse texto legal) – cf., quanto ao complexo regime decorrente das normas de direito transitório constantes do último diploma legal indicado, Eduardo Paiva e Helena Cabrita, “O processo executivo e o agente de execução”, 2.ª Edição, Abril de 2010, Edição conjunta de Wolsters Kluwer Portugal e Coimbra Editora, páginas 19 e seguintes –, mas esse regime, centrado, essencialmente, na acção executiva, pouca ou nenhuma relevância tem para a economia deste processo judicial.
Será, portanto, de acordo com o regime legal decorrente do anterior Código do Processo do Trabalho e, essencialmente, da reforma do processo civil de 2007 e dos diplomas entretanto publicados e com produção de efeitos até ao dia da instauração dos presentes autos, que iremos apreciar as diversas questões suscitadas neste recurso de apelação.
Também se irá considerar, em termos de custas devidas no processo, o Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26/02, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 22/2008, de 24 de Abril e alterado pelas Lei n.º 43/2008, de 27-08, Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28-08, Lei n.º 64-A/2008, de 31/12 e Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que entrou em vigor no dia 20 de Abril de 2009 e aplica-se a processos instaurados após essa data.
Importa, finalmente, atentar na circunstância dos factos que se discutem no quadro destes autos terem ocorrido, quer na vigência do Código do Trabalho de 2003, quer no de 2009 (o Código do Trabalho de 2009 entrou em vigor em 17/02/2009), sendo, portanto, os regimes decorrentes de qualquer um desses diplomas que poderá aqui ser chamado à colação, conforme os factos e questões concretas abordadas, em conjugação com as normas de aplicação da lei no tempo, o reclamem.

B – QUESTÃO PROCESSUAL

A Ré suscita nas suas conclusões a seguinte questão de índole adjectiva:
“7 – A sentença remeteu para o despacho do julgamento da matéria de facto o exame crítico das provas violando assim o legalmente preceituado, nos termos do n.º 3 do art.º 659.º do Código de Processo Civil, devendo a sentença ser rectificada.”
Julgamos pertinente, apesar da sua extensão, transcrever a fundamentação da Decisão sobre a Matéria de Facto, conforme consta de fls. 362 a 369:
Da matéria referida na alínea A):
A formação da convicção do tribunal, no que tange à matéria de facto provada, fundou-se na seguinte prova.
A matéria constante dos pontos 1 e 9 foi mostra-se assente por acordo das partes, por estar expressamente aceite pela Ré ou resultar do conjunto da alegação das duas partes analisada no seu conjunto. Sem prejuízo, as referências documentais tiveram suporte nos próprios e juntos aos autos e/ou ao processo disciplinar integrado nos autos.
A matéria dos pontos 10 e 11 tiveram suporte nos documentos aí em referência e juntas aos autos.
Da matéria referida na alínea B)
Esta alegação encerra alegação manifestamente conclusiva e/ou sem imputação de acções concretas e, bem assim, da sua localização no tempo e espaço, o que obsta à sua resposta.
Da matéria referida na alínea C)
Anotou-se que a testemunha FF fez referência à existência de queixas por parte de cliente, sem concretizar quais, quando ocorreram, a sua natureza, etc...; precisou apenas a verificação de uma encomenda que veio a ser encontrada na gaveta da Autora sem seguimento, porém, não soube precisar o conteúdo e volume da encomenda ou outros elementos; em datas que também não soube identificar referiu que: às vezes haviam esquecimentos de recados por parte da Andreia para o gerente da Ré, porém, não soube precisar a natureza dos recados; que havia clientes que referiam que a Autora era arrogante e recordou uma ou outra conversa em que a Autora gritou com um cliente, contudo, sempre sem lograr identificar o cliente, a natureza e conteúdo do diálogo em concreto, datas, etc.; que houve várias conversas entre a Autora o gerente da Ré sobre o seu comportamento, todavia, mais uma vez, sem precisar o seu conteúdo exacto, em que datas, etc.
Em súmula, este depoimento mostrou-se vago, dando apenas ideias conclusivas, sem concretização precisa dos factos em termos temporais, de conteúdo e natureza, entre outros elementos individualizadores.
Também a testemunha GG, referiu a existência de uma relação difícil com a Autora, decorrente do feitio desta e arrogância. Todavia, não identificou nenhuma conversa ou desaguisado concreto. O mesmo se diz relativamente à testemunha HH referindo que os clientes se queixavam, sem referir algum caso em concreto e situando-o no tempo.
Em conclusão, de todos os depoimentos juntos e tendo em atenção a limitação da prova documental junta e que abaixo melhor se explica, estes depoimentos mostraram-se inconcludentes porque vagos e imprecisos e, como tal, insuficientes para suportar a convicção positiva do Tribunal sobre tal matéria: prova inconcludente.
A Ré assenta a prova relativa a estes factos, como se infere da própria alegação da Ré, no teor das conversações mantidas entre a Autora e uma amiga no Messenger que se mostram juntas aos autos a fls. 84/85; 90-99; 103-139; 321-360.
Por outro lado, refira-se que a Ré não logrou demonstrar a existência do documento que invoca no artigo 6.ª da contestação, nomeadamente, a existência e conteúdo de ordem expressa proibindo e regulando a utilização dos meios informático e, especificamente de programas de comunicação. E que, ainda que a testemunha FF tenha afirmado a sua existência, o mesmo não foi junto aos autos, revelando-se claramente insuficiente esta prova testemunhal para fazer prova da sua existência e âmbito. Era necessário o tribunal coligir tal documento, aferir e analisar o seu teor.
Mas vejamos qual a valor probatório destas conversas.
Para análise desta situação, importa em primeiro lugar definir o que é o Messenger?
"O MSN Messenger é um programa de mensagens instantâneas criado pela Microsoft Corporation. O programa permite que um usuário da Internet se relacione com outro que tenha o mesmo programa em tempo real, podendo ter uma lista de amigos "virtuais" e acompanhar quando eles entram e saem da rede. Ele foi fundido com o Windows Messenger e originou o Windows Live Messenger. (...) o MSN Messenger tem "integrado ao serviço de E-mail Hotmail, vem incluso com o Windows XP. Tem como concorrente o Yahoo! Messenger, outro serviço igualmente integrado a E­-mail" (extracto de wikipedia in http://pt.wikipedia.org/wiki/MSN Messenger).
De outra busca na Internet resultou a seguinte definição:
"O Messenger é um programa de comunicação usado para trocar mensagens instantaneamente através de uma conexão com a internet. Existem outros softwares que desempenham a mesma função (ex: ICQ ComVC, etc.) mas o Messenger possui alguns atractivos, como o uso directo do NetMeeting, a transmissão de dados directamente do terminal para o micro de destino e outros mais" (in http://www.parinformatica.com.br/messenger/mess.htm).
Ora do exposto, parece não haver dúvidas de que a aludido programa, seja em que empresa for (Microsoft, YAHOO, etc.), permite a comunicação em tempo real de duas pessoas tendo como suporte a Internet e, ao que parece, tem grande divulgação.
A propósito da crescente, quase banalização da utilização e divulgação dos meios informáticos, comenta o jurista brasileiro Mário António Lobato de Paiva, in AR: Revista de Derecho Informático, ISSN 1681-5726, Edita: Alfa-Redi:
«O estreito vínculo estabelecido entre a direito e a informática tem suscitado uma série de situações que levam os estudiosos do direito a depararem-se com situações totalmente novas que requerem estudos inovadores representando um verdadeiro desafio aos profissionais do direito.
As novas tecnologias são desenvolvidas de forma veloz impedindo o devido acompanhamento simultâneo dos juristas no sentido de elaborar leis e estudos que viabilizem um regular manuseio dos instrumentos eletrónicos. Assim atestamos um abismo profundo entre o fáctico e a jurídico - e a consequente debate que isso provoca - em virtude da existência de outros e novos institutos jurídicos, pelo surgimento de realidades (o fato) antes desconhecidas; o revigoramento e adaptação de enfoques outrora consolidados sobre alicerces que se modificam permanentemente; a presença de direitos e valores que - hoje se enfrentam em outra esfera (no mundo virtual) e que requerem definições jurídicas, sejam de origem legal ou judicial.
É patente aos profissionais da área jurídica responsáveis pela busca de soluções apropriadas a reformulação dos institutos jurídicos clássicos com o fulcro de serem transplantados para outro âmbito (do mundo real, para o virtual) e assim solucionar os conflitos que ameaçam as garantias, direitos e valores em um ambiente diverso, o virtual.
As questões surgidas colocam em xeque um gama variadíssima de direitos que em algumas situações são ameaçados de violação como os direitos à liberdade de expressão, liberdade de informação, regulamentação legal, tutela da privacidade, dos direitos personalíssimos, direito de propriedade, acesso às bases digitais de dados que contenham informações sensíveis, propriedade intelectual, direitos do autor, contratação par meios eletrónicos, delitos informáticos responsabilidade civil - contratual e extracontratual directa e indirecta - dos diversos sujeitos intervenientes.»
É pois nesta sociedade tecnológica que se impõe enquadrar o referido programa MSN. Onde os tradicionais meios de comunicação como as cartas, o telefone, o fax e mais recentemente o E-mail foram sendo substituído ou utilizados a par daqueles, por programas mais rápidos que permitem uma comunicação eficaz, segura, em tempo real e silenciosa, como por exemplo este tipo de programa "Messenger".
Curiosamente, esta forma de comunicação reúne o melhor dos tradicionais meios de comunicação, a saber: é silencioso como na comunicação por missiva; é em tempo real de conversação como o telefone; permite o envio de grandes suportes documentais como no fax e ainda oferece ao utilizador a segurança de privacidade ao exigir palavras-chave como acesso a esta via de comunicação. É uma das chamadas Comunicações Unificadas, que consistem no processo no qual todos os meios e dispositivos de comunicação e mídia estão integrados permitindo que os usuários se comuniquem em tempo real com qualquer pessoa em qualquer lugar (vide http://www.3cx.com.br/voip-sip/comunicacoes-unificadas.php).
Em face do exposto, dúvidas inexistem de que este programa integra um dispositivo de comunicação, cujo conteúdo informativo é idêntico ao de uma conversa telefónica, uma carta, etc.
De que protecção jurídica goza?
É a segunda questão que se impõe.
No que se refere ao conteúdo de uma carta, de uma conversa telefónica, há muito que o cidadão comum interiorizou a confidencialidade destes conteúdos como um direito assegurado pelo Estado de Direito, em paralelo com a garantia de inviolabilidade do seu domicílio. E assim é porque em todos se guardam segredos, desabafam insultos, graçolas, etc., de acordo com a relação mantida com o interlocutor; porém, sempre na certeza que o seu conteúdo é limitado a um universo de "íntimos".
Este direito apenas pode ser coarctado - e também esta regra é do conhecimento geral -: a) na suspeita séria de prática de um crime; b) no âmbito de investigação; c) com autorização de titular de órgão de soberania, perante a recusa do titular; d) e com as limitações formais que resultam do Código de Processo Penal.
Destarte, o cidadão não prevaricador pode estar descansado e sabe que pode.
Já no que se refere à protecção da informação em conteúdos informáticos (MSN, correio electrónico, etc.) ainda há um longo percurso a fazer na sensibilização da protecção destes conteúdos por parte da população em geral. Ao contrário, o legislador, revelou-se atento ao avanço tecnológico, e consagra expressamente a protecção destes conteúdos que integra na reserva da vida privada dos cidadãos cf. arts 18.º, 26.º e 34.º da CRP.
E para o caso que aqui importa, consagra-o no art.º 212 do Código do Trabalho sob a epígrafe "Confidencialidade de mensagens e de acesso à informação".
"1 - O trabalhador goza do direito de reserva e confidencialidade relativamente ao conteúdo das mensagens de natureza pessoal e acesso a informação de carácter não profissional que envie, receba ou consulte, nomeadamente através do correio electrónico.
2- (...)"
A este propósito, leia-se Guilherme Dray «são proscritas ao empregador intrusões ao conteúdo das mensagens de natureza não profissional que o trabalhador envie, receba ou consulte a partir ou no local do trabalho, independentemente da forma que as mesmas revistam. Assim, tanto é protegida a confidencialidade das tradicionais cartas missivas, como a das informações enviadas ou recebidas através da utilização de tecnologias de informação e de comunicação, nomeadamente de correio electrónico. (...) Neste contexto, retira-se do preceito sob anotação que o empregador ou quem o represente não pode aceder a mensagens de natureza pessoal que constem do caixa de correio electrónico do trabalhador. A visualização de tais mensagens, que apenas se justifica em casos esporádicos, deve ser feita na presença do trabalhador ou de quem o represente e deve limitar-se à visualização do endereço do destinatário ou remetente da mensagem, do assunto, data e hora do envio.» In Código do Trabalho, Anotado, Almedina, Pedro Romano Martinez. Luís Miguel Monteiro, Joana Vasconcelos, Pedro Madeira de Brito, Guilherme Dray, Luís Gonçalves da Silva, 5.ª Edição, pág. 130.
Por outro lado, no número 2 da citada norma ao referir que:
"2 - O disposto no número anterior não prejudica o poder de o empregador estabelecer regras de utilização dos meios de comunicação na empresa, nomeadamente do correio electrónico", tenta o equilíbrio entre a tutela deste direito - a confidencialidade - e a liberdade de gestão do empregador.
Com efeito, «a reserva da intimidade da vida privada do trabalhador não prejudica a possibilidade de o empregador estabelecer regras de utilização dos meios de comunicação e das tecnologias de informação e comunicação manuseados na empresa, nomeadamente através da imposição de limites, tempos de utilização, acessos ou sítios vedados aos trabalhadores; sendo certo que se sustenta que a forma por excelência, para a comunicação dessas regras deve ser o regulamento de empresa» (no mesmo sentido opina Júlio Manuel Vieira Gomes, Direito do Trabalho, Volume I, Relações Individuais de Trabalho, pág. 383 citado no Ac. Trib. Relação de Lisboa de 5.06.2008 in www.dgsi.pt)
Assim, não tendo o empregador regulamentado a utilização dos meios de comunicação informáticos, permitindo o uso indiscriminado da Internet, não pode aceder a tais conteúdos sob o pretexto de os mesmos conterem informação de carácter profissional sem a autorização do trabalhador.
Neste sentido, veja-se o Acórdão acima referido do T. R. Lisboa que decide:
«Ora, no caso concreto, não foi alegado nem se vislumbra que se tenha provado que a requerida emitiu quaisquer instruções no sentido de proibir o uso privado do correio electrónico ou de que o mesmo deveria ser inequivocamente classificado, distinguido, como profissional ou pessoal ou até que tenha criado um endereço electrónico para uso exclusivamente profissional e um outro para utilização meramente pessoal do trabalhador. Afigura-se, pois, que não o tendo feito a faculdade da requerida abrir licitamente as mensagens dirigidas ou enviadas pelo requerente ficou limitada". E que tal como salienta Júlio Gomes o empregador poderá "abrir as mensagens que pode legitimamente acreditar que não são pessoais. Tal será o caso, designadamente, se não tiver autorizado o uso de correio electrónico para fins pessoais (se do contexto da mensagem não resultar, apesar disso, que ela a efectivamente pessoal - seja porque foi mesmo qualificada como tal pelo trabalhador, seja porque tal resulta do assunto ou, porventura, do remetente ou do destinatário que, é por exemplo, a mulher do trabalhador) ou se tiver criado dois endereços, um para utilização profissional e outro para uso pessoal, relativamente aquele. Parece-nos já impor-se major cautela quando o empregador autorize o uso "promíscuo" do correio electrónico. In casu, em face da matéria apurada afigura-se que estamos perante esta ultima situação. É que não tendo sido estabelecidas -como podiam ter sido - quaisquer limitações (v.g: proibição de utilização do correio electrónico para fins privados, etc.) a emissão e recepção de E-mails não se pode argumentar que a requerida podia presumir que todo o correio do requerente era profissional (de serviço)...».
A situação colocada nestes autos é idêntica.
Para além das conversas mantidas com a amiga no MSN terem um conteúdo claramente privado, a Ré não logrou demonstrar a existência de uma regulação válida dos meios informáticos de comunicação ao dispor dos trabalhadores na empresa.
Pelo exposto, tais conversas assumem natureza de prova proibida nos termos supra referidos, que o Tribunal não valora, com consequente não prova dos factos alegados nesta parte.
Se bem compreendemos a objecção da Apelante, esta entende que deveria ter sido a sentença (e não a Decisão sobre a Matéria de facto, nos termos acima reproduzidos) a valorar e a ponderar criticamente os meios de prova produzidos nos autos, atento o disposto no artigo 659.º, número 3, do Código de Processo Civil.
Tal disposição legal, que se reproduz na íntegra, para melhor compreensão do teor da regra jurídica invocada pela recorrente estatui o seguinte:

Artigo 659.º
Sentença
1. A sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio, fixando as questões que ao tribunal cumpre solucionar.
2. Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
3. Na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal colectivo deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer.
4 - No final da sentença, deve o juiz condenar os responsáveis pelas custas processuais; indicar a proporção da respectiva responsabilidade e determinar a aplicação das secções B ou C da tabela i anexa ao Regulamento de Custas Processuais, quando seja caso disso.
5. Se tiver sido oral a discussão do aspecto jurídico da causa, a sentença pode ser logo lavrada por escrito ou ditada para a acta.

Julgamos que tal dispositivo normativo não pode ser lido e interpretado isoladamente, impondo-se igualmente considerar, a montante, o estatuído nos artigos 646.º, 649.º, 650.º, 652.º, 653.º, 655.º e 657.º e a jusante, nos artigos 660.º, 663.º e 664.º, todos do mesmo diploma legal.
Importa, por outro lado, fazer notar que a lei adjectiva que aqui se perfila, em primeiro lugar, é a que emana do anterior Código de Processo do Trabalho, verificando-se, desde logo, a existência de normas especiais que regulam igualmente tais matéria no quadro desse diploma, como são o caso, no que para aqui nos interessa, dos artigos 68.º, 69.º, 71.º, 72.º, 73.º, 74.º e 75.º de tal texto legal, que tem de ser conjugados e conciliados com aqueles outros da lei processual geral e comum.
Ora, conforme ressalta dos artigos 72.º do Código do Processo do Trabalho e 652.º, 653.º e 655.º do Código de Processo Civil, é a discussão da matéria de facto que, em primeira análise (sem prejuízo de uma primeira e eventual selecção entre matéria de facto assente e controvertida, nos termos dos artigos 61.º, 62.º do Código do Processo do Trabalho e 508.º-A e 511.º do Código de Processo Civil), obriga à audição e/ou apreciação dos elementos probatórios carreados para os autos pelas partes ou a título oficioso, sendo aí que se define a essência do universo factual pertinente para a decisão da causa, em função das diversas soluções plausíveis de direito (cf. artigo 511.º, número 1, cuja filosofia de base tem, necessariamente, de ser igualmente respeitada em sede de audiência de discussão de julgamento, ainda que o mesmo se radique nos articulados das partes, nas suas declarações - depoimentos de parte - ou no depoimento das testemunhas).
Só nessas circunstâncias particulares se compreende a proferição da Decisão sobre a Matéria de Facto que, em rigor e a partir da prova constate do processo, deve abranger todos os factos alegados nos articulados das partes, com excepção daqueles que não são relevantes para o litígio, só podem ser provados por um específico meio de prova - verdadeira grandeza, documentos autênticos - ou cuja prova apresentada esteja vedada por lei - cf., por exemplo, os artigos 554.º, número 2 e 616.º e 617.º do Código de Processo Civil.
Tal Decisão Fáctica tem, por outro lado, de ser fundamentada, conforme é exigido pelos números 2 a 5 do artigo 653.º do Código de Processo Civil, não sendo despiciendo realçar o que o aludido número 2, parte final, estatui a esse respeito: “...analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do tribunal”.
Logo, é aqui que, originária ou, pelo menos, preferencialmente - caso tenha ocorrido antes a selecção da matéria de facto, entre aquela já assente e a que carece ainda de instrução e/ou discussão - e antes da proferição da sentença final, o juiz ou o tribunal colectivo têm de fazer uma análise crítica das provas que respeitam aos factos controvertidos, quer tenham sido quesitados ou não.
Sendo assim, o exame crítico previsto no transcrito artigo 659.º, número 2, do Código de Processo Civil é posterior e complementar daquele, tendo, em regra, uma projecção nos autos e na decisão do litígio, em termos fácticos e jurídicos, muito menor do que a estatuída no número 2 do artigo 653.º.
Fernando Amâncio Ferreira em “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 6.ª Edição, Setembro de 2005, páginas 23 e 24, afirma o seguinte a este propósito:
“Com o Decreto-Lei n.º 242/85, de 9 de Julho, que deu nova redacção ao artigo 659.º, embora se mantivesse a clássica distinção entre matéria de facto e matéria de direito, procurou afastar-se a ideia de que o apuramento dos factos e a interpretação e aplicação das normas jurídicas são operações absolutamente distintas, localizadas em divisórias estanques da sentença.
Na motivação, a sentença "assenta num diálogo constante (num mo­vimento lógico de vai-vém) entre o facto e o direito, no qual não deixam de desempenhar um papel importante para a descoberta da verdadeira mens legis, as reacções intuitivas, emocionais ou sentimentais do julgador (interprete) em face do caso concreto” (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, página 666, nota 1)
Na fundamentação fáctica, atento o que se dispõe inter alia no n.º 3 do art. 659.°, devem ser utilizados todos os factos adquiridos ao longo da causa.
Assim:
a) Os factos admitidos por acordo, mesmo que não tenham sido considerados assentes pelo juiz aquando da selecção da matéria de facto considerada relevante [arts. 508.º-A, n.º 1, alínea e), e 511.º, n.ºs 1 e 2];
b) Os factos provados por documentos quer juntos pelas partes (arts. 523.º e 524.º) quer por iniciativa do tribunal (arts. 514.º, n.º 2, e 535.º), desde que façam prova plena (arts. 371.º e 376.º do CC);
c) Os factos provados por confissão reduzida a escrito (arts. 356.º e 358.° do CC; art. 563.°, n.° 1);
d) Os factos julgados provados pelo tribunal colectivo ou singular em audiência de julgamento, com referencia a base instrutória da causa (art. 653.º, n.ºs 2 e 3);
e) Os factos notórios (art.º 514.º, n.º 1) e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções (art. 514.º, n.º 2);
f) Os factos que podem ser inferidos, por presunção judicial, dos factos provados (arts. 349.º e 351.º do CC).
Seguidamente, fará o juiz o exame crítico das provas de que lhe incumbe conhecer, para estabelecer em definitivo a matéria de facto rele­vante para o julgamento da causa.
Já no domínio da fundamentação de direito, devera o juiz indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas aos factos da causa (art.º 659.º, n.º 2, 2.ª parte).
Logo, a norma em causa (artigo 659.º do Código de Processo Civil) é restritiva no que à matéria do exame crítico das provas se refere, pois limita o mesmo aquelas provas de que o juiz, na altura da elaboração da sentença, cumpra conhecer.
Sendo assim, não tendo todas as provas produzidas nos autos de ser alvo de tal apreciação crítica em sede de sentença mas só aquelas indicadas, por via indirecta, no excerto doutrinário acima reproduzido (alíneas a) - acordo entre as parte não considerado -, b) - documentos com força probatória plena -, c) - confissão - e f) - presunções judiciais], quando as haja e se justifique a sua apreciação ou recurso às mesmas, não se vê como violou a decisão judicial impugnada tal disposição, ao não fazer a análise crítica das provas produzidas nos autos nos moldes perseguidos pela Apelante, dado tal exame já ter sido efectuado, nas diversas dimensões probatórias relevantes, em sede da fundamentação da Decisão sobre a Matéria de Facto, como era imposto pela factualidade a provar, pelos meios de prova existentes e pelo regime legal aplicável (cf., aliás, a dita fundamentação, noutra parte deste Aresto).
Julga-se, nessa medida e pelos motivos expostos, o presente recurso de apelação improcedente nesta parte.

C – IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

Vem a Apelante interpor recurso da decisão da Matéria de Facto, com referência aos factos dados como não provados (Ordem de Serviço e parte das condutas com relevância disciplinar), nos moldes seguintes:
“4 – A informação retirada do server, constitui a prova que levou à recolha dos documentos que instruiu o procedimento disciplinar, não havendo violação do art.º 18.º, 26.º e 34.º da Constituição da República Portuguesa e art.º 21.º do Código de Trabalho.
5 – Ora afirmando a testemunha que a instrução hierárquica “existência e conteúdo de ordem expressa proibindo e regulando a utilização de meios informáticos e, especificadamente de programas de comunicação” existe e foi colocada em local de acesso aos trabalhadores, não pode este elemento ser desconsiderado na prova produzida pela Ré, até porque não levantou dúvidas ao julgador a razão de ciência da testemunha, havendo violação do art.º 655.º do CPC.
6 - Sendo considerado o teor dos documentos a fls. 84/85, 90-99, 103-139, 321-360 não valorados pelo tribunal a quo não poderá a decisão ser outra que não ser considerado licito o despedimento da Autora.
7 – A sentença remeteu para o despacho do julgamento da matéria de facto o exame crítico das provas violando assim o legalmente preceituado, nos termos do n.º 3 do art.º 659.º do Código de Processo Civil, devendo a sentença ser rectificada.
9 - Nos termos do art.º 3.º-A do CPC deverá a Meritíssima Juiz assegurar igualdade substancial das partes em todo o processo, não foi valorada a prova nos autos, com o mesmo critério de equidade entre Autora e Ré na produção da prova.
10 – O grau de exigência, na valoração da prova apresentada pela Autora foi diminuto relativamente à valoração da prova produzida pela Ré.”
Esta impugnação é efectuada nos termos e para os efeitos dos artigos 80.º, número 3, 87.º, número 1, do Código do Processo do Trabalho e 685.º-A do Código de Processo Civil, importando, nessa medida, ter presente o seu número 1, alíneas a) e b), quando estatui que “1 – Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, dizendo por seu turno o seu número 2 que “No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição”, ao passo que o artigo 712.º, números 1, alíneas a) e b) e 2 do Código de Processo Civil determina a este propósito e na parte que nos interessa o seguinte:

Artigo 712.º
Modificabilidade da decisão de facto
1 - A decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º-B, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) (…)
2. No caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
3 (...)

A Decisão sobre a Matéria de facto, em termos de fundamentação da formação da convicção do tribunal recorrido acha-se acima reproduzida, remetendo-se para aí acerca do que foi dito quanto à insuficiência de prova acerca deste ponto específico: Ordem de Serviço.
Ora, impõe-se, antes de mais, realçar que os depoimentos das seis testemunhas ouvidas em sede de Audiência de Discussão e Julgamento não foram objecto de registo áudio (nada consta da Acta nem vislumbramos pedido nesse sentido formulado pelas partes e deferido pelo juiz do processo ou despacho ordenando oficiosamente tal gravação), o que, desde logo, restringe fortemente o âmbito possível da presente impugnação e do seu conhecimento, em termos de prova produzida.
Compulsando, por outro lado, os autos, não se descortina a junção de qualquer documento que contenha a referida Ordem de Serviço e que, por ser geral e abstracta para todos os empregados da empresa recorrente teria de ser necessariamente escrita, como aliás decorre do artigo 6.º da contestação (fls. 70), que transcreve o teor da mesma.
Logo, também por esta via nunca seria possível dar como demonstrada a existência concreta de tal Ordem de Serviço, alegadamente emitida em Julho de 2008, sem precisão de dia.
Importa realçar que não existe acordo entre as partes quanto à elaboração e publicação pela Ré desse Regulamento Interno.
Sendo assim, pelas razões expostas, tem o presente recurso de Apelação de ser julgado improcedente nesta parte.

D – PROVA ILEGAL

O cerne da presente Apelação repousa, contudo, na admissibilidade ou inadmissibilidade dos documentos juntos a fls. 84 e 85, 90 a 99, 103 a 139 e 321 a 360 e que se traduzem em conversas, em tempo real e por escrito, de natureza particular, entre a Autora e amigas e marido/namorado, através do Messenger, mas em que se fazem afirmações e se confessam factos susceptíveis, na perspectiva da entidade empregadora, de fundarem, como fundaram, o despedimento individual daquela com invocação de justa causa.
Tais conversas têm um duplo papel nos autos, a saber, constituem o miolo factual do procedimento e despedimento disciplinar da Apelada e, ao mesmo tempo, traduzem-se no suporte documental e probatório daquelas, tendo sido retiradas por outro trabalhador da Ré do seu servidor central, onde estavam armazenadas.
Trata-se de uma matéria sensível, que, apesar do confronto entre direitos e deveres de natureza diversa e qualitativamente antagónicos das partes, impõe-se apreciar com rigor, cautela e sensatez.
Estando nós face a um procedimento disciplinar, cuja natureza, génese, estrutura e finalidade estão próximas das do processo penal, não nos parece abusivo referir, a este respeito, quer o artigo 32.º, números 8 e 10 da Constituição da República Portuguesa (nulidade das provas ilegais), quer o artigo 126.º, número 3, do Código de Processo Penal, sem esquecer finalmente e ainda que não se concorde com a invocação daquelas duas primeiras disposições, o estatuído nos artigos 519.º, número 3, alínea b) do Código de Processo Civil e 70.º, 75.º a 78.º e 81.º do Código Civil.
Também para esta problemática tem interesse o que os Códigos do Trabalho de 2003 e de 2009 determina(va)m, respectivamente, nos seus artigos 21.º e 22.º, que reza(va)m o seguinte:

Artigo 21.º
Confidencialidade de mensagens e de acesso a informação
1 - O trabalhador goza do direito de reserva e confidencialidade relativamente ao conteúdo das mensagens de natureza pessoal e acesso a informação de carácter não profissional que envie, receba ou consulte, nomeadamente através do correio electrónico.
2 - O disposto no número anterior não prejudica o poder de o empregador estabelecer regras de utilização dos meios de comunicação na empresa, nomeadamente do correio electrónico.
Artigo 22.º
Confidencialidade de mensagens e de acesso a informação
1 - O trabalhador goza do direito de reserva e confidencialidade relativamente ao conteúdo das mensagens de natureza pessoal e acesso a informação de carácter não profissional que envie, receba ou consulte, nomeadamente através do correio electrónico.
2 - O disposto no número anterior não prejudica o poder de o empregador estabelecer regras de utilização dos meios de comunicação na empresa, nomeadamente do correio electrónico.

Impõe-se, no caso dos autos, complementar ainda tais normas com a regra contida no artigo 15.º do primeiro diploma legal (artigo 14.º no segundo, de epígrafe e teor absolutamente semelhantes) que, com a epígrafe de “Liberdade de expressão e opinião” determina que «É reconhecida no âmbito da empresa a liberdade de expressão e de divulgação do pensamento e opinião, com respeito dos direitos de personalidade do trabalhador e empregador, incluindo as pessoas singulares que o representam, e do normal funcionamento da empresa.»
Tendo como pano de fundo as acusações formuladas pela Ré à Autora na Nota de Culpa e depois confirmadas na decisão disciplinar de despedimento e cruzando os citados e transcritos dispositivos legais com os artigos 120.º a 122.º desse mesmo texto legal, onde, sem prejuízo de normas especiais, se prevêem, respectivamente, os deveres do empregador, do trabalhador, bem como as garantias deste último (cf. ainda os artigos 150.º, 153.º e 365.º do mesmo diploma, relativamente aos poderes de direcção, regulamentar e disciplinar do empregador), deparamo-nos com um conflito de direitos e deveres, posicionando-se, de um lado, os direitos de personalidade do trabalhador - liberdade de expressão e opinião e reserva e confidencialidade da sua correspondência - e, por outro e para além dos demais legalmente previstos, os seus deveres de lealdade e de respeito para com a sua entidade patronal, bem como zelo e diligência na sua prestação laboral, impondo-se averiguar, no quadro desse confronto jurídico, até onde pode ir a entidade patronal na disciplina, controlo, fiscalização e conhecimento de situações como as descritas nos autos, bem como, correspondentemente, quais são os limites e compressão que o legislador permite aos mencionados direitos de personalidade do empregado, quando inseridos e exercidos no âmbito da estrutura, organização e funcionamento da empresa e respectiva actividade.
No fundo, como o Professor João Leal Amado se interroga no seu livro “Contrato de Trabalho”, 2.ª Edição, Janeiro de 2010, publicação conjunta de Wolsters Kluwer Portugal e Coimbra Editora, páginas 225 a 229, “goza o trabalhador do direito de reserva e confidencialidade relativamente ao conteúdo das mensagens que envie ou receba através do correio electrónico da empresa (utilizando, portanto, meios de comunicação da empresa)? Pode o empregador monitorizar a navegação na Internet feita pelo trabalhador, durante o período de trabalho e/ou nos intervalos de descanso? (…) Até onde vai a liberdade de expressão? Pode este divulgar o seu pensamento e opinião na empresa?
Este mesmo autor responde a tais dúvidas, da seguinte forma, na obra e local citados (muito embora o faça no quadro do actual Código do Trabalho, afigura-se-nos que, pela similitude de regimes, a sua doutrina é igualmente defensável no âmbito do Código do Trabalho de 2003):
Estas e muitas outras questões análogas revelam-nos a extrema delicadeza da terra em apreço. Estamos, afinal, no coração do conflito entre as exigências gestionárias, organizativas e disciplinares do empregador, par um lado, e os direitos do trabalhador, por outro. Não propriamente os seus direitos enquanto trabalhador (direito à greve, liberdade sindical, direito a descanso semanal e a férias, direito ao salário, segurança no emprego, etc.), mas os seus «direitos inespecíficos», isto é, os seus direitos não especificamente laborais, os seus direitos enquanto pessoa e enquanto cidadão (direitos de 2.ª geração», hoc sensu). O que temos aqui, quase sempre, é um problema de conflito de direitos (dir-se-ia: o conflito entre a liberdade de empresa e a liberdade na empresa), a reclamar uma cuidada e laboriosa tarefa de concordância prática entre eles, de acordo com o princípio da proporcionalidade, na sua tríplice dimensão (conformidade ou adequação, exigibilidade ou necessidade, proporcionalidade stricto sensu). Nesta matéria, assistimos, em suma, a uma dialéctica aplicação/modulação, vale dizer: i) a tutela da situação pessoal do trabalhador e a salvaguarda da chamada «cidadania na empresa» pressupõem a aplicação/eficácia dos direitos fundamentais da pessoa humana no âmbito da relação de trabalho; ii) os legítimos interesses do empregador e a posição de inequívoca supremacia que este detém na relação de trabalho implicam, necessariamente, uma certa compressão/modulação daqueles direitos do trabalhador.
Isto dito, resta saber como se alcança o desejado ponto de equilíbrio, tarefa que o CT procura sobretudo enfrentar nos seus arts. 14.° a 22.° (relativos, justamente, aos chamados «direitos de personalidade»), onde se estabelecem alguns critérios que permitem dar resposta a algumas das questões que enunciamos supra. De resto, e na linha do que já sucedia com o CT de 2003, o actual CT adopta uma perspectiva «paritária» ou «simétrica» nesta matéria, consagrando os direitos de personalidade do trabalhador e do empregador (assim, p. ex., em matéria de liberdade de expressão e de opinião, de integridade física e moral. ou da reserva da intimidade da vida privada). Ora, sem prejuízo do óbvio e necessário respeito pelos direitos de personalidade do empregador, esta perspectiva paritária não me parece feliz, por tender a obnubilar o problema específico colocado pela relação de trabalho nesta sede: o problema da extensão, da intensidade e dos limites dos poderes patronais. Por esta ser uma relação estruturalmente assimétrica, marcada, ademais, pelo profundo envolvimento da pessoa do trabalhador na execução da prestação, são os direitos deste, e não já do empregador, que o Direito do Trabalho deve salvaguardar. Para tutelar os direitos do empregador, dir-se-á, o Código Civil já bastaria... (295)
Trata-se, em todo o caso, de uma matéria complexa, de um terreno escorregadio em que abundam os conceitos indeterminados e em que surgem, não raro, questões melindrosas, cuja resposta poderá oscilar em função das circunstâncias concretas que rodeiam cada situação (a natureza da actividade prestada, o tipo de empresa em que se realiza, os usos do sector, etc.). Ao Direito do Trabalho compete, no essencial, estabelecer aqui um marco fundamental: a garantia, nas palavras de REGINA REDINHA, «de que homens e mulheres, no tempo e local de trabalho, não abandonam a sua qualidade de cidadãos nem se despem dos atributos jurídicos da sua humanidade». Sem que, ademais, se deva esquecer que todo o edifício da protecção da personalidade do trabalhador assenta num princípio nuclear: o princípio da não discriminação.”
A respeito de muitas das questões que se suscitam neste âmbito, também o Professor Júlio Manuel Vieira Gomes, em “Direito do Trabalho - Relações Individuais de Trabalho”, Volume I, 2007, Coimbra Editora, páginas 367 e seguintes, se pronuncia, conforme ressalta, aliás, do excerto transcrito na fundamentação da Decisão sobre a Matéria de Facto, acerca da inadmissibilidade da prova através da junção da reprodução escrita das conversas havidas no Messenger entre a Autora e a amiga, para onde igualmente se remete:
(…) Acresce que a utilização da Internet e do correio electrónico, pelos trabalhadores, se, por um lado, e muitas vezes imperiosa, pelas funções que exercem - ou mesmo absolutamente indispensável - não deixa, por outro lado, de representar, da óptica do empregador, uma possível fonte de prejuízos de toda a espécie: assim, e a título meramente exemplificativo, refiram-se o tempo de trabalho inutilmente gasto em mensagens ou na simples navegação na Internet, com fins exclusivamente pessoais, a despesa inerente à manutenção de todo o sistema informático, a aparência, criada no exterior e prejudicial à imagem da empresa, conexa com a utilização indevida de um endereço electrónico que frequentemente identifica a própria empresa, o perigo de práticas ilegais, por vezes mesmo penalmente punidas, como a violação de direitos de autor, através do download, a partir de sites ilegais, de música, jogos, programas, etc., a consulta de sites relacionados com a pedofilia e pornografia infantil, a divulgação de mensagens de conteúdo obsceno ou racista, que podem, inclusive, inserir-se num processo de mobbing.
Face ao exposto, vislumbra-se a necessidade de encontrar um ponto de equilíbrio entre interesses e direitos conflituantes: por um lado, o trabalhador vê permanente e quotidianamente comprometida, na realização da sua prestação, a sua própria personalidade. Essa personalidade não deve ver-se exposta, em princípio, a controlos contínuos, mais ou menos ocultos, e que, através das novas tecnologias, podem constituir urna autêntica devassa, susceptível de atingir as camadas mais profundas do ser humano. A associação dos novos meios de controlo, audiovisuais, telemáticos, biomédicos e das possibilidades conferidas pelo computador e pelas bases de dados, possibilitariam a criação, como um autor italiano já referiu, de "trabalhadores de vidro", completamente transparentes. Se do próprio direito geral de personalidade do trabalhador resultam já restrições necessárias ao controlo a que este pode ser sujeito - de modo a evitar um ambiente de trabalho humilhante, stressante e psiquicamente violento - não se pode, contudo, esquecer que, do outro lado, também se perfilam direitos fundamentais a tutelar, como sejam o direito à propriedade privada e à liberdade de iniciativa e de empresa. Os perigos a que o empregador se expõe, já atrás referidos, podem, por isso mesmo, justificar medidas de controlo. E daí que o ponto de equilíbrio entre uns e outros direitos deva, por um lado, preservar, em alguma medida, os direitos à reserva e à confidencialidade do trabalhador, mas, por outro, a salvaguarda de tais direitos não pode esvaziar por completo os poderes de controlo do empregador. Além disso, a legitimidade das medidas de controlo terá que atender, no caso concreto, aos interesses que o empregador visou tutelar e aos perigos a que esses interesses estavam efectivamente expostos, exigindo-se que tais medidas de controlo fossem necessárias para preservar esses interesses, proporcionais e adequadas a sua conservação.
Relativamente à utilização, pelo trabalhador, do correio electrónico disponibilizado pelo empregador, existem alguns (relativamente poucos...) pontos de consenso doutrinal.
Em primeiro lugar, a maior parte da doutrina aceita que o empregador tem o poder de regulamentar o uso do correio electrónico, que ele próprio disponibiliza, e não tem a obrigação de permitir a utilização para fins pessoais desse mesmo correio electrónico. Deve advertir-se, no entanto, que isso não significa que todas as comunicações, ou mensagens pessoais, sejam automaticamente ilícitas, mesmo na ausência de uma permissão do empregador. Para além da dificuldade em distinguir, por vezes, neste contexto, o profissional do pessoal, importa reconhecer que uma utilização pontual do correio electrónico, para fins meramente pessoais, pode ser socialmente adequada, impondo-se aqui uma certa margem de tolerância. É, no fundo, o que já se passava com os tradicionais “meios de comunicação”, como o telefone ou o fax da empresa que, de maneira esporádica, podem ser utilizados para mensagens de conteúdo pessoal. Algumas vezes, como se disse, tais mensagens pessoais tem, mesmo, uma motivação profissional: pense-se no telefonema (ou, hoje, no E-mail) do trabalhador ao seu cônjuge, ou a pessoa com quem vive, avisando que chegara atrasado a casa, por necessidades de serviço. Neste sentido, pelo menos, importa reconhecer que a proibição total de uso do correio electrónico, para fins privados, é irrealista. (…)
Como se disse, em suma, o empregador tem, em princípio, a opção de autorizar, ou não, a utilização dos meios informáticos para fins privados, pelos seus trabalhadores. Se essa autorização não existir, e ressalvados os casos excepcionais já referidos, em que o trabalhador pode enviar mensagens de cariz pessoal, mas socialmente adequadas, qualquer utilização desses meios, para fins particulares, será ilícita e constituíra uma infracção disciplinar. Pode, contudo, perguntar-se se só porque não autorizou tais utilizações privadas, o empregador tem, ou não, um direito de controlar o conteúdo do correio electrónico dos seus trabalhadores e à navegação que estes fizeram na Internet. (…)
À guisa de conclusão, parece-nos aconselhável a elaboração de uma "carta das tecnologias da informação" ao menos em empresas de certa dimensão. Essa "carta" - no fundo uma componente do regulamento interno e sujeita às mesmas condições procedimentais e de publicidade - teria como objectivo definir com precisão as modalidades de utilização autorizadas dos sistemas de informação e de comunicação da empresa, mormente a Internet, a intranet e o correio electrónico.
Cada empresa deve optar entre proibir o uso da Internet e do correio electrónico para conexões pessoais (com ressalva de casos excepcionais que sempre terão de ser tolerados até em homenagem a um pensamento de adequação social) ou permiti-los, mas apenas de modo razoável, e sem prejuízo da produtividade do trabalhador.
Pode, igualmente, proibir-se o acesso a determinados sites (jogo e pornografia, por exemplo) e deve informar-se os trabalhadores e os seus representantes das medidas de segurança adoptadas. Pode também prever-se na carta a proibição de se conectar à Internet por um modem autónomo, de fazer o download de ficheiros volumosos (eventualmente indicando expressamente o limiar do inaceitável), bem como a proibição de inscrever-se em fóruns de discussão sem autorização prévia. Em tais hipóteses o controlo a posteriori do uso feito pelos trabalhadores pode ser legítimo.
Quanto ao correio electrónico parece oportuno que a obrigação de distinguir correctamente correio pessoal e profissional conste do regulamento interno da empresa, obrigando-se o trabalhador a não qualificar informações profissionais como pessoais e vice-versa. A empresa deve poder presumir que não é pessoal todo o correio que o trabalhador não tenha expressamente qualificado como tal. Devem prever-se mecanismos para situações de ausência dos trabalhadores - férias e sobretudo suspensões do contrato por doença e licenças - em que pode ser necessário, sob pena de informações importantes não poderem ser recebidas em tempo útil, aceder ao correio electrónico: convém que os trabalhadores interessados sejam previamente alertados para essa possibilidade e, preferencialmente, tenham dado o seu consentimento prévio. Afora os casos de ausência do interessado, deve prever-se que a abertura excepcional do correio electrónico de um trabalhador, quando motivada por fortes indícios de violação das regras de utilização dos meios informáticos, e mesmo que referida a correio não classificado como pessoal, seja feita na presença do próprio interessado e de um representante dos trabalhadores.” (cf. igualmente a demais doutrina e jurisprudência referidas na Fundamentação da Decisão sobre a Matéria de Facto)
Chegados aqui e face à inexistência de qualquer regulamentação prévia para a utilização pessoal e profissional da Internet por parte dos trabalhadores da Ré (sendo certo que, apesar da Ré aludir na sua Nota de Culpa e Decisão Disciplinar a E-mails, o que está aqui verdadeiramente em causa são mensagens escritas de conversação no Messenger) verifica-se o acesso e conhecimento indevidos e ilícitos por parte da empresa ao conteúdo de conversas de teor estritamente pessoal da Apelada com três amigas e o marido/namorado – entendemos que não podiam existir quais quer dúvidas quanto a tal facto, dado nada indicar nos autos que a Ré utilize tal meio electrónico na sua actividade económica e permita, consequentemente, o uso do mesmo pelos seus trabalhadores em moldes profissionais –, numa situação que se pode equiparar, de alguma maneira, à audição de vários telefonemas particulares (no fundo, uma espécie de «escutas» ilegais) ou à leitura de cartas dessa mesma índole, sem que, quer o remetente, como o destinatário, tenham dado o seu consentimento prévio a tal “visionamento” escrito das ditas conversas.
É uma clara violação do disposto nos artigos 15.º e 21.º do Código do Trabalho de 2003 e 16.º e 22.º do Código do Trabalho de 2009, já para não falar das demais normas acima indicadas de carácter geral e comum ou de natureza processual penal, afigurando-se-nos que o máximo que a Ré poderia fazer era, desde que tal não implicasse a leitura do conteúdo das conversas, apurar das horas (por forma a constatar que tal tinha acontecido dentro do horário de trabalho) e do tempo dispendido durante o seu tempo profissional pela Autora em tal actividade pessoal e eventualmente acusá-la dessa infracção, em termos concretos e discriminados, ainda que depois tivesse de ser eventualmente temperado com a falta de trabalho existente e/ou esvaziamento de funções alegados pela Autora (não nos parecendo legítimo deduzir-lhe tal tempo particular na sua retribuição, pois em rigor não se poderia falar em faltas injustificadas, apesar da “ausência” funcional da trabalhadora enquanto se ocupava com o Messenger).
Também não nos parece válido o argumento jurídico desenvolvido pela Ré no sentido dos referidos acesso e conhecimento serem permitidos pela circunstância das referidas conversas/mensagens se acharem guardadas no servidor central da empresa, a ela pertencente, pois, por um lado, não perderam a sua natureza de pessoais e confidenciais por esse facto e, por outro, face a tal justificação, não se vê porque a entidade empregadora, em função da simples propriedade sobre o computador profissional distribuído à Autora, não poderia proceder da mesma forma, para o caso desse registo estar conservado no disco rígido daquele.
Essa tese, levada a um extremo, conduziria a resultados absurdos, franqueando à administração da Apelante ou aos funcionários em que delegasse tais tarefas, a possibilidade de, querendo, abrir as carteiras e fiscalizar o conteúdo das malas ou dos telemóveis dos trabalhadores pelo singelo facto de estarem guardados dentro de gavetas ou armários colocados dentro das suas instalações e de todo o mobiliário e demais equipamento existente na empresa lhe pertencer ou lhe estar afecto por um título jurídico legítimo, o mesmo se podendo dizer com referência às viaturas particulares estacionadas no seu parque ou garagem, caso existam.
Logo, pelos motivos expostos, não podemos acompanhar o Aresto do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/07/2008, que é invocado a esse respeito pela recorrente a fls. 408, assim como aquele outro, de 30/06/2011 e deste mesmo tribunal, reproduzido a fls. 406 e 407 das mesmas alegações, subscrevendo antes o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5/07/2007, processo número 07S043, em que foi relator o Juiz Conselheiro Mário Pereira e publicado em www.dgsi.pt, quando, no seu sumário, se sustenta:
II – O art. 21.º, n.º 1 do CT garante o direito à reserva e à confidencialidade relativamente a mensagens pessoais e à informação não profissional que o trabalhador receba, consulte ou envie através de correio electrónico, pelo que o empregador não pode aceder ao conteúdo de tais mensagens ou informação, mesmo quando esteja em causa investigar e provar uma eventual infracção disciplinar.
III – Não são apenas as comunicações relativas à vida familiar, afectiva, sexual, saúde, convicções políticas e religiosas do trabalhador mencionadas no art. 16.º, n.º 2 do CT que revestem a natureza de comunicações de índole pessoal, nos termos e para os efeitos do art. 21.º do mesmo código.
IV – Não é pela simples circunstância de os intervenientes se referirem a aspectos da empresa que a comunicação assume desde logo natureza profissional, bem como não é o facto de os meios informáticos pertencerem ao empregador que afasta a natureza privada da mensagem e legitima este a aceder ao seu conteúdo.
V – A definição da natureza particular da mensagem obtém-se por contraposição à natureza profissional da comunicação, relevando para tal, antes de mais, a vontade dos intervenientes da comunicação ao postularem, de forma expressa ou implícita, a natureza profissional ou privada das mensagens que trocam.
VI – Reveste natureza pessoal uma mensagem enviada via e-mail por uma secretária de direcção a uma amiga e colega de trabalho para um endereço electrónico interno afecto à Divisão de Após Venda (a quem esta colega acede para ver e processar as mensagens enviadas, tendo conhecimento da necessária password e podendo alterá-la, embora a revele a funcionários que a substituam na sua ausência), durante o horário de trabalho e a partir do seu posto de trabalho, utilizando um computador pertencente ao empregador, mensagem na qual a emitente dá conhecimento à destinatária de que vira o Vice-Presidente, o Adjunto da Administração e o Director da Divisão de Após Venda da empresa numa reunião a que estivera presente e faz considerações, em tom intimista e jocoso, sobre essa reunião e tais pessoas.
VII – A falta da referência prévia, expressa e formal da “pessoalidade” da mensagem não afasta a tutela prevista no art. 21.º, n.º 1 do CT.
VIII – Não tendo o empregador regulado a utilização do correio electrónico para fins pessoais conforme possibilita o n.º 2 do art. 21.º do CT, o envio da referida mensagem não integra infracção disciplinar.
IX – Tendo o Director da Divisão de Após Venda acedido à pasta de correio electrónico, ainda que de boa fé por estar de férias a destinatária da mensagem em causa, e tendo lido esta, a natureza pessoal do seu conteúdo e a inerente confidencialidade impunham-lhe que desistisse da leitura da mensagem logo que se apercebesse dessa natureza e, em qualquer caso, que não divulgasse esse conteúdo a terceiros.
X – A tutela legal e constitucional da confidencialidade da mensagem pessoal (arts. 34.º, n.º 1, 32.º, n.º 8 e 18.º da CRP, 194.º, n.ºs 2 e 3 do CP e 21.º do CT) e a consequente nulidade da prova obtida com base na mesma, impede que o envio da mensagem com aquele conteúdo possa constituir o objecto de processo disciplinar instaurado com vista ao despedimento da trabalhadora, acarretando a ilicitude do despedimento nos termos do art. 429.º, n.º 3 do CT.
Sendo assim, pelos fundamentos explanados, tem esta parte do recurso de Apelação de ser julgado igualmente improcedente.

E – ILICITUDE DO DESPEDIMENTO COM JUSTA CAUSA

Abordemos então esta outra problemática do presente recurso, chamando, desde logo, à colação o estatuído nos artigos 351.º e 357.º do Código do Trabalho de 2009, na parte que para aqui releva, tendo sido este diploma que fundou juridicamente o despedimento dos autos, apesar de parte das condutas imputadas à Autora terem sido desenvolvidas à luz do anterior Código do Trabalho (cf., contudo e também, as disposições legais equivalentes às abaixo transcritas e que são as dos artigos 396.º e 415.º, número 3, do Código do Trabalho de 2003, de teor similar aos actualmente em vigor):

Artigo 351.º
Noção de justa causa de despedimento
1 - Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
2 - Constituem, nomeadamente, justa causa de despedimento os seguintes comportamentos do trabalhador:
a) Desobediência ilegítima às ordens dadas por responsáveis hierarquicamente superiores;
b) Violação de direitos e garantias de trabalhadores da empresa;
c) Provocação repetida de conflitos com trabalhadores da empresa;
d) Desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, de obrigações inerentes ao exercício do cargo ou posto de trabalho a que está afecto;
e) Lesão de interesses patrimoniais sérios da empresa;
f) (…)
i) Prática, no âmbito da empresa, de violências físicas, injúrias ou outras ofensas punidas por lei sobre trabalhador da empresa, elemento dos corpos sociais ou empregador individual não pertencente a estes, seus delegados ou representantes;
j) (…)
m) Reduções anormais de produtividade.
3 - Na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes.
Artigo 357.º
Decisão de despedimento por facto imputável ao trabalhador
1 – (…)
4 - Na decisão são ponderadas as circunstâncias do caso, nomeadamente as referidas no nº 3 do artigo 351.º, a adequação do despedimento à culpabilidade do trabalhador e os pareceres dos representantes dos trabalhadores, não podendo ser invocados factos não constantes da nota de culpa ou da resposta do trabalhador, salvo se atenuarem a responsabilidade.
5 – (…)

Os factos dados como provados, a este respeito, são inexistentes, reproduzindo, tão-somente, os actos principais que, ao nível do processo disciplinar, tiveram lugar, dado a exclusão da referida prova ilegal, no que se refere à reprodução escrita das conversas havidas entre a Autora e a amiga, no Messenger, o carácter vago e abstracto de alguns dos factos imputados à recorrida (que a Nota de Culpa como a Decisão de despedimento padecem desse vício parcial) e, finalmente, à insuficiência da prova relativamente aos demais factos, cujo ónus recaía, aliás, sobre a Ré, conforme é posição uniforme da nossa doutrina e jurisprudência.
Tal cenário bastaria, conforme foi decidido na sentença impugnada, para declarar a ilicitude do despedimento de que foi alvo a Autora, por não haver, em absoluto, justa causa disciplinar que o justifique.
Permitimo-nos, contudo e apesar de tal conclusão, que nos aprece inequívoca, dizer ainda alguma coisa a este respeito e no pressuposto de que as referidas mensagens ou conversas do Messenger pudessem ser consideradas em sede disciplinar, dado não ser para nós absolutamente líquido, que, nas circunstâncias concretas em que foram produzidas e atendendo ao seu único destinatário (três amigas e cônjuge ou namorado da trabalhadora), a troca das mesmas, com o conteúdo específico que possuem, fosse suficiente para fundar a referida justa causa.
O Professor João Leal Amado, obra citada, página 383, a partir da noção geral de justa causa contida no número 1 do artigo 351.º acima transcrito, refere que “a justa causa de despedimento assume, portanto, um carácter de infracção disciplinar, de incumprimento contratual particularmente grave, de tal modo grave que determine uma perturbação relacional insuperável, isto é, insusceptível de ser sanada com recurso a medidas disciplinares não extintivas (…)
As diversas condutas descritas nas várias alíneas do número 2 do artigo 351.º possibilitam uma certa concretização ou densificação da justa causa de despedimento, muito embora deva sublinhar-se que a verificação de alguma dessas condutas não é condição necessária (dado que a enumeração é meramente exemplificativa), nem é condição suficiente (visto que tais alíneas constituem «proposições jurídicas incompletas», contendo uma referência implícita à cláusula geral do n.º 1 para a existência de justa causa. Esta traduz-se, afinal, num comportamento censurável do trabalhador, numa qualquer acção ou omissão que lhe seja imputável a título de culpa (não se exige o dolo, ainda que, parece, a negligência deva ser grosseira) e que viole deveres de natureza laboral, quando esse comportamento seja de tal modo grave, em si mesmo e nos seus efeitos, que torne a situação insustentável, sendo inexigível ao empregador (a um empregador normal, razoável) que lhe responda de modo menos drástico”.
O Professor Monteiro Fernandes, em “Direito do Trabalho”, 14.ª Edição, Almedina, página 612, segundo esse mesmo autor, defende que “a cessação do contrato, imputada a falta disciplinar, só é legítima quando tal falta gere uma situação de imediata impossibilidade de subsistência da relação laboral, ou seja, quando a crise disciplinar determine uma crise contratual irremediável, não havendo espaço para o uso de providência de índole conservatória”, ao passo que o Professor Jorge Leite em “Colectânea de Leis do Trabalho”, página 250 (nota 537 a página 384 da obra de João Leal Amado) sustenta que “a gravidade do comportamento (do trabalhador) deve entender-se como um conceito objectivo-normativo e não subjectivo-normativo, isto é, a resposta à questão de saber se um determinado comportamento é ou não grave em si e nas suas consequências não pode obter-se através do recurso a critérios de valoração subjectiva mas a critérios de razoabilidade (ingrediente objectivo), tendo em conta a natureza da relação de trabalho, as circunstâncias do caso e os interesses da empresa” e ainda que “uma vez mais, não é pelo critério do empregador, com a sua particular sensibilidade ou a sua ordem de valores próprios, que se deve pautar o aplicador do direito na apreciação deste elemento, mas pelo critério do empregador razoável”, isto quanto ao requisito legal da impossibilidade prática de subsistência da relação de trabalho (cf. também António Menezes Cordeiro, Manual do Direito do Trabalho, Almedina, página 820).
Ora, tendo como pano de fundo o descrito quadro legal e a interpretação que a transcrita doutrina faz do mesmo, certo é que nos movemos ainda a um nível privado, restrito a quatro pessoas das relações particulares da Autora (as amigas T..., C... e S... e o marido ou namorado, por ordem decrescente de importância), que conversam, à vez, livremente, afirmando o que lhes bem apraz, comentando acerca de pessoas e factos, bem como de aspectos ligados à prestação laboral da recorrida e dos demais “mensageiros”, como se estivessem a uma mesa de café ou na casa de cada um deles, convindo realçar que a maior parte do que ali é dito, ainda que vulgar, é francamente inócuo ou absolutamente irrelevante para a Ré.
As pessoas, normalmente, quando estão em círculos privados e fechados, em que sabem que só são escutadas pelo destinatário ou destinatários presentes e relativamente aos quais existe um mínimo de confiança no relacionamento que se estabelece – como parece ser o caso dos autos -, falam à vontade, dizem disparates, queixam-se, exageram, troçam de terceiros, dizem mal deles, qualificam-nos, muitas vezes, de forma pouco civilizada, “confessam-se”, afirmam coisas da boca para fora, no calor da conversa ou discussão, e tudo isso porque contam com a discrição dos seus interlocutores para a confidencialidade de algumas das coisas referidas e a compreensão e o inevitável “desconto” para as demais.
Essa é uma das inúmeras vertentes em que se desdobra o direito fundamental e constitucional da liberdade de expressão e opinião, tendo a Autora, bem como as suas amigas e companheiro, se limitado a exercê-lo, por estarem convictos de que mais ninguém tinha acesso e conhecimento, em tempo real ou diferido, do teor das mesmas.
Ora, a ser assim, tendo tais conversas essa natureza e não havendo indícios de que delas derivaram prejuízos de índole interna ou externa para a Ré, tendo sido desenvolvidas por uma trabalhadora com 8 anos de antiguidade e com um passado disciplinar imaculado, não nos parece que tal conduta, ainda que prolongada no tempo, se revestisse de uma gravidade e consequências tais que, só por si e em si, de um ponto de vista objectivo, desapaixonado, jurídico, implicasse uma quebra irremediável e sem retorno da relação de confiança que o vínculo laboral pressupõe entre empregado e empregador, impondo, nessa medida, a este último, o despedimento com justa causa, por ser a única medida reactiva de cariz disciplinar que se revela proporcional, adequada e eficaz à infracção concreta e em concreto praticada pelo trabalhador arguido.
Logo, também nesta parte e pelos motivos expostos, tem este recurso de Apelação de ser julgado igualmente improcedente.


IV – DECISÃO

Por todo o exposto, nos termos dos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 712.º e 713.º do Código de Processo Civil, acorda-se na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente o presente recurso de apelação interposto por BB – SOCIEDADE DE MÁQUINAS AUTOMÁTICAS, LDA., e, nessa medida, confirmar a sentença recorrida.
*
Custas do presente recurso a cargo da Apelante – artigo 446.º, número 1 do Código de Processo Civil.

Registe e notifique.

Lisboa, 7 de Março de 2012

José Eduardo Sapateiro
Maria José Costa Pinto
Seara Paixão

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