sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

CITIUS - ACTO PROCESSUAL - ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DA REGULARIDADE E LICITUDE DO DESPEDIMENTO - FALTA DE CONTESTAÇÃO




1960/10.9TTLSB.L1-4   TRL   30.06.2011

 I - Se ao pretender praticar um acto processual sujeito a prazo, por exemplo contestação, através do CITIUS, a parte se depara com qualquer obstáculo à anexação dos ficheiros com o conteúdo material da peça processual, deve, por interpretação extensiva do disposto no art. 10º nºs 2 a 5 da P. 114/2008, de 6/2, na redacção da P. 1538/2008 de 30/12, proceder à entrega através dos restantes meios previstos no nº 2 do art. 150º do CPC.
II- Na acção de impugnação da regularidade e licitude do despedimento, apesar do requerimento inicial de oposição ao despedimento, se o trabalhador não contestar tempestivamente o articulado do empregador de motivação do mesmo, consideram-se confessados os factos por este alegados, sendo logo proferida sentença a julgar a causa conforme for de direito.

A intentou em 19/5/2010 a presente acção especial de impugnação judicial da regularidade e licitude de despedimento contra B– Empresa de Segurança, S.A..
Citada a R., e realizada, em 28/5/2010, audiência de partes, na qual não foi possível a sua conciliação, veio aquela apresentar articulado de motivação do despedimento, no qual alega, em resumo, que o A. se dirigiu à sua supervisora e a dois directores da R. de forma incorrecta e agressiva, desobedeceu a ordens expressas no sentido de se apresentar no departamento de recursos humanos da R., e ameaçou agredir fisicamente um director da R.
O A. apresentou por via postal em 20/10/2010 o articulado de contestação, na sequência de:
- em 8/9/2010 (fls. 47) ter vindo aos autos informar que, dentro do prazo procurara, via Citius, fazer a junção, não o tendo conseguido, por o processo não ser encontrado e que a juntara como petição inicial, que fora distribuída como processo 2919/10.1TTLSB, 4º Juízo 1ª Secção;
- em 30/7/2010, referindo a petição inicial enviada em 25/7/2010, ter enviado por via postal documentos que não puderam seguir por via electrónica, por excederem o limite de 3 MB;
- o processo 2919/10.1TTLSB, do qual não consta qualquer petição, por decisão do respectivo magistrado judicial, ter sido incorporado nestes autos;
- por despacho de fls. 68 ter sido ordenada a notificação do A. para juntar a contestação que diz ter remetido via CITIUS como petição inicial e comprovar a data dessa remessa;
- o despacho de fls. 76, por o A. não ter dado integral cumprimento ao que lhe fora determinado, ter renovado o anterior despacho e fixado em cinco dias o prazo para cumprimento.
Pelo despacho proferido a fls. 100/104 foi julgada extemporânea e de nenhum efeito a contestação apresentada.
Foi seguidamente proferida sentença que, considerando provada a factualidade invocada pela R. na motivação do despedimento e procedendo ao respectivo enquadramento jurídico, julgou a acção totalmente improcedente e absolveu a R. do pedido.
O A. veio apelar, impugnando, tanto o despacho que considerou extemporânea a contestação, como a própria sentença.
Formula nas respectivas alegações as seguintes conclusões:
(…)
A R. contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
Subidos os autos a este tribunal, foi emitido parecer pelo M.P. favorável à confirmação das decisões recorridas.

O objecto do recurso, como decorre das conclusões que antecedem, consiste por um lado na reapreciação do despacho sobre a tempestividade ou intempestividade da contestação e, por outro lado, na questão de saber se houve erro de apreciação na sentença, por não ter tido em conta a factualidade invocada na resposta à nota de culpa e que o ónus da prova incidia sobre a R..

No despacho recorrido foram considerados provados os seguintes factos:
1. O A. foi notificado da apresentação do articulado da R. através de carta registada expedida em 14/07/2010.
2. No dia 25/07/2010 o ilustre mandatário do A. acedeu ao sistema informático “Citius”, e accionou o “assistente de entrega de peça processual”, tendo obtido a seguinte mensagem de erro: “O processo não foi encontrado. Processo nº 1960/10.9TTLSB”.
3. Face ao descrito em 2., o ilustre mandatário do A. acedeu novamente ao sistema informático “Citius”, e apresentou o requerimento que se acha a fls. 50-51.
4. No dia 29/07/2010 o A. enviou por correio o requerimento que se acha a fls. 52, no qual refere que “tendo enviado no dia 25 de Julho de 2010 via Citius a petição inicial dos presentes autos, com o qual não puderam seguir os documentos, por excederem o limite de 3 MB previsto no art. 10º, nº 1 da Portaria nº 114/20058, de 6 d Fevereiro, vem nos termos do n.ºs 2 e 3 do mesmo diploma legal, proceder à entrega dos mesmos em suporte papel”.
5. O Requerimento mencionado em 3. foi distribuído ao 4º Juízo, 1ª Secção com o nº 2919/10.1TTLSB.
6. No dia 02/09/2010 o Sr. Oficial de Justiça do 4º Juízo 1ª Secção lavrou no processo referido em 5, uma cota com o seguinte teor: “Em face da ausência de petição inicial com o requerimento electrónico recebido em 25/07/2010 (…) e de 5 documentos com o requerimento de 30/07/2010 (…), tentou-se contacto telefónico com o ilustre mandatário Dr.C sem sucesso, tendo-se deixado mensagem no voice mail”.
7. Por despacho datado de 21/09/2010, que se acha a fls. 68 foi determinada a notificação do autor “para, no prazo de dez dias, juntar aos autos a contestação que diz ter sido distribuída como petição inicial ao 4º Juízo, 1ª Secção (…) devendo comprovar a data em que tal remessa teve lugar a fim de aferir da sua tempestividade”.
8. No dia 07/10/2010 o A. enviou a juízo, por correio registado, o requerimento de fls. 74, juntamente com o documento intitulado “comprovativo de peça processual” que se acha a fls. 75.
9. Por despacho datado de 12/10/2010 que se acha a fls. 76, foi determinado que “O trabalhador não deu integral cumprimento ao que lhe foi determinado através do despacho de fls. 68, uma vez que não juntou a contestação que referiu ter remetido via CITIUS e que terá sido distribuída como petição inicial ao 4º Juízo, 1ª Secção, com o nº 2919/10,1TTLSB, pelo que se renova o aludido despacho, devendo o mesmo ser cumprido no prazo máximo de 5 (cinco) dias.”
10. Em 20/10/2010 o ilustre mandatário do A. enviou por correio registado o articulado de fls. 78 a 83, no qual contesta o articulado da R..
E foi considerado que não se provou que:
• No momento referido em 3., o A. tenha enviado qualquer ficheiro anexo, contendo um articulado;
• Juntamente com o requerimento referido em 4. o A. tenha remetido a este Tribunal qualquer articulado;
• Antes da data referida em 10, o A. tenha por qualquer modo, enviado ou entregue neste Tribunal o articulado ali mencionado;

Na sentença foram considerados provados os seguintes factos:
1. No dia 11/07/2000 o A., A foi admitido ao serviço da R. B – Empresa de Segurança, S.A., para trabalhar sob as ordens, direcção e fiscalização desta, como vigilante, mediante contrapartida em dinheiro.
2. Na sequência do referido em 1-, o passou a A. trabalhar para a R., como vigilante, nos termos ali referidos.
3. A R. atribui aos seus trabalhadores que desempenham as funções de vigilante um “Guia do Vigilante”.
4. O “Guia do Vigilante” referido em 3- estabelece, nomeadamente, o que segue:
“2.8 Motivos para suspensão imediata com processo disciplinar para despedimento com justa causa:
• Assalto; fazer ameaças físicas ou verbais;
• Causar incêndio premeditado;
• Roubar ou pilhar;
• Sabotar;
• Destruição de bens ou vandalismo;
• Desonestidade, aceitar subornos, encobrir alguém para realizar um roubo, acesso não autorizado a matéria confidencial, ou mentir;
• Uso inapropriado de armas;
• Insubordinação para com o Cliente, supervisor, ou pessoal da B;
• Desrespeitar ordens contidas no manual de posto, ordens especiais ou instruções verbais do supervisor ou do pessoal da direcção da B;
• Conduta imoral ou qualquer outro acto que viole as regras, regulamentos, ou a política co Cliente;
• Assédio sexual ou discriminação para o cliente, empregado, ou visitante;
• Intoxicação; beber ou estar sob a influência do álcool e drogas ilegais durante o serviço;”
5. No dia 25/02/2010, às 08h50m, o A. estava ao serviço do Cliente da R. Hospital ..., no posto da portaria sul, turno das 08h00m às 16h00m, quando telefonou para a Central, para falar com a supervisora D, trabalhadora da R..
6. Durante a conversa telefónica referida em 5-, o A. questionou a supervisora D acerca das horas de trabalho por si efectuadas, ao que esta lhe disse que deveria colocar essa questão ao departamento de recursos humanos da R..
7. Perante a resposta da supervisora D, o A. desligou o telefone, deixando a sua interlocutora a falar sozinha.
8. Dez minutos após a conversa referida em 5- a 7-, o A. voltou a telefonar para a supervisora D, e, usando um tom de voz arrogante e agressivo, disse-lhe que a mesma andava “a enganar os seus subordinados”.
9. Face ao referido em 8-, a supervisora D disse ao A. para exercer as suas funções de vigilante no posto de trabalho.
10. Cinco minutos após a conversa descrita em 8- e 9-, o A. voltou a telefonar para a supervisora D, e disse-lhe que iria gozar férias na semana seguinte.
11. Após a conversa referida em 10-, a supervisora D informou o director de departamento da R., sr. E, dos factos descritos em 5– a 10-.
12. … tendo o A. sido informado que se deveria apresentar no departamento de recursos humanos da R., a fim de ver esclarecidas as suas dúvidas, e que para o efeito iria ser substituído no seu posto.
13. Não obstante o mencionado em 12-, o A. recusou-se a sair do seu posto.
14. A supervisora D tentou convencer o A. a proceder nos termos descritos em 12-, mas não conseguiu.
15. … e, por se sentir ameaçada pelo A. e por recear pela sua integridade física, deslocou-se ao posto identificado em 3-, acompanhada pelos directores da R. E e F.
16. Ao ser abordado pela supervisora D e pelos directores da R. E e F o A. disse-lhes que “não os conhecia de lado nenhum pois estes não se encontravam identificados, podendo até ser uns “infiltrados””.
17. Face ao descrito em 16-, e porque entendeu que o A. se encontrava muito alterado, agressivo e ameaçador, o director da R. E chamou a polícia.
18. Cerca das 13h05m, perante interpelação da PSP de ..., o A. desfardou-se e saiu do posto referido em 3-, sendo rendido por outro vigilante.
19. … porém, ainda se trancou no W.C..
20. Pelas 13h35m, ao ser questionado pelo director F por causa da sua demora, o A. respondeu dizendo “Está a andar daqui para fora!”, “desampara-me a loja, vê lá se queres levar no focinho!”
21. O Cliente da R. Hospital ... teve conhecimento dos factos descritos em 3- a 20-.
22. Perante os factos descritos em 3- a 21-, foi apresentada “participação disciplinar”, e a R. instaurou procedimento disciplinar contra o A..
23. Na sequência do procedimento disciplinar referido em 23-, no dia 10/05/2010 a administração da R. emitiu a deliberação que se encontra a fls. 3, na qual decide “aplicar ao Senhor A a sanção prevista na alínea f) do nº 1 da Clª 38ª do CCT para o Sector da Vigilância: Despedimento sem qualquer indemnização ou compensação”.
24. O A. recebeu a deliberação mencionada em 23-, juntamente com a carta que se acha a fls. 2, que lhe foi enviada pela R., e na qual esta lhe comunica que decidiu aplicar-lhe a sanção referida em 23-; e ainda com cópia da comunicação escrita intitulada “RELATÓRIO FINAL DO PROCESSO DISCIPLINAR”, que se acha a fls. 4 a 17.

Apreciação
I - O Sr. Juiz fundamentou juridicamente a rejeição da contestação nos seguintes termos:
“Estabelece o art. 98º-L nº 1 do Código do Trabalho que o prazo para o trabalhador contestar o articulado do empregador é de quinze dias.
No caso dos autos o autor foi notificado da apresentação do articulado da R. por carta registada expedida em 14/07/2010, o que significa que tal notificação se considera efectuada em 20/07/2010 (posto que 17/07 foi um Sábado), pelo que o prazo em apreço se iniciou em 01/09/2010 e terminou em 16/09/2010 (vd. arts. 254º, nº 3, 143º e 144º do CPC, na redacção aplicável ao caso dos autos, que é a que lhe foi conferida pela Lei nº 35/2010, de 15/04, e 12º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, na redacção que vigorava antes da entrada em vigor da Lei nº 43/2010 de 03/09).
Por outro lado, decorre da factualidade provada que em 25/07/2010 o A. tentou, mas não conseguiu enviar o articulado através da aplicação informática “Citius”.
Porém, o autor não logrou demonstrar que tenha enviado o mesmo articulado a tribunal antes de esgotar o prazo que tinha para o fazer.
Na verdade, demonstrou ter preenchido o requerimento de interposição de acção que foi distribuído ao 4º Juízo, 1ª Secção, mas não demonstrou ter anexado ao mesmo qualquer ficheiro contendo tal articulado. Aliás os autos indiciam que tal anexo não foi remetido, porquanto o Sr. Oficial de Justiça do 4º Juízo consignou que tal articulado não constava do sistema.
Acresce que perante tais dificuldades, o autor podia e devia ter enviado a juízo o seu articulado através de correio, ou telefax, ou procedido à sua entrega em mão, neste Tribunal.
Com efeito, e como decorre claramente do disposto no art. 10º, nº 2 da Portaria 114/2008 de 06/02 (alterada pelas Portarias nºs 457/2008, de 20/06, 1538/2008, de 30/12, 458-B/2009, de 04/05, 975/2009, de 01/09, 65-A/2010/ de 29/01, 195-A/2010 de 08/04 e 471/2010 de 08/07), perante qualquer dificuldade técnica no envio de uma peça processual através do sistema “Citius”, a parte deverá usar os demais meios previstos no Código de Processo Civil, ou seja, os referidos no art. 150º deste diploma, que são precisamente os que acima referimos.
Não tendo demonstrado que o fez, forçoso será considerar intempestivo o articulado de fls. 78 a 83, visto que o mesmo foi remetido a juízo em 20/10/2010, ou seja, muito depois de esgotado o prazo de apresentação do mesmo.
Em consequência, e por todo o exposto, decide este Tribunal julgar o presente incidente procedente e em consequência julgar extemporâneo e de nenhum efeito o articulado do A., constante de fls. 78 a 83.”
Ora a argumentação do recorrente, salvo o devido respeito, não permite afastar esta fundamentação que, na sua essência, entendemos ser de manter. Com excepção de um pequeno pormenor, que decorre da circunstância de o processo (de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento) ter natureza urgente, cf. decorre do art. 26º nº 1 al. a) do CPT e, como tal, os respectivos prazos não se suspenderem nas férias judiciais, nem no período referido na al. c) do nº 1 do art. 143º do CPC, na redacção introduzida pelo DL nº 35/2010, de 15/4, atento o preceituado pelo art. 144º nº 5 al. b, na versão do DL 35/2010), uma vez que não se mostra que tivesse sido proferido despacho fundamentado que o determinasse. Deste modo, a notificação ao A. da apresentação da motivação do despedimento produziu efeito em 19/7 (2ª fª), começando o prazo para apresentar a contestação a correr no dia 20/7, terminou no dia 3/8 podendo ainda, mediante o pagamento de multa (art. 145º nºs 5 e 6 do CPC) ser apresentada até ao dia 6/8/2010.
Ao contrário do que vem sustentar, o recorrente não contestou tempestivamente pois, se é certo que a primeira tentativa de o fazer foi infrutífera por o sistema “Citius” responder que “o processo não foi encontrado”, apesar de identificar correctamente o número do processo, a 2ª tentativa, que consistiu em apresentar a contestação como petição, dando origem ao processo nº 2919/10.1TTLSB, também foi infrutífera porque se limitou ao preenchimento do formulário da petição inicial disponibilizado pelo sistema e que consta de fls. 50, omitindo a anexação como ficheiro do conteúdo material da peça processual, como é estabelecido no art. 5º nº 1 al. a) da Portaria 114/2008, de 6/2, na redacção da P. 1538/2008, de 30/12. Não temos qualquer indício de que isso se tenha devido a qualquer problema inerente ao próprio sistema CITIUS. Mas ainda que porventura fosse essa a razão da não anexação do conteúdo material da peça, isto é, do articulado de contestação à motivação do despedimento, o que, repetimos, não se mostra de todo indiciado, então impor-se-ia que, por aplicação extensiva do disposto no art. 10º nº 2 a 5 da referida Portaria 114/2008, se procedesse à apresentação da peça processual em causa “através dos restantes meios previstos no CPC”, ou seja no art. 150º nº 2 deste código, no prazo de cinco dias. O recorrente, todavia, não o fez.
Em face do exposto nenhuma censura nos merece a conclusão a que chegou o Sr. Juiz recorrido relativamente à intempestividade da contestação, que por isso não pode produzir qualquer efeito.
Assim, nesta parte improcede o recurso.

II- No que concerne à sentença, o recorrente vem impugná-la alegando que foram dados como provados factos que estavam por si impugnados em sede de resposta à nota de culpa e que não se teve em conta que o ónus de prova dos fundamentos do despedimento cabe à R..
Mas também quanto a esta matéria o recorrente carece de razão, dado que ignora os efeitos processuais da falta de contestação ao articulado do empregador, conforme determinado no art. 98º-L do CPT, quais sejam: “consideram-se confessados os factos articulados pelo empregador, sendo logo julgada a causa conforme for de direito”.
Foi precisamente o que sucedeu no caso, tendo-se cumprido pois inteiramente preceituado no referido normativo.
Se a lei determina que, na falta de contestação se consideram confessados os factos articulados pelo empregador, é manifesto que não há que atribuir à resposta à nota de culpa ou sequer ao requerimento inicial de oposição ao despedimento o efeito de impugnação antecipada da motivação, nem que proceder a audiência de julgamento.
Por isso e sem necessidade de maiores considerações, improcede totalmente a apelação, devendo confirmar-se a decisão recorrida.

Decisão
Tudo visto e ponderado, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso e conformar inteiramente o despacho e a sentença recorridas.
Custas pelo apelante.

Lisboa, 30 de Junho de 2011

Maria João Romba
Paula Sá Fernandes
José Feteira



NULIDADE DO CONTRATO DE TRABALHO – ABUSO DE DIREITO




Proc. Nº 118/09.4TTMAI.P1.S1   STJ       8 de Junho de 2011

1. É nulo o contrato de trabalho, celebrado na vigência do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, por acordo verbal e tempo indeterminado, entre o Estado e uma empregada de limpeza.
2. A invocação, pelo Estado, da nulidade desse contrato, para o fazer cessar imediatamente, não integra a figura do abuso do direito.
3. Cessando, esse contrato nulo, por invocação da nulidade, por parte do empregador/Estado, conhecendo este a invalidade, mas tendo-o mantido em execução, deve considerar-se parte de má-fé.
4. Nesse caso, estando a parte contrária de boa fé, tem direito a uma indemnização de antiguidade, nos termos do disposto no n.º 3 do art. 116.º do Código do Trabalho de 2003.

ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
 
I. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A SOLUCIONAR.
No Tribunal do Trabalho da Maia, AA, residente na …, ... .., ent. …, ...° Dtº., …, Maia, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra o Estado Português - (Ministério da Administração Interna/Polícia de Segurança Pública) - representado pelo Ministério Público, alegando, em síntese, que:
A Autora foi admitida pelo Réu, por ajuste verbal, para exercer a sua actividade profissional de auxiliar de limpeza nas instalações da Área do Comando Metropolitano do Porto, da Polícia de Segurança Pública, em 01/03/1997;
O seu local de trabalho era nas instalações da Esquadra da Maia da PSP, e o Réu, à semelhança dos demais trabalhadores subordinados ao seu serviço, atribuiu-lhe número de matrícula;
Desde a data da admissão, exerceu a sua actividade sempre sob a direcção e autoridade do Réu, recebendo ordens e instruções dos superiores hierárquicos que, de acordo com a estrutura do Comando Metropolitano do Porto, da PSP, tinham por função a fiscalização da actividade da Autora;
Para a execução das tarefas inerentes à sua actividade profissional, usava os instrumentos de trabalho fornecidos pelo Réu e estava sujeita a horário de trabalho determinado pelo mesmo, recebendo a correspondente remuneração de base mensal, acrescida de um subsídio de alimentação;
A qual era, e foi, paga todos os meses do ano civil (12 meses), bem como foram pagos, em cada ano, os correspondentes subsídios de férias e de Natal e sempre gozou de um período anual de férias remuneradas;
Em Janeiro de 2008, a sua remuneração base mensal ascendia a € 344,50 (trezentos e quarenta e quatro euros e cinquenta cêntimos), acrescida de € 4,03 (quatro euros e três cêntimos) diários de subsídio de refeição;
A Autora recebeu uma carta, datada de 10 de Dezembro de 2007, do Comando Metropolitano do Porto, da Polícia de Segurança Pública, e uma notificação pessoal datada de 20 de Dezembro de 2007, na qual lhe foi comunicado que o contrato que mantém com a Instituição é nulo e que, apesar da nulidade do contrato, não há lugar à reposição de quaisquer quantias pagas pelo tempo prestado, já que produz todos os efeitos. Para terminar informa que deixará de prestar serviço na PSP, decorridos que sejam sessenta dias após a recepção da notificação;
Por força da aludida comunicação, cessou a respectiva actividade ao serviço do Réu em 19 de Fevereiro de 2008;
A Autora foi despedida sem justa causa e sem prévio procedimento disciplinar e a alegação da nulidade do contrato traduz manifesto abuso de direito;
E nem sequer é verdade que o Réu estivesse legalmente impedido de contratar a Autora sob o regime do contrato individual de trabalho, que, pelo menos desde finais de 1998, era permitida.
Pediu que fosse:
- declarado que o contrato de trabalho outorgado pelo Réu com a Autora é válido;
- declarado que o despedimento da Autora é ilícito e, por conseguinte, nulo e de nenhum efeito;
- condenado o Réu a reintegrar a Autora no seu posto de trabalho, sem prejuízo da sua categoria profissional e antiguidade, sem prejuízo de esta poder optar, em sua substituição e até à data da sentença, pela indemnização prevista na lei;
- condenado o Réu a pagar à Autora salários e subsídios que se vencerem desde a data do respectivo despedimento até ao trânsito em julgado da sentença que vier a ser proferida, acrescida de juros de mora à taxa legal.
Ou, alternativamente, para o caso de se considerar nulo o contrato de trabalho outorgado pelo Réu com a Autora, que fosse:
- declarado que o Réu actuou de má fé quer na celebração do contrato de trabalho, quer na manutenção da respectiva execução, sabendo da invalidade que veio a invocar para lhe pôr termo;
- declarado ao invés, que a Autora sempre actuou de boa fé, quer no momento da outorga do contrato, quer durante toda a respectiva execução;
- condenado, em consequência, o Réu a pagar à Autora a indemnização prevista no art. 439.º, n.° 1 do Código do Trabalho, “ex vi” do art. 116.º, n.° 3, do mesmo Código.
Realizou-se, sem êxito, a audiência de partes e o Réu Estado, citado para contestar, fê-lo, alegando, em suma, que:
O contrato invocado pela Autora, no qual alicerça o seu pedido está ferido de nulidade, uma vez que não foi reduzido a escrito, de acordo com o disposto no art. 8.º, n.°s 1 e 3, da Lei n.° 23/2004 de 22 de Junho;
Nos termos do Decreto-Lei n.° 427/89, de 7 de Dezembro, a constituição de uma relação jurídica de emprego com a Administração Pública só pode ter lugar mediante a nomeação, contrato administrativo de provimento e contrato a termo;
Não foi isto que aconteceu com a Autora, pelo que o contrato verbal ajustado com a mesma era nulo e continuou inválido;
Mesmo com a entrada em vigor da Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho, o contrato continua a ser nulo.
Conclui que a acção deve ser julgada improcedente por não provada, com a sua absolvição do pedido, uma vez que o Estado Português não actuou de má fé, quer na celebração do contrato, quer na manutenção da respectiva execução.
Prosseguindo os autos os seus trâmites, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, na qual acordaram as partes fixar a matéria de facto provada, como consta da respectiva acta.
Proferiu-se, na sequência, sentença cujo segmento decisório foi o seguinte: julgar totalmente improcedente a presente acção e, em consequência, absolver o Réu Estado Português do pedido formulado pela Autora AA.
Inconformada, a Autora recorreu da sentença, pedindo a sua revogação e a procedência da acção.
Tendo os autos continuado os seus termos, veio a ser proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto, no qual se anuiu, por maioria, na seguinte decisão:
«Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida, que se substitui pelo presente acórdão e como tal:
- Declara-se que o contrato de trabalho celebrado entre a autora e o réu é válido, sendo ilícito o despedimento perpetrado na pessoa desta;
Condena-se o réu:
- A pagar à autora a indemnização por antiguidade, à razão de 30 dias de retribuição base, de € 344,50, por cada ano de antiguidade até ao trânsito em julgado da decisão judicial;
Bem como
- A pagar-lhe as retribuições vencidas desde 2008-02-19, considerando a retribuição auferida 14 vezes por ano, acrescida do subsídio de alimentação correspondente a 11 meses por ano, até trânsito em julgado da decisão do Tribunal.
Tudo a liquidar oportunamente».
Inconformado, agora, o Estado Réu, interpôs o mesmo recurso de Revista para este STJ, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:
1. Inexiste, no caso concreto, abuso de direito;
2. Na verdade, não constitui abuso de direito invocar a nulidade decorrente da inobservância da forma legalmente prescrita [existe impossibilidade de invocação do abuso de direito por inobservância da forma legalmente prescrita];
3. Acresce que a invocação de uma nulidade pela parte que dela aproveita não pode ter-se como abuso de direito, dado que apenas representa a sobreposição de regra processual ao direito substantivo, o que é legitimado pela norma que impõe um determinado procedimento em termos cominatórios;
4. Mas, mesmo que se admita essa possibilidade, ou seja, a de se invocar o abuso do direito em casos de nulidade por inobservância de forma, não se verifica ele no caso em apreço;
5. Com efeito, nestes casos específicos de pedido de declaração de nulidade de um negócio jurídico só excepcionalmente é que se pode admitir a invocação do abuso do direito, desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso do direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo;
6. Ora, da factualidade provada inexiste qualquer facto que aponte para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé;
7. Igualmente da matéria de facto provada não resulta que se tenha verificado qualquer situação objectiva de confiança, isto é, não se provou que a Autora estava convicta da validade do seu contrato de trabalho e, também, não se provou que o réu tenha agido/procedido de modo a criar naquela a convicção de que não iria invocar a nulidade do contrato:
8. Não se apurou, pois, qualquer matéria de facto de onde se possa extrair tais conclusões/ilações;
9. A invocação de nulidade do contrato de trabalho, por parte do empregador, não configura abuso do direito, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 334.° do Código Civil, no circunstancialismo em que se apura que a relação profissional entre as partes, que se manteve durante cerca de sete anos, foi qualificada, posteriormente à sua cessação, como de trabalho por tempo indeterminado, nulo por inadmissibilidade legal;
10. Por outro lado, acto administrativo é o acto jurídico unilateral praticado por um órgão da Administração no exercício do poder administrativo e que visa a produção de efeitos jurídicos sobre uma situação individual num caso concreto;
11. Ora, o "Estado Português" ao celebrar um contrato individual de trabalho não está a praticar qualquer acto administrativo;
12. É que só os actos praticados no exercício de um poder público para o desempenho de uma actividade administrativa de gestão pública é que são actos administrativos;
13. Logo, não são actos administrativos os actos jurídicos praticados pela Administração Pública no desempenho de actividade de gestão privada;
14. É este o caso dos autos - celebrar um contrato individual de trabalho é um acto de gestão privada;
15. Não é, aqui, deste modo, aplicável a figura da usucapião;
16. A interpretação feita no acórdão recorrido do artigo 334°, do CC, é inconstitucional, por violação do artigo 47°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa, pois permite a validação de contratos sem termo, nulos por falta de forma, sem haver qualquer procedimento de recrutamento e selecção de eventuais candidatos à contratação que garanta o acesso em condições de liberdade e de igualdade.
Termos em que concedendo-se a presente revista, revogando-se o acórdão recorrido e, consequentemente, mantendo-se a sentença da 1.ª instância, se fará JUSTIÇA.
A A. contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida e concluindo:
1. Existe, de facto, no caso concreto manifesto abuso do direito
2. Ora, uma das concretizações do abuso do direito, na modalidade do “venire contra factum proprium” ocorre nas situações de inalegabilidade formal quando, como se tem entendido... "num primeiro tempo o agente daria azo a uma nulidade formal, prevalecendo-se do negócio (nulo) assim mantido enquanto lhe conviesse; na melhor (ou pior) altura, invocaria a nulidade, recuperando a sua liberdade. Haveria uma grosseira violação da confiança com a qual o sistema não poderia pactuar." (Conf. António Menezes Cordeiro, in Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa "in Agendo", Almedina, 2006, pag. 54 e in Da Boa Fé no Direito Civil, cit pag. 771 e segs).
3. Vistos os factos provados, afigura-se-nos que o contrato dos autos é facilmente qualificável como de trabalho, por tempo indeterminado, tendo o acordo das partes sido feito por ajuste verbal, verificando-se a subordinação jurídica e económica e toda uma série de factos índice que nos permitem concluir que as partes celebraram um contrato de trabalho, atenta a definição constante do art. 1.° do regime jurídico aprovado pelo Decreto--Lei n.° 49.408 de 1969.11.24, do art. 1.152.° do Código Civil e do art. 10.° do Código de Trabalho de 2003, diploma este vigente na data em que o R. fez cessar o contrato de trabalho.
4. O Réu pagou a retribuição à A. através de transferência bancária, atribuindo número de matrícula à A., procedeu aos descontos legais para a Segurança Social e IRS e dirigiu a actividade da A. e a A. sempre executou o contrato agindo de boa fé.
5. A atitude do R. ao fazer cessar o contrato de trabalho com fundamento (decorridos 11 anos) na inobservância da forma escrita do contrato e da modalidade legal taxada, é desproporcional, pois conduz a resultados que desequilibram de forma injusta a posição de cada uma das partes, descartando-se o R. do vínculo quando foi ele que ocasionou a inobservância da forma e colocando a A. sem trabalho quando ela se limitou a cumprir o que lhe foi ordenado pelo R. e durante 11 (onze) anos. O direito não pode, a nosso ver, consentir com tamanha desproporção de comportamentos e suportar as respectivas consequências.
6. Pelo que, o R. agiu sem direito, antijuridicamente declarando a cessação do contrato sem invocação de justa causa apurada em prévio processo disciplinar o que conduz à ilicitude do despedimento, com as legais consequências.
7. Decorrido o prazo de 11 (onze) anos e revestindo-se o exercício de funções das características já apontadas, portanto, sem oposição de ninguém, ininterruptamente e à vista de toda a gente, os agentes de facto, admitidos mediante acto administrativo nulo ou inexistente, tornavam-se agentes de direito e
8. Embora se possa considerar excepcional a figura desta espécie de usucapião, a verdade é que ela poderá constituir um meio de solucionar situações de facto que, de outro modo, se traduziram em algo de aberrante, como sucedeu in casu.
9. Tendo a A. adquirido por usucapião o direito ao lugar, a mesma foi ilicitamente despedida.
Termos em que, deverá manter-se o acórdão recorrido do Venerando Tribunal da Relação do Porto.
Foram colhidos os legais vistos, pelo que cumpre enunciar as questões que se colocam à apreciação, que são as relativas:
a) à usucapião, enquanto pretenso estribo da validade do contrato.
b) ao abuso de direito, enquanto pretenso fundamento de despedimento ilícito.
C) à inconstitucionalidade do art. 334.º do CC, na interpretação feita pelo acórdão recorrido.
II.   FUNDAMENTOS DE FACTO.
A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos, que o Tribunal da Relação não alterou:
A) A Autora foi admitida pelo Réu, por ajuste verbal, para exercer a sua actividade profissional de auxiliar de limpeza, nas instalações da Área do Comando Metropolitano do Porto, da Polícia de Segurança Pública, em 01/03/1997 (doc. 1).
B) Iniciou a Autora, naquela mesma data, a actividade profissional para que foi admitida.
C) A limpeza e arrumação das instalações, na Esquadra da PSP da Maia, que constituiu, desde a data da respectiva admissão, o seu local de trabalho.
D) À Autora, o Réu atribuiu a categoria profissional de auxiliar de limpeza, tudo como se alcança do recibo de remunerações emitido pelo R. (doc. 2).
E) À Autora, o Réu, à semelhança dos demais trabalhadores subordinados ao seu serviço, atribuiu número de matrícula.
F) À Autora foi atribuído o número de matrícula 900.045, como se alcança do recibo de remunerações emitido pelo R. (doc. 2).
G) Desde a data da admissão, a Autora exerceu a actividade correspondente à referida categoria profissional sempre sob a direcção e autoridade do Réu.
H) Recebendo ordens e instruções dos superiores hierárquicos que, de acordo com a estrutura do Comando Metropolitano do Porto, da PSP, tinham por função a fiscalização da actividade da Autora.
I) Para a execução das tarefas inerentes à actividade profissional da Autora, esta usava os instrumentos de trabalho fornecidos pelo Réu, nomeadamente, vassoura, panos, detergentes e todo o mais material de limpeza necessário.
J) A actividade profissional da Autora era exercida com sujeição a horário de trabalho determinado pelo Réu.
K) A Autora trabalhava nos dias úteis, Sábados e feriados, das 08.00 horas às 13.00 horas, tendo como dia de descanso semanal, o Domingo.
L) Pela actividade profissional desenvolvida pela Autora, o Réu pagava a correspondente remuneração base mensal, acrescida de um subsídio de alimentação.
M) A remuneração base mensal era, e foi, paga todos os meses do ano civil (12 meses), bem como foram pagos, em cada ano, os correspondentes subsídios de férias e de Natal.
N) A Autora sempre gozou, tal como todos os demais trabalhadores subordinados ao serviço do Réu, um período anual de férias remuneradas.
O) Desde a data da respectiva admissão até Fevereiro de 2008 - o Réu fez cessar a actividade profissional que a Autora, desde então, lhe vinha prestando - o Réu procedeu mensalmente aos correspondentes descontos para a Segurança Social (Regime Geral), à taxa aplicável ao trabalho subordinado.
P) A remuneração base e demais abonos mensais eram pagos pelo Réu à Autora através de transferência bancária para a conta que esta detinha na Caixa Geral de Depósitos, cujo NIB se encontra devidamente identificado no recibo de remunerações. (doc. 2).
Q) Em Janeiro de 2008, a remuneração base mensal da Autora ascendia a € 344,50 (trezentos e quarenta e quatro euros e cinquenta cêntimos), acrescido de € 4,03 (quatro euros e três cêntimos) diários de subsídio de refeição.
R) Nesse mês de Janeiro de 2008, a Autora, após os descontos para a Segurança Social, a remuneração líquida foi de € 383,17 (trezentos e oitenta e três euros e dezassete cêntimos).
S) O Réu convocou a Autora para uma reunião no edifício do Comando Metropolitano do Porto, da P.S.P., que se realizou em 20 de Dezembro, conf. cópia do fax que se junta - doc. 3 - e na qual foi entregue uma carta dirigida à A., datada de 10 de Dezembro de 2007 e uma notificação pessoal datada de 20/12/2007, tendo nessa carta o Réu comunicado a cessação do respectivo contrato de trabalho, com efeitos produzidos 60 dias após a recepção da aludida carta.
T) Por força da aludida comunicação, a Autora cessou a respectiva actividade ao serviço do Réu em 19 de Fevereiro de 2008.
U) Cessação que decorreu exclusivamente da iniciativa do Réu pelas razões alegadas na aludida comunicação.
V) O Réu, na referida comunicação dirigida à Autora, declarou o que a seguir se transcreve: "A PSP celebrou contrato não escrito com V. Exa. em (...), para a prestação de serviços de limpeza (...) do Comando Metropolitano do Porto. O contrato que esta instituição mantém com V. Exa. é nulo, nos termos do n.° 1, do art. 14.° e art. 16.° do Decreto-Lei n.° 427/89, de 7 de Dezembro e do art. 10.°, n.° 4 deste diploma, na redacção que lhe foi dada pelo D/L n.° 218/98, de 17/9, decorrendo daqui responsabilidade civil, disciplinar e financeira para os funcionários e agentes que não ponham termo à prestação de serviço na situação de V. Exa..
Apesar da cominação legal de nulidade deste contrato, não há lugar à reposição de quaisquer quantias pagas pelo tempo prestado por V. Exa., já que o contrato produz todos os efeitos.
Nestes termos, no uso de competência delegada e ao abrigo do art. 134.° do CPA, notifico V. Exa. que deixará de prestar serviço na PSP, decorridos que sejam sessenta dias após a recepção da presente notificação".
III. FUNDAMENTOS DE DIREITO.
Antes de entrarmos na análise das questões suscitadas no recurso, e para melhor enquadramento das mesmas, importa apresentar as seguintes considerações:
No acórdão recorrido, como na sentença, conclui-se, antes de mais, que o contrato celebrado entre a Autora e o Estado é nulo, por celebrado através de modalidade não admitida por lei e por inobservância da forma escrita.
No entanto, na Relação, após assim se concluir e de se considerar que a Autora, face ao contexto fáctico, celebrou e executou o contrato, agindo de boa fé, admitiu-se que o Réu Estado actuou de má fé e com abuso de direito, proferindo um despedimento ilícito.
Considerou-se ainda que no caso vertente a Autora adquiriu direito ao lugar através da figura da usucapião.
Ou seja, fazendo uma síntese do entendimento seguido pelo tribunal da Relação, entendimento que não foi unânime por ter voto de vencido, temos que foi o de considerar que o contrato de trabalho celebrado entre as partes é de haver por nulo, por não ter sido celebrado em qualquer das modalidades previstas na lei, nem observar a forma escrita. Mas por se verificar abuso do direito por parte do Estado, ao contratar a autora e a mantê-la ao serviço, com actuação de má fé, por saber que o contrato era nulo, proferiu o Estado Réu um despedimento ilícito, despedimento que sempre seria ilícito por a Autora ter adquirido direito ao lugar através de uma “espécie de usucapião” e não ter sido observado o legal formalismo para a cessação do contrato.
Sendo entendimento já pacífico dentro do processo que o contrato firmado entre as partes foi nulo, importa, essencialmente, verificar se, apesar disso, a Autora adquiriu direito ao lugar pela invocada usucapião e, em todo o caso, se existiu, de facto, abuso do direito por parte do Estado Réu ao contratar a autora e ao colocar termo ao contrato e se tal abuso teve a consequência de um despedimento ilícito e se há obrigação de indemnizar. Coloca-se ainda a questão da invocada inconstitucionalidade.
a) Quanto à invocada usucapião.
Alega o Recorrente que o "Estado Português" ao celebrar um contrato individual de trabalho não está a praticar qualquer acto administrativo porque só os actos praticados no exercício de um poder público para o desempenho de uma actividade administrativa de gestão pública é que são actos administrativos, não sendo actos administrativos os actos jurídicos praticados pela Administração Pública no desempenho de actividade de gestão privada.
É este o caso dos autos - celebrar um contrato individual de trabalho é um acto de gestão privada, não sendo, aqui, deste modo, aplicável a figura da usucapião.
Por seu lado, alega a Recorrida que, decorrido o prazo de 11 (onze) anos e revestindo-se o exercício de funções das características apontadas, portanto, sem oposição de ninguém, ininterruptamente e à vista de toda a gente, os agentes de facto, admitidos mediante acto administrativo nulo ou inexistente, tornavam-se agentes de direito e embora se possa considerar excepcional a figura desta espécie de usucapião, a verdade é que ela poderá constituir um meio de solucionar situações de facto que, de outro modo, se traduziram em algo de aberrante, como sucedeu in casu. Tendo a A. adquirido por usucapião o direito ao lugar, a mesma foi ilicitamente despedida.
Ora, entende-se que não é de seguir o entendimento defendido no Acórdão recorrido, entendimento - que a Recorrida, obviamente, também defende - de esta ter adquirido direito ao lugar por usucapião.
Quando art. 134.°/3, do CPA, diz que o acto administrativo nulo não prejudica a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito, certamente que não se está a reportar à figura jurídica da usucapião, nem a abrir caminho para qualquer figura semelhante, uma “espécie de usucapião”, cujo prazo, deva corresponder ao da usucapião de bens móveis.
Qualquer instituto jurídico carece de expressa consagração na lei, não cabendo ao intérprete congeminar outros institutos à imagem dos existentes. Admitir uma “espécie de usucapião” à semelhança da que a lei consagra é construir mera ficção sem qualquer sustentáculo jurídico.
Procurar defender-se que o exercício de determinada função ao serviço do Estado durante longos anos, de forma pública, pacífica, sem oposição de ninguém e aos olhos de toda a gente, apesar de o contrato ser nulo perante a lei, se traduz numa situação laboral de facto, tão consolidada que não podia deixar de criar no trabalhador a confiança de que o vínculo continuaria a perdurar ao longo do tempo e que era válido, não parece que seja de entendimento pacífico.
Por outro lado, não parece ter suporte na lei defender-se que a autora embora admitida irregularmente em termos formais, acabou por desempenhar funções durante mais de 10 anos, como se regular fosse o vínculo, devendo o mesmo, como tal, desde o início ser considerado com o correspondente direito ao lugar por parte da autora, através da figura da usucapião.
Mas aplicar a figura da usucapião porquê?
Só se for por aplicação analógica da lei, como parece estar subjacente na pronúncia da decisão recorrida, quando se apela ao prazo de usucapião dos bens móveis.
Mas não se vislumbra que a lei contenha lacuna para se lançar mão da aplicação analógica. E se lacuna existisse, sempre estaria vedado o recurso à figura da usucapião consagrada em sede de direitos reais, por se tratar de regulamentação através de normas excepcionais [art. 11.º do CC] e por as razões justificativas de regulamentação não serem as mesmas [art. 10.º/2 do CC], sendo que, em todo o caso, sempre seria de concluir pela inoperância da usucapião no âmbito de um contrato de trabalho.
A lei regula os termos em que o Estado celebra contratos de trabalho com particulares, prevendo as modalidades e formalidades respectivas, não se vendo que careça de regular as situações em que os contratos sejam elaborados em desconformidade, pois que subjacente à inobservância está a estatuição da lei geral, não se exigindo qualquer prevenção em particular.
Por isso, não existe qualquer fundamento para invocar lacuna da lei.
Por outro lado, as normas relativas à figura da usucapião aplicável em sede de direitos reais são normas de carácter excepcional, previstas apenas para os direitos reais de gozo (até com excepção de alguns deles), insusceptíveis de aplicação analógica. Além de que as razões justificativas da regulação não assentariam em idêntico pressuposto de uma posse de natureza corpórea nem em idêntico interesse tutelado.
Do que se conclui que o contrato dos autos, que é de considerar como nulo, não se convolou em contrato válido através de usucapião.
b) Quanto ao abuso do direito:
Nos termos do art. 334º CC "é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito".
Perante o preceituado neste artigo, o exercício do direito não deve exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, por a todos se impor uma conduta de acordo com os padrões da diligência, da honestidade e da lealdade exigíveis no comércio jurídico.
Assim, os sujeitos de determinada relação jurídica devem actuar como pessoas de bem, com correcção e probidade, de modo a contribuir, de acordo com o critério normativo do comportamento, para a realização dos interesses legítimos que se pretendam atingir com a mesma relação jurídica.
Os limites impostos pela boa fé são excedidos, designadamente, quando alguém pretenda fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior, quando tal conduta objectivamente interpretada, de harmonia com a lei, justificava a convicção de que se não faria valer o mesmo direito.
O mesmo se diga dos limites impostos pelos bons costumes, ou seja, pelo conjunto de regras éticas de que costumam usar as pessoas sérias, honestas e de boa conduta na sociedade onde se inserem.
Por outro lado, os direitos devem ser exercidos de acordo com o fim social e económico para que a lei os concebeu. Se forem exercidos para fins diferentes daqueles para que a lei os consagrou, ainda que tal exercício seja útil ao seu autor, poderá haver abuso do direito, se tal exercício ofender claramente a consciência social dominante.
Para Manuel de Andrade “há abuso do direito quando o direito, legítimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a de o titular do direito ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual” [Teoria Geral das Obrigações, 3.ª ed., pg. 63-64].
De outro ponto de vista, o acto abusivo é, em regra, no pensamento de Vaz Serra, o acto de exercício de um direito que, intencionalmente, causa danos a outrem, por forma contrária à consciência jurídica dominante na colectividade social. Só excepcionalmente se prescindindo da intenção de prejudicar terceiros quando a contraditoriedade àquela consciência, isto é, à boa fé e aos bons costumes, for clamorosa ou quando o direito for exercido para fim diverso daquele para que a lei o concede [“Abuso do Direito", in BMJ nº 85, pág. 253, também citado por F. A. Cunha de Sá in Abuso do Direito, pg. 127].
Noutra perspectiva, para A. Varela, "para que haja lugar ao abuso do direito é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito” [Das Obrigações em Geral, vol. I, 6ª ed., pág. 516].
Daí que o exercício de um direito só poderá haver-se por abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou seja, quando esse direito seja exercido em termos gritantemente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante [Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, pág. 299].
Na sequência do ensinamento dos ilustres mestres, poder-se-á dizer, em síntese:
Existirá abuso do direito quando alguém, detentor aparentemente de um determinado direito válido, o exercita, todavia, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, apodicticamente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado.
Ora, em face destes princípios será de perguntar se o comportamento do Estado Réu, ao celebrar por mero ajuste verbal o contrato, ao mantê-lo por cerca de 11 anos e ao fazê-lo cessar, com fundamento em nulidade baseada na inobservância da forma escrita do contrato e da modalidade legal taxada, terá actuado com abuso de direito.
A resposta num ou noutro sentido, não será certamente isenta de dúvidas e de merecer o respeito de um juízo sustentável.
            Porém, em caso idêntico já julgado neste Supremo Tribunal, em 01.06.2011 [Proc. n.º 156/09.7TTVNG.P1.S1] sufragou-se como melhor entendimento o de não considerar a actuação do Estado Réu como uma actuação com abuso de direito.
            E não se vê motivo para não seguir esta orientação.
   
Na verdade, a lei faculta invocar a todo o tempo a nulidade por parte de qualquer interessado [art. 286.º do CC] e no caso não se descortina que o Estado Réu, ao invocar a nulidade do contrato, tenha agido com intenção de causar prejuízo à Autora, antes sendo de afastar tal desiderato e, por outro lado, dada a natureza do empregador em causa, aproveita-lhe a utilidade do exercício do direito, no objectivo da resolução de uma situação que, porventura, dificilmente pudesse ser sustentada ou resolvida em termos diferentes.
Por isso, o comportamento do Estado Réu não está naquele patamar em que se excede manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou em que o exercício do direito tenha sido em termos gritantemente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante.
Considera-se, pois, inexistir abuso do direito no presente caso.
Deste modo, não existindo abuso do direito por parte do Estado Réu, não é sustentável o entendimento de o mesmo dever manter a relação de trabalho com a Autora, nem o de ter proferido um despedimento ilícito, ao invocar a nulidade do contrato.
Nem ainda o entendimento de o Estado Réu ter obrigação de indemnizar, fundada em abuso do direito.
Por isso, relativamente ao pedido da Autora de que seja declarado que o contrato de trabalho outorgado pelo Réu com a mesma Autora é válido e o despedimento ilícito e de que o Réu seja condenado a reintegrá-la no seu posto de trabalho e a pagar-lhe os salários e os subsídios que se vencerem desde a data do respectivo despedimento até ao trânsito em julgado da sentença, a acção não pode deixar de improceder.
Ou seja, a Autora não tem direito a qualquer indemnização ou compensação, a que aludem os artigos 435.º a 436.º do Código do Trabalho de 2003, previstas para o efeitos da ilicitude do despedimento, porque não houve despedimento.
Mas a Autora formulou um pedido subsidiário, para o caso de se considerar nulo o contrato de trabalho outorgado pelo Réu com a mesma Autora, isto é, de que seja declarado que o Réu actuou de má fé, quer na celebração do contrato de trabalho, quer na manutenção da respectiva execução, sabendo da invalidade que veio a invocar para lhe pôr termo, condenando-se, em consequência, o Réu a pagar à Autora a indemnização prevista no art. 439.º, n.° 1 do Código do Trabalho, «ex vi» do art. 116.º, n.° 3, do mesmo Código.
Ora, a má fé do Estado Réu decorre, efectivamente, do facto de o mesmo não poder ignorar a invalidade do contrato, enquanto que, em relação à Autora, se presume a sua boa fé, por não lhe ser exigível conduta diferente da de cumprir os deveres impostos pela relação de trabalho que assumiu.
Porque o contrato celebrado entre as partes foi, efectivamente, nulo e porque à situação se consideram aplicáveis os preceitos citados, por força dos artigos 2.º/1 e 26.º/1 da Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho, há que reconhecer direito à Autora à indemnização de antiguidade prevista no art. 439.º, n.° 1 do Código do Trabalho, considerando-se adequado fixá-la em 30 dias de retribuição (que era de € 344,50 mensais), por cada ano completo ou fracção de antiguidade, a contar de 01.03.1997 até à presente data, a qual perfaz o montante de € 5.167,50 [344,50x15].
C) Quanto à alegada inconstitucionalidade do art. 334.º do CC, na interpretação feita pelo acórdão recorrido.
Alega o Recorrente que a interpretação feita no acórdão recorrido do artigo 334°, do CC, é inconstitucional, por violação do artigo 47.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa, pois permite a validação de contratos sem termo, nulos por falta de forma, sem haver qualquer procedimento de recrutamento e selecção de eventuais candidatos à contratação que garanta o acesso em condições de liberdade e de igualdade.
Ora, esta questão resulta prejudicada em face da solução dada ao recurso, não interessando já saber se a decisão recorrida fez interpretação do artigo 334.º do CC susceptível de incorrer em inconstitucionalidade, pois que se extraem deste normativo, aplicado ao caso dos autos, consequências diferentes das tiradas pela Relação.
Não há, pois, que apreciar esta questão.
Procedem, em parte, as conclusões do recurso, havendo que alterar em consonância o acórdão recorrido.
IV.  DECISÃO:
Em conformidade com os fundamentos expostos, concede-se parcialmente a Revista e altera-se a decisão recorrida, condenando-se o Estado Réu apenas na indemnização de antiguidade acima descrita.
Custas pela Autora e pelo Estado réu em conformidade com o respectivo decaimento.
[Anexa-se o sumário elaborado nos termos do artigo 713, n.º 6, do CPC]
Lisboa, 8 de Junho de 2011. 
                             
Pereira Rodrigues (Relator)
Pinto Hespanhol
Fernandes da Silva