sexta-feira, 9 de novembro de 2012

SUSPENSÃO DO DESPEDIMENTO - DEVER DE LEALDADE



Proc. Nº 4635/11.8TTLSB.L1-4   TRL   18.04.2012

I - O direito disciplinar, à imagem do direito contra-ordenacional e penal, não permite imputações hipotéticas, dúbias, possíveis ou sequer prováveis mas reclama antes factos, provas e certezas (ainda que não necessariamente absolutas) para poder ser legitimamente accionado.
II - O dever de informação a que o trabalhador está obrigado tem um conteúdo essencialmente funcional (porque respeitante a «aspectos relevantes para a prestação da actividade laboral»), referente à sua própria pessoa e situação e não de terceiros e tem de respeitar os direitos de personalidade do mesmo, «salvo quando sejam estritamente necessárias e relevantes para avaliar da respectiva aptidão no que respeita à execução do contrato de trabalho» - artigos 106.º, número 2, 109.º, números 1 e 3, 16.º e 17.º do Código do Trabalho de 2009.
III - O direito de o empregador despedir o trabalhador só surgirá caso se demonstre que o mesmo passou dados confidenciais ou reservados ao cônjuge ou que, em conluio com este, está a fazer “concorrência desleal” com a empresa ou que actuou, de outras formas, em violação do referido dever de lealdade (cf. artigo 351.º do Código do Trabalho de 2009).
IV - Dos artigos 58.º da Constituição da República Portuguesa, 128.º, número 1, alínea f) e 136.º e 138.º do Código do Trabalho de 2009 ressalta que a liberdade de trabalho é um dos direitos fundamentais do cidadão em geral, que só pode ser restringido nas circunstâncias e condições que se acham legalmente consagradas naquelas ou noutras disposições normativas, referindo-se todas elas, no que toca à proibição de concorrência, ao trabalhador individualmente considerado e não ao seu universo familiar ou afectivamente mais próximo.
ACORDAM NESTE TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – RELATÓRIO

AA, (…) intentou, em 13/12/2011, Procedimento Cautelar de Suspensão de Despedimento contra BB – ALUGUER DE AUTOMÓVEIS, S.A., (…), pedindo, em síntese, o seguinte:
Nestes termos e nos mais de direito, requer a Vossa Excelência se digne decretar a suspensão do despedimento da Requerente, atendendo ao facto de se verificar inexistência de justa causa, de harmonia com o disposto no citado artigo 39.º, número 1, do Código do Processo do Trabalho, sendo a Requerente reintegrada no seu posto de trabalho, com pagamento das retribuições vencidas e vincendas que deixaram de ser pagas desde a data do despedimento, com as legais consequências.
Mais declara requerer que seja declarada a ilicitude do despedimento, com as legais consequências
*
A Requerente, para fundar tal pedido, alegou, em síntese, que a Requerida lhe instaurou um processo disciplinar que terminou com decisão de despedimento, verificando-se a probabilidade séria de inexistência de justa causa, não sendo verdade que tenha faltado à verdade perante a sua entidade empregadora, omitindo a profissão do seu marido, sendo que este aliás se encontra desempregado desde 2009, e a empresa dita concorrente “CC” pertence ao pai do marido da Requerente (sócio gerente), nenhuma prova existido de que a Requerente tenha desviado clientela ou veiculado informações a terceiros.
Juntou documentos e arrolou prova testemunhal.
*
Citada a Requerida, através de carta registada com Aviso de Recepção (fls. 54 e 55), conforme despacho proferido nesse sentido a fls. 50 e 51, com data de 14/12/2011, veio a mesma, em 03/01/2012, deduzir oposição nos termos constantes do articulado de fls. 57 e seguintes, alegando que o Requerente violou sobretudo o dever de lealdade para com o empregador, porque mentiu ou, pelo menos, ocultou que o seu marido trabalhava há cerca de um ano e meio para uma empresa concorrente de rent-a-car a “CC – ALUGUER DE VIATURAS SEM CONDUTOR LDA”.
Juntou o processo disciplinar e arrolou testemunhas.
*
Foi designada data para a Audiência Final, que decorreu com observância do legal formalismo (fls. 81 a 84), onde foi dispensada a produção de qualquer prova, para além da constante do processo disciplinar apenso, vindo a ser proferida a sentença de fls. 85 e seguintes, com data de 06/01/2012, que, por entender que se verifica uma probabilidade séria de inexistência de justa causa, decidiu o seguinte:
“Pelo exposto, julgo procedente a providência cautelar e decreto a suspensão do despedimento da Requerente.
Custas pela Requerida.
Registe e notifique.”
A sentença em causa fundou o seu juízo na seguinte fundamentação fáctica e jurídica:
«De acordo com o disposto no art.º 39.º do Código do Processo do Trabalho, a suspensão do despedimento colectivo é decretada caso se conclua pela probabilidade séria da ilicitude do despedimento.
Utiliza-se uma fórmula aberta, não taxativa, a completar com as normas substantiva laborais que regem as formalidades e requisitos de cada tipo de despedimento – o código do trabalho.
Assim, e no que ao caso interessa, e concretizando esta cláusula geral, o despedimento será ilícito se o motivo justificativo for julgado improcedente - art.º 381.º, 1, al. b), CT (e também o próprio art.º 39.º, 1, b), do CPT).
O motivo será julgado improcedente se o comportamento culposo do trabalhador, atendendo à sua gravidade e consequências, não torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho – 396.º, 1, CT.
Esse comportamento culposo do trabalhador traduz-se numa infracção disciplinar, isto é, numa acção ou omissão, culposa, que viole os deveres contratuais e a disciplina da empresa. E a impossibilidade da subsistência é sinónimo de inexigibilidade ao empregador, em termos de normalidade comum, de continuar vinculado a uma relação laboral, porque a actuação do trabalhador fere de modo muito significativo e desmesurado a sensibilidade de uma pessoa comum colocado na posição do empregador.
Invoca basicamente a empregadora a violação do dever de lealdade previsto no art.º 128, n.º 1, al. f) do CT, baseado numa alegada mentira da requerente ou omissão sobre uma actividade concorrente que o seu marido desempenharia.
É certo que este dever implica que genericamente o trabalhador se abstenha de qualquer acção contrária aos interesses da entidade patronal, sendo uma decorrência do princípio da boa fé.
Contudo, esta ideia geral necessita de ser alicerçada em facto concretos, seguros, e suficientemente fortes para se subsumirem em tal conceito, caso contrária nela caberiam inúmeras situações que na vida ocorrem e que abstractamente são contrárias ao interesse do empregador.
E, a verdade é que, o dever de lealdade, no que à questão da concorrência se refere, implica, segundo a lei, a obrigação do próprio trabalhador não negociar por conta própria ou alheia em actividade concorrente, em divulgando informação referente à sua organização, métodos de produção ou negócios, não se estendendo tal obrigação à sua família.
Mais, nada de concreto a empregadora alega e prova, no que se refere à divulgação pela trabalhadora de informação referente à empresa, limitando-se a citar o número de telefonemas por esta feitos ao marido durante um certo mês, sem que daí se retire qualquer outro facto concreto sobre o respectivo conteúdo ou consequências, desconhecendo-se o tema das conversas, e sendo certo que igualmente ficou indiciado um quadro pessoal de saúde que torna compreensível uma maior contacto.
Também a empregadora não acusa a trabalhadora de transmitir informação referente à empresa, ou a existência de prejuízos.
Valoriza, sim, a Requerida a mentira/omissão da Requerente referente à situação profissional do seu marido.
Neste aspecto diremos o seguinte:
* Não ficou provado que, há um ano e meio, no preciso momento da conversa com o superior hierárquico, o marido da Requerente já colaborasse com a empresa CC, o era importante saber, pois só assim se pode saber se mentiu ou não. Efectivamente, dizer que a colaboração do seu marido com a CC se iniciou por volta da conversa com o seu chefe DD, não comprova se foi antes ou depois.
* Não ficou provado que tipo de colaboração manteve o marido da Autora com a tal empresa CC, muito menos que seja um cargo de direcção, acusação que a empregadora aliás abandonou na decisão final (veja-se n.º 10 em confronto com n.º 9 da Nota de Culpa).
* Não ficando provado com um mínimo de segurança que tipo de relação/colaboração/cargo mantém com tal empresa, nem sequer é possível avaliar o tipo de perigo/risco de divulgação que teoricamente pode existir (ex. transportar carros é diferente de angariar clientes…)
* Ficou provado que efectivamente já algum tempo atrás o marido da Autora “colabora e anda com carros”, pretendendo adquirir as quotas da sociedade de seu pai.
Ora, quanto à intenção de adquirir quotas, esta era já do conhecimento do superior hierárquico há um ano e meio (conforme matéria provada, decorrente do auto de declarações, único meio de prova quanto a esta conversa).
Quanto ao mais, poderemos concordar que haverá aqui uma omissão, um ocultar por parte da trabalhadora, facto que, por tudo o supra dita, só por si, desassociados de outros indícios fortes, falta de concretização da colaboração/ “relação estreita” (palavras da Requerida), ausência de factos praticados pela Requerente demonstrativos de divulgação de informação referente à Requerida, ou desse perigo, nos leva a concluir ser muito exagerado aplicar à Requerente – com boa avaliação de desempenho e sem registo disciplinar – a sanção máxima de despedimento. Se a isto associarmos a audição da Requerente no dia 24.10.11 para efeitos de aproveitamento de prova disciplinar, com a assinatura no mesmo dia do “acordo de revogação do contrato de trabalho”, com indemnização muito aquém da devida considerando o número de anos de casa, mais nos parece que a Autora foi alvo de um despedimento precipitado, com pouca prova, e poucos factos fortes e relevantes para despedimento.
Assim, concluímos pela probabilidade séria de inexistência de justa causa, sendo o despedimento manifestamente desajustado ao comportamento objectivo da Requerente e à sua culpa.»
*
A Requerida, inconformada com tal decisão, veio, a fls. 104 e seguintes e em 23/01/2012, interpor recurso da mesma.
O juiz do processo admitiu, a fls. 133, o recurso interposto, como de apelação, tendo determinado a sua subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, por força do depósito, pela recorrente, da quantia equivalente a seis meses de retribuição.
A Apelante apresentou alegações de recurso (fls. 105 e seguintes) e formulou as seguintes conclusões:
(…)
*
Notificado a Requerente para responder a tais alegações, veio a mesma fazê-lo dentro do prazo legal, nos moldes constantes de fls. 129 e seguintes, tendo formulado as seguintes conclusões:
(…)
*
O ilustre magistrado do Ministério Público proferiu parecer no sentido da improcedência do recurso de Apelação (fls. 139 e 140), não tendo as partes se pronunciado sobre o mesmo dentro do prazo legal.
*
Tendo os autos ido aos vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
II – OS FACTOS

O tribunal da 1.ª instância recorrido considerou indiciariamente provados os seguintes factos, podendo ler-se na parte da sentença respeitante a tal factualidade o seguinte:
«Da análise da prova documental (fls. 28 a 35, 42), e do processo disciplinar, julgo provados sumariamente os seguintes factos (salientando-se que nos autos disciplinares a nível de declarações somente constam as da requerente a fls. 33 e 34, sem qualquer outra prova forte e segura sobre o tipo de cargo/colaboração desempenhado pelo marido da Autora):

1.º - A Requerente trabalha desde 1992 para a Requerida, desempenhando as tarefas inerentes à categoria de “Prospectora de Vendas”.
2.º - Tendo sido visada por um processo disciplinar que concluiu pelo seu despedimento com alegação de justa causa (Doc. 1).
3.º - No dia 21 de Outubro de 2011 foi-lhe indicado que se dirigisse ao escritório do Ilustre Mandatário da Requerida, Dr. EE na segunda-feira seguinte, 24 de Outubro, pelas 10:00 (Doc. 2).
3-A.º – Nesse dia 24 de Outubro, pelas 10h e 15m, a Autora prestou declarações perante o Mandatário da Requerida, Dr. EE, nomeado instrutor, e no âmbito de processo prévio de inquérito – fls. 33 e 34 do processo disciplinar (P.D.).
4.º - Nesse mesmo dia a Autora assinou um acordo de revogação de contrato de trabalho (vide Doc. fls. 29 a 31), “ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 4 do art. 10 do Decreto-Lei n.º 220/2006 de 3 de Novembro e em alternativa a um processo de despedimento por extinção do posto de trabalho que teria como fundamento motivos estruturais e de mercado…” – cláusula 2 –, sendo-lhe pago em contrapartida pela cessação a quantia € 5.000,00 (Doc. 3 que se reproduz.)
5.º – Datada de 25.10.2011, a Autora comunicou a cessação dos efeitos deste acordo, devolvendo o cheque de € 5.000,00 (Docs. 4 e 5)
6.º - A 7 de Novembro, recebeu a Nota de Culpa.
7.º – Em 15 de Novembro de 2011, veio a falecer FF (Doc. 6) mãe da Autora.
8.º - A 5 de Dezembro de 2011, a requerida comunicou à Requerente a sua decisão de despedimento.
9.º - GG é marido da Requerente.
10.º - O Sócio Gerente da empresa CC – ALUGUER DE VIATURAS SEM CONDUTOR Lda. é o sogro da Requerente, HH.
11.º - O marido da Requerente “colabora” pelo menos pontualmente com o pai;
11-A.º – HH é igualmente sócio da empresa “II & FILHOS LDA” que explora um restaurante (Doc. 10).
12.º - GG encontra inscrito como desempregado desde 2009 e pelo menos até 25-5-2010 – fls. 49 a 51 do P.D.
13.º - A empresa CC, tem sede na freguesia do Estoril.
14.º - O marido da Requerente tem pelo menos um projecto, de vir a desenvolver actividade na mesma área comercial – rent-a-car.
15.º – Desde Agosto de 2011, a Requerente encontra-se “…em seguimento clínico…por estar a sofrer síndroma depressivo, consequente de problemas familiares” – fls. 35.
16.º - A Requerente tem cumprido e ultrapassado os objectivos estabelecidos conforme notas de avaliação e desempenho de fls. 81 a 10, designadamente na apreciação do ano de 2009 e 2010, conforme notas que se reproduzem.
17.º - A Requerente, sempre foi considerada uma boa trabalhadora.
18.º - Não tem antecedentes disciplinares.
Da oposição
19.º - A Requerida deduziu nota de culpa onde acusa a Requerente do seguinte:
“1. A trabalhadora foi admitida ao serviço da entidade empregadora no dia 2/11/1992, encontrando-se a exercer funções na área comercial, inerentes à categoria profissional de “Prospectora de Vendas”.
2. As referidas funções consistem essencialmente na angariação e fidelização de clientes e procura de novos negócios.
3.4 No âmbito das funções atribuídas compete à trabalhadora “vender” os serviços prestados pela BB.
5. O superior hierárquico da trabalhadora é o Sr. Dr. DD.
6. Sucede que, há cerca de um ano e meio, suspeitou-se que o marido da trabalhadora estava envolvido num negócio de rent-a-car, negócio concorrente da BB.
7. Pelo que, nessa altura, o superior hierárquico da trabalhadora questionou-a sobre se o seu marido, GG trabalhava, colaborava ou tinha alguma ligação com o negócio de rent-a-car.
8. Ao que a trabalhadora respondeu que o marido não tinha qualquer ligação com essa actividade, apenas trabalhava num restaurante de família.
9. Facto, aliás, que é reconhecido pela trabalhadora no processo prévio de inquérito.
10. Acontece que, conforme a empresa teve agora conhecimento, não só o marido da trabalhadora tem uma ligação com o negócio de rent-a-car como provavelmente já tinha antes, na data em que o seu superior hierárquico a questionou.
11. O marido da trabalhadora actualmente desempenha um cargo na CC.
12. O que a trabalhadora não podia desconhecer.
13. Ora, tendo a trabalhadora sido questionada pelo seu superior hierárquico deveria ter esclarecido a situação com verdade, referindo que o seu marido já estava a colaborar com uma rent-a-car, o que agora, em sede de processo prévio de inquérito, veio a admitir.
14. E, caso nessa altura não tivesse de facto qualquer relação com o negócio rent-a-car a trabalhadora devia ter dado conhecimento desse facto à sua empregadora assim que tal tivesse sucedido, pois bem sabia do interesse da empresa em conhecer essa relação.
15. Bem como de, por força das funções que a trabalhadora desempenha, poder haver concorrência desleal com todas as informações que detinha sobre a BB.
16. Assim, a trabalhadora violou de forma continuada, durante todo o tempo em que o seu marido prestou serviço uma rent-a-car, o dever de lealdade que lhe assiste perante a sua entidade empregadora.
17. Faltando à verdade e em desrespeito pelo seu superior hierárquico e pela sua empregadora.
18. Com efeito, sendo o negócio da CC concorrencial desta empresa é legítimo à BB questionar a trabalhadora sobre a existência de alguma ligação do marido a tal actividade.
19. Sendo obrigação da trabalhadora informar, com verdade, a sua empregadora sobre essa situação.
20. E, mesmo que esta empresa nunca a tivesse questionado sobre tal devia a trabalhadora, por uma questão de lealdade com a sua empregadora, informá-la dessa situação.
21. A trabalhadora tem funções na área comercial, posição que lhe permite ter acesso a informação privilegiada sobre o negócio, contactos de clientes, políticas de vendas e promoções, organização e métodos prosseguidos, entre outras.
22. Circunstância que agrava o comportamento da trabalhadora.
23. Acresce que, no passado dia 24 de Outubro de 2011, em declarações prestadas pela trabalhadora no âmbito das diligências averiguatórias que levaram à instauração deste processo, a trabalhadora, perguntada novamente sobre a existência de tal relação do marido com negócio concorrente, continuou a declarar que não tem conhecimento que o marido trabalhe para uma rent-a-car.
24. Refere a trabalhadora que o marido trabalha para um estabelecimento de restauração.
25. A empresa não pode admitir que a trabalhadora continue a omitir à sua empregadora a ligação do seu marido ao negócio de rent-a-car, em violação reiterada do dever de lealdade a que encontra vinculada.
26. Nem que a trabalhadora continue a faltar à verdade quando perguntada directamente sobre essa eventual ligação, situação que vem comprometer ainda mais a trabalhadora.
27. Acresce, ainda, que tendo sido pedida certidão do registo comercial da CC constatou-se que em 1998, aquando da sua constituição, a gerência pertencia a JJ que coincidentemente tem o mesmo apelido da trabalhadora e será sua familiar.
28. E que a trabalhadora, no mês de Setembro, fez 110 chamadas telefónicas para o marido do telefone da empresa.
29. O que, face ao comportamento continuado e reiterado da trabalhadora acima descrito e considerando as funções exercidas pela trabalhadora permite que a empresa desconfie legitimamente do teor de tais telefonemas e da possibilidade de serem prestadas informações que possam pôr em causa os fins comerciais da BB.
30. Concluindo pela existência efectiva da possibilidade factual de desvio de clientela, o que, só por si, corresponde à violação do dever de lealdade.
31. Levando inevitavelmente à quebra definitiva da confiança depositada até então na trabalhadora para o desempenho das suas funções.
32. Para além do dever de lealdade, a trabalhadora viola os deveres de honestidade, respeito, cooperação, zelo e diligência tornando absolutamente intolerável a manutenção da relação laboral.
33. Assim a conduta da trabalhadora põe em causa de forma definitiva e irreversível a relação de confiança necessariamente subjacente à manutenção do vínculo laboral, constituindo justa causa de despedimento”, dando-se por reproduzidos a mesma peça.»
19-A.º – A Requerida proferiu a decisão de despedimento junta fls. que se reproduz considerando provados todos os factos com excepção do n.º 11 da Nota de Culpa (10 da decisão) que passou a ter a seguinte redacção “O marido da Autora actualmente desempenha um cargo na CC”.
20.º - Perguntada pelo seu superior hierárquico, há cerca de um ano e meio, sobre se o seu marido GG trabalhava ou tinha alguma ligação a alguma rent-a-car, a Requerente referiu que “…não havia qualquer ligação, havia sim a hipótese de vir a comprar umas quotas de uma rent-a-car – CC…” e que “O seu marido apenas trabalhava num restaurante, concessão numa praia, que é da família deste” (auto de declarações fls. 34 e 35).
21.º – No dia 24.10.11, em auto de processo de inquérito prévio, declarou relativamente ao seu marido que “…sabe que, se ainda não fez, vai fazer uma escritura de compra de quotas da rent-a-car CC. Acha que o seu marido não trabalha nesta rent-a-car, embora colabore e ande com carros, pois, segundo pensa, irá ficar com essa sociedade. A colaboração do seu marido com a CC, iniciou-se por volta da conversa com o seu chefe DD. A actividade principal do seu marido é numa empresa de que é sócio gerente que faz vendas pela internet – pensa que é broker de hotéis e rent-a-car. A CC, pensa, tem 3 ou 4 sócios, um deles é amigo de infância do seu marido. …Disse ainda que o IRS seu e do seu marido é apresentado em conjunto e que não há quaisquer rendimentos vindos da CC”.
22.º - A Requerente, no mês de Setembro, fez 110 chamadas telefónicas para o marido do telefone da empresa.

Factos não provados:
(…)
NOTA: Procedemos à rectificação da numeração dos factos dados como indiciariamente provados, dado haver algumas repetições de números (3.º, 11.º e 19.º), tendo aditado a letra «A» ao segundo ponto numerado de forma idêntica.
*
III – O DIREITO

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 685.º-A e 684.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660.º n.º 2 do Código de Processo Civil).
*
A – REGIME ADJECTIVO E SUBSTANTIVO APLICÁVEIS

Importa, antes de mais, definir o regime processual aplicável aos presentes autos, atendendo à circunstância da presente acção ter dado entrada em tribunal em 13/12/2011, ou seja, depois da entrada em vigor das alterações introduzidas no Código do Processo do Trabalho pelo Decreto-Lei n.º 295/2009, de 13/10, que segundo o seu artigo 6.º, só se aplicam às acções que se iniciem após a sua entrada em vigor, tendo tal acontecido, de acordo com o artigo 9.º do mesmo diploma legal, somente em 1/01/2010.
Esta acção, para efeitos de aplicação supletiva do regime adjectivo comum, foi instaurada depois da entrada em vigor (que ocorreu no dia 1/1/2008) das alterações introduzidas no Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/08, e que só se aplicaram aos processos instaurados a partir de 01/1/2008 (artigos 12.º e 11.º do aludido diploma legal) bem como da produção de efeitos das mais recentes alterações trazidas a público pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20/11 e parcialmente em vigor desde 31/03/2009, com algumas excepções que não tem relevância na economia dos presentes autos (artigos 22.º e 23.º desse texto legal) – cf., quanto ao complexo regime decorrente das normas de direito transitório constantes do último diploma legal indicado, Eduardo Paiva e Helena Cabrita, “O processo executivo e o agente de execução”, 2.ª Edição, Abril de 2010, Edição conjunta de Wolsters Kluwer Portugal e Coimbra Editora, páginas 19 e seguintes –, mas esse regime, centrado, essencialmente, na acção executiva, pouca ou nenhuma relevância tem para a economia deste processo judicial.
Será, portanto, de acordo com o regime legal decorrente do actual Código do Processo do Trabalho e, essencialmente, da reforma do processo civil de 2007 e dos diplomas entretanto publicados e com produção de efeitos até ao dia da instauração dos presentes autos, que iremos apreciar as diversas questões suscitadas neste recurso de apelação.
Também se irá considerar, em termos de custas devidas no processo, o Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26/02, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 22/2008, de 24 de Abril e alterado pelas Lei n.º 43/2008, de 27-08, Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28-08, Lei n.º 64-A/2008, de 31-12 e Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, que entrou em vigor no dia 20 de Abril de 2009 e aplica-se a processos instaurados após essa data.
Importa, finalmente, atentar na circunstância dos factos que se discutem no quadro destes autos terem ocorrido essencialmente na vigência do Código do Trabalho de 2009, que entrou em vigor em 17/02/2009, tudo sem prejuízo de pontuais referências aos regimes que o antecederam (LCT e legislação complementar e Código do Trabalho de 2003) sendo, portanto, os regimes decorrentes de qualquer um desses diplomas (com particular incidência para o primeiro) que poderá aqui ser chamado à colação, consoante os factos e questões concretas abordadas, em conjugação com as normas de aplicação da lei no tempo, o reclamem.

B – DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

Realce-se que a Recorrente não impugnou a decisão sobre a matéria de facto, nos termos e para os efeitos dos artigos 80.º do Código do Processo do Trabalho e 685.º-B e 712.º do Código de Processo Civil, não tendo, por seu turno, a recorrida requerido a ampliação subsidiária do recurso nos termos dos artigos 81.º do Código do Processo do Trabalho e 684.º-A do segundo diploma legal referenciado, o que implica que, sem prejuízo dos poderes oficiosos que são conferidos a este Tribunal da Relação pelo artigo 712.º do Código de Processo Civil, temos de encarar a atitude processual das partes como de aceitação e conformação com os factos dados como assentes pelo tribunal da 1.ª instância.

C – OBJECTO DO RECURSO

C1 – NOTA DE CULPA E DECISÃO DISCIPLINAR

Muito embora não estejam em causa nos autos questões relativas à invalidade do procedimento disciplinar instaurado contra a Requerente pela Requerida, pois a primeira coloca o assento tónico dos presentes autos de procedimento cautelar de suspensão de despedimento na inexistência provável e séria de justa causa para a cessação individual e unilateral do contrato de trabalho (celebrado em 1992) promovida pela entidade empregadora com fundamento em condutas ilícitas e culposas da trabalhadora, afigura-se-nos útil a análise do teor da Nota de Culpa e da Decisão disciplinar final, ainda que numa perspectiva sintética e sumária, como forma de circunstanciar devidamente o processo disciplinar desencadeado contra a Autora e o fundamento substancial do mesmo constante e justificador, no entendimento da Apelante do despedimento daquela.
Se olharmos para o conteúdo da Nota de Culpa, que se mostra transcrita no Ponto 19.º da Factualidade dada indiciariamente como Provada, verificamos que a mesma, relativamente a alguns dos factos assacados à Requerente, se limita a afirmar generalidades, a levantar suspeitas e a sustentar convicções íntimas, num discurso dubitativo, sem certezas e objectividade, que, desde logo, inquina gravemente não só a relevância e eficácia factual e jurídica das correspondentes acusações feitas à trabalhadora, como a defesa desta última quanto a tais imputações condicionais e hipotéticas.
Estão em tal situação dúbia os seguintes artigo da Nota de Culpa (sublinhando-se a negrito as palavras ou frases que reflectem exactamente essa natureza insegura e fundada em meros juízo de valor ou probabilidade dos pretensos comportamentos ou das efectivas condutas da Apelada):
« (…) 6. Sucede que, há cerca de um ano e meio, suspeitou-se que o marido da trabalhadora estava envolvido num negócio de rent-a-car, negócio concorrente da BB.
10. Acontece que, conforme a empresa teve agora conhecimento, não só o marido da trabalhadora tem uma ligação com o negócio de rent-a-car como provavelmente já tinha antes, na data em que o seu superior hierárquico a questionou.
11. O marido da trabalhadora actualmente desempenha um cargo na CC.
12. O que a trabalhadora não podia desconhecer.
15. Bem como de, por força das funções que a trabalhadora desempenha, poder haver concorrência desleal com todas as informações que detinha sobre a BB.
27. Acresce, ainda, que tendo sido pedida certidão do registo comercial da CC constatou-se que em 1998, aquando da sua constituição, a gerência pertencia a JJ que coincidentemente tem o mesmo apelido da trabalhadora e será sua familiar.
28. E que a trabalhadora, no mês de Setembro, fez 110 chamadas telefónicas para o marido do telefone da empresa.
29. O que, face ao comportamento continuado e reiterado da trabalhadora acima descrito e considerando as funções exercidas pela trabalhadora permite que a empresa desconfie legitimamente do teor de tais telefonemas e da possibilidade de serem prestadas informações que possam pôr em causa os fins comerciais da BB.
30. Concluindo pela existência efectiva da possibilidade factual de desvio de clientela, o que, só por si, corresponde à violação do dever de lealdade.»
A decisão disciplinar de despedimento da Recorrida, face ao conteúdo do ponto 19-A.º da Matéria de Facto dada perfunctoriamente como Assente (“19-A.º – A Requerida proferiu a decisão de despedimento junta a fls. que se reproduz, considerando provados todos os factos com excepção do n.º 11 da Nota de Culpa (10 da decisão) que passou a ter a seguinte redacção “ O marido da Autora actualmente desempenha um cargo na CC”.), padece dos mesmos defeitos da Nota de Culpa, pois navega nas mesmas águas turvas, em termos de legítima dúvida quanto à efectiva ocorrência, conhecimento e segurança dos factos em questão.
Importa não esquecer que o direito disciplinar, à imagem do direito contra-ordenacional e penal, não permite imputações hipotéticas, dúbias, possíveis ou sequer prováveis mas reclama antes factos, provas e certezas (ainda que não necessariamente absolutas) para poder ser legitimamente accionado.

C2 – ANTECEDENTES DO PROCEDIMENTO DISCIPLINAR

Pensamos que não será igualmente despiciendo chamar à colação os Pontos 3 a 5 da Factualidade dada indiciariamente como Provada, quando testemunham o seguinte:
«3.º - No dia 21 de Outubro de 2011 foi-lhe indicado que se dirigisse ao escritório do Ilustre Mandatário da Requerida, Dr. EE na segunda-feira seguinte, 24 de Outubro, pelas 10:00 (Doc. 2).
3-A.º – Nesse dia 24 de Outubro, pelas 10h e 15m, a Autora prestou declarações perante Mandatário da Requerida, Dr. EE, nomeado instrutor, e no âmbito de processo prévio de inquérito – fls. 33 e 34 do processo disciplinar (P.D.).
4.º - Nesse mesmo dia a Autora assinou um acordo de revogação de contrato de trabalho (vide Doc. fls. 29 a 31), “ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 4 do art. 10 do Decreto-Lei n.º 220/2006 de 3 de Novembro e em alternativa a um processo de despedimento por extinção do posto de trabalho que teria como fundamento motivos estruturais e de mercado…” – cláusula 2 –, sendo-lhe pago em contrapartida pela cessação a quantia € 5.000,00 (Doc. 3 que se reproduz.)
5.º – Datada de 25.10.2011, a Autora comunicou a cessação dos efeitos deste acordo, devolvendo o cheque de € 5.000,00 (Docs. 4 e 5)».
Constata-se que, previamente ao processo disciplinar desencadeado contra a Requerente, ocorrerem diligências junto desta, levadas a cabo pela Requerida, no sentido desta pôr termo ao vínculo laboral existente por mútuo acordo (revogação), como alternativa à extinção do seu posto de trabalho por motivos estruturais e de mercado, o que nos leva a pensar que a Requerida, eventualmente empurrada pela grave crise financeira e económica que se faz sentir e que, naturalmente, terá efeitos ao nível do turismo interno e externo, bem como no aluguer de viaturas automóveis, quer reduzir o seu quadro de pessoal, nessa estratégia se integrando a dispensa dos serviços da Requerente.
Não ignoramos, naturalmente, que o acordo revogatório surge na sequência de umas declarações prestadas pela Apelada no âmbito de um inquérito prévio (ordenado por quem, quando e com que finalidade?) e com referência a um quadro factual próximo daquele que virá a ser perseguido no procedimento disciplinar, mas ficamos sem saber ao certo se tais procedimentos possuíam real e efectiva autonomia ou não surgem antes e apenas como meio de pressão da trabalhadora, de maneira a amedrontá-la e a levá-la a pôr termo à relação laboral existente por via “amigável” e económica para a empresa (como se diz na sentença recorrida: «Se a isto associarmos a audição da Requerente no dia 24.10.11 para efeitos de aproveitamento de prova disciplinar, com a assinatura no mesmo dia do “acordo de revogação do contrato de trabalho”, com indemnização muito aquém da devida considerando o número de anos de casa, mais nos parece que a Autora foi alvo de um despedimento precipitado, com pouca prova, e poucos factos fortes e relevantes para despedimento.»)

C3 – DEVERES GERAIS DO TRABALHADOR

A Apelante considera que a Apelada, com a sua actuação reiterada, violou “para além do dever de lealdade, (…) os deveres de honestidade, respeito, cooperação, zelo e diligência tornando absolutamente intolerável a manutenção da relação laboral.
Face a tal acusação da empregadora da Requerente, importa chamar à colação, desde logo, as disposições legais que regulam, em termos gerais e no Código do Trabalho de 2009, os deveres que recaem sobre o trabalhador no seio da relação complexa, mutável e multifacetada emergente do contrato de trabalho e que são as que adiante se elencam, na parte que para aqui releva:

Artigo 126.º
Deveres gerais das partes
O empregador e o trabalhador devem proceder de boa fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento das respectivas obrigações.
2 - Na execução do contrato de trabalho, as partes devem colaborar na obtenção da maior produtividade (…).
Artigo 121.º
Deveres do trabalhador
1 - Sem prejuízo de outras obrigações, o trabalhador deve:
a) (…)
c) Realizar o trabalho com zelo e diligência;
d) (…)
e) Cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes à execução e disciplina do trabalho, bem como a segurança e saúde no trabalho, que não sejam contrárias aos seus direitos ou garantias;
e) Guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios;
f) (…)
h) Promover ou executar os actos tendentes à melhoria da produtividade da empresa;
i) (…)
2 - O dever de obediência respeita tanto a ordens ou instruções do empregador como de superior hierárquico do trabalhador, dentro dos poderes que por aquele lhe forem atribuídos.


Ora, se confrontarmos os factos dados como indiciariamente provados, bem como os documentos que os complementam (verdadeira grandeza, o processo disciplinar apenso), facilmente se constata que em parte nenhuma está minimamente demonstrado que a Apelada não realizou o seu trabalho com zelo e diligência ou não cumpriu as ordens e instruções legítimas da Apelante, em tudo o que concerne à execução, disciplina, saúde e segurança do trabalho, igualmente não se achando assente, com a consistência factual e probatórias exigíveis, que aquela foi desleal para com a sua entidade empregadora, quer ao negociar por contra própria ou de outrem em concorrência directa ou indirecta com ela, quer ao passar para o exterior da empresa (designadamente ao marido) informações respeitantes à sua organização, metidos de produção ou negócios.
Dir-se-á, contudo, que a Autora não deu cumprimento ao dever geral da boa fé (cf. Pedro Romano Martinez, obra e local citados adiante, Nota IV), pois não informou, quer por sua auto-recreação, quer ao ser inquirida pelo seu superior hierárquico, quer pelo advogado e instrutor do Inquérito (?), que o seu cônjuge tinha um cargo numa empresa concorrente da Requerida, dado desenvolver actividade idêntica.
Ora, se compulsarmos os factos dados como sumariamente demonstrados e que deverão ser complementados com os documentos juntos aos autos (processo disciplinar), verificamos que os únicos que têm interesse nessa matéria são os seguintes:
“9.º - GG é marido da Requerente.
10.º - O Sócio-Gerente da empresa CC – ALUGUER DE VIATURAS SEM CONDUTOR Lda. é o sogro da Requerente, HH.
11.º - O marido da Requerente “colabora” pelo menos pontualmente com o pai;
11-A.º – HH é igualmente sócio da empresa “II & FILHOS LDA” que explora um restaurante (Doc. 10).
12.º - GG encontra-se inscrito como desempregado desde 2009 e pelo menos até 25-5-2010 – fls. 49 a 51 do P.D.
13.º - A empresa CC, tem sede na freguesia do Estoril.
14.º - O marido da Requerente tem pelo menos um projecto, de vir a desenvolver actividade na mesma área comercial – rent-a-car.
20.º - Perguntada pelo seu superior hierárquico, há cerca de um ano e meio, sobre se o seu marido GG trabalhava ou tinha alguma ligação a alguma rent-a-car, a Requerente referiu que “…não havia qualquer ligação, havia sim a hipótese de vir a comprar umas quotas de uma rent-a-car – CC…” e que “O seu marido apenas trabalhava num restaurante, concessão numa praia, que é da família deste” (auto de declarações fls. 34 e 35).
21.º – No dia 24.10.11, em auto de processo de inquérito prévio, declarou relativamente ao seu marido que “…sabe que, se ainda não fez, vai fazer uma escritura de compra de quotas da rent-a-car CC. Acha que o seu marido não trabalha nesta rent-a-car, embora colabore e ande com carros, pois, segundo pensa, irá ficar com essa sociedade. A colaboração do seu marido com a CC, iniciou-se por volta da conversa com o seu chefe DD. A actividade principal do seu marido é numa empresa de que é sócio gerente que faz vendas pela internet – pensa que é broker de hotéis e rent-a-car. A CC, pensa, tem 3 ou 4 sócios, um deles é amigo de infância do seu marido. …Disse ainda que o IRS seu e do seu marido é apresentado em conjunto e que não há quaisquer rendimentos vindos da CC”.
Importa também atentar nos factos não provados, pois «Não se provou que quando a Requerente foi questionada pelo superior hierárquico há um ano e meio o seu marido já “colaborasse com a “CC”, ou que o seu marido ocupe um cargo de Direcção nesta empresa.»
Fazendo uma análise objectiva, imparcial e desapaixonada dos mesmos, não só se verifica que nada de concreto se sabe acerca da eventual ligação profissional do marido da Apelada à empresa do pai - ou a uma outra qualquer do mesmo sector de actividade -, para além da pontual colaboração do primeiro com a segunda, como se ignora em absoluto em que se traduz tal colaboração, podendo ir desde motorista a recepcionista, telefonista, mecânico ou outra qualquer, que nada tenha a ver com o negócio propriamente dito do rent-a-car, na sua vertente comercial (aluguer, prospecção de mercado e angariação de clientes).
Em segundo lugar, desconhecemos se a tal CC desenvolve a sua actividade em concorrência directa com a Requerida, pois pode acontecer que os sectores de mercado onde funcionam respectivamente não coincidam, acabando ambas por laborar em áreas de negócio diferentes e não conflituantes (uma pode trabalhar com as diversas vertentes da oferta turística, internacional e nacional, ao passo que a segunda pode radicar fundamentalmente a sua actuação no plano dos veículos de substituição, em conjugação com as Seguradoras ou outros sectores económicos).
O único facto que sabemos é que o cônjuge da recorrida tem a ideia de se lançar em tal actividade, através da empresa do pai - CC - ou de outra, mas que tal ainda não teria acontecido até à data da instauração do procedimento disciplinar.
Logo, não logrou a recorrente demonstrar, como lhe competia, de acordo com as regras do ónus de prova (artigo 342.º do Código Civil) esse facto absolutamente crucial em toda a estrutura da Nota de Culpa e posterior Decisão Disciplinar, que era o desenvolvimento de uma actividade paralela e concorrente com a da Requerida por parte do acima identificado GG, o que retira, por outro lado, qualquer traço de deslealdade ao silêncio ou às declarações da esposa e aqui Requerente e esvazia praticamente de conteúdo e sentido, pelo menos até esse momento, as tais «possibilidade de serem prestadas informações que possam pôr em causa os fins comerciais da BB» ou «possibilidade factual de desvio de clientela» (frise-se que tal efectiva prestação de informações ou desvio de clientela não são sequer afirmados pela Requerida mas tão somente admitidos como hipotéticos).
Este cenário factual bastaria para confirmar a sentença impugnada e julgar improcedente este recurso de Apelação, mas julgamos poder ir mais longe na análise jurídica das questões que se suscitam nos autos.

C4 – DEVER DE INFORMAÇÃO

O Código do Trabalho de 2009 regulamenta o dever de informação que recai sobre as partes – nomeadamente, sobre o trabalhador –, sendo os artigos 106.º e 109.º os que importa aqui considerar:

Artigo 106.º
Dever de informação
1 - (…)
2 - O trabalhador deve informar o empregador sobre aspectos relevantes para a prestação da actividade laboral.
3 – (…)
Artigo 109.º
Actualização da informação
1 - O empregador deve informar o trabalhador sobre alteração relativa a qualquer elemento referido no nº 3 do artigo 106.º ou no n.º 1 do artigo anterior, por escrito e nos 30 dias subsequentes.
2 – (…)
3 - O trabalhador deve prestar ao empregador informação sobre todas as alterações relevantes para a prestação da actividade laboral, no prazo previsto no n.º 1.
4 – (…

Pedro Romano Martinez, em anotação a estas disposições, no “Código de Trabalho Anotado – revisto pela Lei n.º 7/2009, de 12/02”, 8.ª Edição, Outubro de 2009, Almedina, páginas 308 e seguintes, defende que «(…) o artigo em anotação (tanto na versão de 2003 como na de 2009) impõe o dever de o empregador informar o trabalhador (n.º 1) e o correspectivo dever de o trabalhador informar o empregador (n.º 2). O contrato de trabalho é sinalagmático e, tanto na formação como na execução, há deveres recíprocos impostos a cada uma das partes, nomeadamente no que respeita a informações a prestar pelas partes. A consagração de deveres recíprocos impostos a cada uma das partes de informar a contraparte da sua situação jurídica e das alterações relevantes para o cumprimento do contrato de trabalho constitui um dos aspectos de alteração introduzida pelo Código do Trabalho. (….) As situações que devam ser informadas dependem da concretização dos conceitos indeterminados constantes dos dois números: «aspectos relevantes do contrato de trabalho» (n.º 1) e «aspectos relevantes para a prestação da actividade laboral» (n.º 2). A exemplificação seria necessariamente redutora, pelo que parece correcta a técnica legislativa que, nestes casos, recorre a conceitos indeterminados. Todavia, o dever de informação a cargo do trabalhador encontra-se limitado pela tutela da personalidade, constante dos artigos 71.º e seguintes do Código Civil e artigos 14.º e seguintes do CT2009» (acerca desta bizarra e criticável paridade de posições, em termos informativos, do trabalhador e do empregador, cfr., entre outros, Júlio Manuel Vieira Gomes, “Direito do Trabalho - Relações Individuais de Trabalho”, Volume I, Coimbra Editora, 2007, página 340 e Maria do Rosário Palma Ramalho, “Direito do Trabalho - Parte II - Situações Laborais Individuais”, 3.ª Edição Revista e Actualizada ao Código do Trabalho de 2009, Maio de 2010, Almedina, páginas 153 e 154)
Logo, de acordo com o Professor Romano Martinez, é preciso entrar em linha de conta, como limite inultrapassável, com os direitos de tutela de personalidade que, no que para aqui interessa, estão previstos nos artigos 16.º e 17.º do Código do Trabalho de 2009:

Artigo 16.º
Reserva da intimidade da vida privada
1 - O empregador e o trabalhador devem respeitar os direitos de personalidade da contraparte, cabendo-lhes, designadamente, guardar reserva quanto à intimidade da vida privada.
2 - O direito à reserva da intimidade da vida privada abrange quer o acesso, quer a divulgação de aspectos atinentes à esfera íntima e pessoal das partes, nomeadamente relacionados com a vida familiar, afectiva e sexual, com o estado de saúde e com as convicções políticas e religiosas.
Artigo 17.º
Protecção de dados pessoais
1 - O empregador não pode exigir a candidato a emprego ou a trabalhador que preste informações relativas:
a) À sua vida privada, salvo quando estas sejam estritamente necessárias e relevantes para avaliar da respectiva aptidão no que respeita à execução do contrato de trabalho e seja fornecida por escrito a respectiva fundamentação;
b) (…)
3 - O candidato a emprego ou o trabalhador que haja fornecido informações de índole pessoal goza do direito ao controlo dos respectivos dados pessoais, podendo tomar conhecimento do seu teor e dos fins a que se destinam, bem como exigir a sua rectificação e actualização.
4 (…)

Guilherme Dray, também no acima referenciado “Código do Trabalho Anotado”, em anotação aos artigos 16.º e 17.º, a páginas 151 e seguintes, refere o seguinte: «III. O preceito em causa (artigo 16.º) concretiza alguns aspectos que integram a esfera íntima e pessoal das partes - questões relacionadas com a vida familiar, afectiva e sexual, o estado de saúde e as convicções políticas e religiosas dos sujeitos envolvidos. Trata-se de um elenco não exaustivo, pelo que o direito em causa poderá envolver outros aspectos merecedores de idêntico grau de tutela, nomea­damente gostos pessoais e hábitos de vida do trabalhador ou informações relati­vas ao seu património pessoal. Em todo o caso, a tutela conferida pelo presente artigo só parece justificar-se perante aspectos da vida privada que revistam parti­cular significado ético, sendo de excluir outros factos que por não integrarem a esfera íntima do trabalhador não justificam o presente regime de protecção. Assim, serão de excluir do regime de protecção do presente artigo, por exemplo, questões relacionadas com a experiência profissional do trabalhador, as suas habilitações literárias ou mesmo o seu domicílio. Trata-se de aspectos que ainda que digam pessoalmente respeito ao trabalhador, não integram a sua esfera intima além de que podem ser relevantes para a celebração ou execução do contrato de trabalho. Em todo o caso, mesmo nestas situações, importa atender aos princípios gerais da proporcionalidade e adequação: a reserva da vida privada deve ser a regra e não a excepção e a sua limitação só se justifica quando interesses superiores o exijam e dentro dos limites decorrentes do artigo 335.º do Código Civil. (…)
IV. A diferença de regime entre as alíneas a) e b) do n.º 1 do presente preceito (artigo 17.º), como nota Menezes Leitão a propósito do CT2003 (Código do Trabalho Anotado, Almedina, Coimbra, 2003, anotação ao artigo 17.º, p. 38), foi inspirada na habitualmente denominada teoria das três esferas, segundo a qual, em sede de direito à intimidade da vida privada, importa distinguir: a esfera íntima ou secreta, que compreende todos os factos que devem, objectivamente, ser inacessíveis a terceiros e absolutamente protegidos da curiosidade alheia, designadamente os que digam respeito a aspectos da vida familiar, a comportamentos sexuais, a prá­ticas e convicções religiosas e ao estado de saúde das pessoas: a esfera privada, que compreende todos os factos cujo conhecimento o respectivo titular tem, sub­jectivamente, o interesse em guardar para si, designadamente factos atinentes à sua vida profissional, ao seu domicílio e hábitos de vida, cuja protecção é relativa, podendo ceder em caso de conflito com direitos ou interesses superiores: a esfera pública, que compreende todos os factos e situações do conhecimento público, que se verificam e se desenvolvem perante toda a comunidade e que por esta podem ser genericamente conhecidos e divulgados
A alínea a) do n.° 1 do preceito em questão compreende aspectos atinentes à esfera privada do trabalhador ou candidato a emprego, cuja protecção pode ceder caso tais elementos sejam estritamente necessários e relevantes para avaliar da res­pectiva aptidão no que respeita à execução do contrato de trabalho: a alínea b) abrange questões relativas à esfera íntima as quais pressupõem, consequentemente, uma tutela acrescida: a sua compressão só se justifica quando particulares exigências inerentes a actividade profissional o justifiquem. nos termos supra enunciados.»
Tendo como pano de fundo este quadro legal e doutrinário, temos que nos interrogar quanto à legalidade das questões colocadas, por duas vezes, pela Requerida à Requerente - primeiro, pelo superior hierárquico da mesma e depois pelo advogado da Empresa - relativamente à actividade profissional do marido.
Não ignoramos que a Apelante visava saber se o mesmo desenvolvia actividade concorrente com a sua (rent-a-car), podendo, à primeira vista, entender-se como legítima tal inquirição, mas, salvo o devido respeito por opinião contrária, temos sérias dúvidas quanto à admissibilidade das referidas perguntas, ainda que num quadro específico como o existente nos autos.
Movendo-nos, indiscutivelmente, na esfera privada da vida da Apelada, coloca-se-nos, desde logo, esta primeira dúvida: até onde pode ir a averiguação nesta matéria - estatuto profissional de terceiros - da entidade empregadora? Pode tomar conhecimento, por dever de informação do trabalhador, da profissão não só do cônjuge deste último como dos seus familiares mais próximos (filhos, pais, avós, tios, irmãos, cunhados) ou mesmo amigos chegados? E tal inquirição e obrigação de resposta podem mesmo chegar à comunicação da exacta actividade desenvolvida, numa perspectiva sectorial e geográfica, como ainda no que concerne às participações sociais e outros interesses que tais pessoas tenham em entes societários?
Julgamos que a resposta tem de ser necessariamente negativa, por constituir, em regra, uma inadmissível intrusão na vida privada, quer do próprio, como de todos esses parentes e amigos.
Esta vertente da questão afigura-se-nos fundamental, pois o trabalhador, apesar das relações familiares ou de grande proximidade com todos esses indivíduos, não tem a obrigação nem o direito de revelar, com ou sem o seu consentimento, a terceiros - mesmo que esse terceiro seja a sua entidade patronal - aspectos da vida privada dos mesmos, sob pena de violar, por seu turno, os direitos de personalidade de cada um deles, sujeitos de direitos e deveres autónomos e independentes, quer face ao seu parente ou amigo, quer, naturalmente, no que toca à entidade patronal deste último, com a qual não possuem, em regra, qualquer relação ou obrigação jurídicas.
Se fizermos uma leitura atenta, quer dos preceitos legais aqui envolvidos, como da doutrina que sobre eles têm incidido, verifica-se que, em regra, as informações que o trabalhador está obrigado a prestar, são não só aquelas que respeitem a aspectos relevantes para a prestação da actividade laboral e que não briguem com os seus direitos de personalidade, salvo quando sejam estritamente necessárias e relevantes para avaliar da respectiva aptidão no que respeita à execução do contrato de trabalho, como parece deverem ser referentes essencialmente a si próprio e não a terceiros.
Recorde-se, ainda, que a Requerida não deu cumprimento à exigência formal constante da parte final da alínea a) do número 1 do artigo 17.º do Código do Trabalho (“…seja fornecida por escrito a respectiva fundamentação”), o que constitui um óbice legal à prestação de qualquer informação no quadro da vida privada do trabalhador (neste caso, da Requerente), sendo certo que as declarações prestadas perante o advogado da empresa não possuem tal natureza.
Finalmente, temos que perguntar: caso o cônjuge (ou outro dos parentes próximos) do candidato ao emprego ou do trabalhador já em funções responder afirmativamente a uma questão como a dos autos - a minha mulher ou marido ou o meu pai ou irmão ou filho desenvolvem, individual ou societariamente, actividade idêntica à da entidade empregadora do inquirido ou inquirida -, constitui tal informação e situação motivo legalmente reconhecido para recusar o lugar em questão ou, mais importante, para sancionar disciplinarmente, designadamente, com o despedimento o assalariado em questão?
É óbvio que não - muito embora o controlo e fiscalização de tal recusa, no plano pré-contratual, seja muito difícil, bastando não invocar tal razão como motivo justificador para a não contratação -, o que desde logo coloca em crise a pretensa gravidade, quebra inelutável da confiança e inexigibilidade da manutenção do vínculo laboral do silêncio da Requerente dos autos ou da sua falta à verdade, no que concerne à situação profissional do cônjuge.
A presunção de que, pela circunstância do cônjuge da trabalhadora estar a exercer uma actividade concorrente daquela desenvolvida pela empresa empregadora da segunda, implica inevitável e inelutavelmente que esta vá passar informações, desviar clientela, diminuir a produtividade da Requerida e ter uma conduta irremediavelmente desleal, ainda que compreensível (atento o risco acrescido de tal poder acontecer), não é automática e líquida, não podendo ser extraída com o à vontade e facilidade procurados pela Apelante.
O mais que a entidade patronal pode fazer é reforçar a consciência do trabalhador para o especial dever de lealdade e sigilo que impende sobre ele nas circunstâncias específicas em que se encontra, ser particularmente exigente e vigilante quanto ao desempenho das correspondentes funções (desde que o faça dentro dos limites legais, ou seja, com respeito dos direitos laborais e de personalidade do visado) e criar mecanismos eficazes de protecção da informação sensível da sua actividade.
O direito de despedir o dito trabalhador só surgirá caso se demonstre que o mesmo passou dados confidenciais ou reservados ao cônjuge ou que, em conluio com este, está a fazer “concorrência desleal” com a empresa ou que actuou, de outras formas, em violação do referido dever de lealdade (cf. artigo 351.º do Código do Trabalho de 2009).
Para alguns autores, a Requerente, não estando obrigada a prestar as informações que lhe forma exigidas pela Requerida, não só podia omiti-las ou negar-se a prestá-las - o que não foi o caso, como ressalta dos factos indiciariamente provados - como tinha ainda a possibilidade de mentir relativamente às mesmas.
O professor João Leal Amado, acerca desta matéria, em “Contrato de Trabalho”, 2.ª Edição, Janeiro de 2010, publicação conjunta de Wolsters Kluwer Portugal e Coimbra Editora, páginas 179 e seguintes, sustenta o seguinte:
“ (…) o certo é que, em sede laboral, a fase pré-contratual assume uma delicadeza muito particular, em virtude da disparidade de poder entre os sujeitos e da posição de extrema vulnerabilidade em que, normalmente, o candidato a trabalhador se encontra (disposto a quase tudo na mira de obter o emprego, bem escasso). A prática mostra que as discriminações ocorrem, amiúde, na fase pré-contratual, tornando-se necessário proteger a pessoa do candidato ao emprego e, concomitantemente, salvaguardar a sua posição negocial. Certo, o (candidato a) trabalhador «deve informar o empregador sobre aspectos relevantes para a prestação da actividade laboral» (n.º 2 do art.º 106.º do CT). Mas, do mesmo passo, e em princípio, o empregador não poderá exigir a candidato a emprego que preste informações relativas à sua vida privada, à sua saúde ou ao seu eventual estado de gravidez (art.º 17.º, n.º 1). Daí que o empregador não possa, no decurso de uma entrevista de selecção ou em questionários escritos, colocar questões ao candidato quo incidam, p. ex., na sua vida afectiva ou na sua orientação sexual, nas suas convicções políticas, ideológicas ou religiosas, nas suas preferências sindicais, na sua paixão clubista, na sua (actual ou desejada) gravidez, etc.
O empregador não pode - isto é, não deve - colocar este tipo de questões. Mas a pergunta é: e se o fizer? E se o empregador violar estas proibições, inquirindo o candidato sobre aspectos que pertencem à esfera da privacidade deste? Quid juris? Dir-se-ia: o trabalhador pode contestar a questão e/ou recusar-se, legitimamente, a responder. Nestes casos, o trabalhador pode calar, tem direito ao silêncio. Seguramente assim é. Mas será que não deveremos ir mais longe? Em nome da preservação da reserva da vida privada e da prevenção de práticas discriminatórias, não deveremos reconhecer ao candidato a emprego um direito à mentira, se e quando for confrontado com semelhantes questões ilegítimas?
A meu ver, a resposta não pode deixar de ser afirmativa. Com efeito, só por uma indesculpável ingenuidade se ignorará que o silêncio, nestes casos, comprometerá irremediavelmente as hipóteses do emprego do candidato. O empregador pergunta, o candidato cala, o emprego esfuma-se... Julga-se, pois, que, neste tipo de casos, o único meio susceptível de preservar a possibilidade do acesso ao emprego e de prevenir práticas discriminatórias consiste em o trabalhador não se calar, antes dando ao empregador a resposta que ache que este pretende ouvir (e assim, eventualmente, mentindo). Prática contrária à boa-fé? Com­portamento doloso do candidato? Penso que não. A boa fé não manda responder com verdade a quem coloca questões ilegítimas e imperti­nentes. E o dolo na negociação não relevará em sede anulatória, pois incide sobre aspectos que o próprio ordenamento jurídico considera não poderem relevar na decisão de contratar ou não. Como é óbvio, este «direito à mentira» só existirá em face de questões ilícitas. (…)
(…) também durante a execução do contrato o trabalhador terá o direito de mentir, se for confrontado com questões ilícitas e intrusivas. É que, recusando-se a responder, o trabalhador desobedece. Legitimamente? Si. Mas, ainda assim, desobedece á sua entidade empregadora, titular de diversos e amplos podres no âmbito desta relação (poder directivo, poder disciplinar). O trabalhador não pode ser disciplinarmente punido? Não deve sê-lo, mas…. E, ao longo da relação laboral, decerto não faltarão ocasiões nem escassearão formas de prejudicar aquele trabalhador silente, que o empregador tenderá a considerar insolente (promoções, transferências, gratificações, tolerâncias, etc.)… Parece-me, por isso, que a tutela da posição negocial do trabalhador face ao empregador reclama que aquele possa mentir, licitamente, quando confrontado com questões ilegítimas daquele jaez”. - cf., também, nesse mesmo sentido, Júlio Manuel Vieira Gomes, obra e local citados, páginas 343 e 344.
Logo, também por este conjunto de argumentos jurídicos, nunca se poderia qualificar a conduta imputada à Requerente pela Requerida como violadora dos deveres de índole laboral que foram elencados pela segunda na sua Nota de Culpa e Decisão Disciplinar.

C5 – DEVER DE NÃO CONCORRÊNCIA DOS TRABALHADORES

A sentença recorrida, a dado passo, faz a seguinte afirmação:
«E, a verdade é que, o dever de lealdade, no que à questão da concorrência se refere, implica, segundo a lei, a obrigação do próprio trabalhador não negociar por conta própria ou alheia em actividade concorrente, em divulgando informação referente à sua organização, métodos de produção ou negócios, não se estendendo tal obrigação à sua família.» (sublinhado nosso)
Pensamos que tal conclusão é certeira e acertada, não só face ao direito constitucional de liberdade de trabalho (artigo 58.º da Constituição da República Portuguesa), como ao próprio regime legal que regula tal problemática, quer no âmbito e durante a manutenção do vínculo laboral (cf. artigo 121.º, número 1, alínea e), acima reproduzido), como depois de tal relação se ter extinguido, face ao estatuído no artigo 136.º do mesmo diploma legal, interessando ainda compulsar o artigo 138.º, que se dão, de imediato, por transcritos:

Artigo 136.º
Pacto de não concorrência
1 - É nula a cláusula de contrato de trabalho ou de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho que, por qualquer forma, possa prejudicar o exercício da liberdade de trabalho após a cessação do contrato.
2 - É lícita a limitação da actividade do trabalhador durante o período máximo de dois anos subsequente à cessação do contrato de trabalho, nas seguintes condições:
a) Constar de acordo escrito, nomeadamente de contrato de trabalho ou de revogação deste;
b) Tratar-se de actividade cujo exercício possa causar prejuízo ao empregador;
c) Atribuir ao trabalhador, durante o período de limitação da actividade, uma compensação que pode ser reduzida equitativamente quando o empregador tiver realizado despesas avultadas com a sua formação profissional.
3 - Em caso de despedimento declarado ilícito ou de resolução com justa causa pelo trabalhador com fundamento em acto ilícito do empregador, a compensação a que se refere a alínea c) do número anterior é elevada até ao valor da retribuição base à data da cessação do contrato, sob pena de não poder ser invocada a limitação da actividade prevista na cláusula de não concorrência.
4 - São deduzidas do montante da compensação referida no número anterior as importâncias auferidas pelo trabalhador no exercício de outra actividade profissional, iniciada após a cessação do contrato de trabalho, até ao valor decorrente da aplicação da alínea c) do n.º 2.
5 - Tratando-se de trabalhador afecto ao exercício de actividade cuja natureza suponha especial relação de confiança ou que tenha acesso a informação particularmente sensível no plano da concorrência, a limitação a que se refere o n.º 2 pode durar até três anos.
Artigo 138.º
Limitação da liberdade de trabalho
É nulo o acordo entre empregadores, nomeadamente em cláusula de contrato de utilização de trabalho temporário, que proíba a admissão de trabalhador que a eles preste ou tenha prestado trabalho, bem como obrigue, em caso de admissão, ao pagamento de uma indemnização.

Ressalta com nitidez das diversas regras jurídicas mencionadas que a liberdade de trabalho é um dos direitos fundamentais do cidadão em geral, que só pode ser restringida nas circunstâncias e condições que se acham legalmente consagradas nas mesmas (ou, eventualmente, noutras disposições normativas especiais), referindo-se todas elas ao trabalhador individualmente considerado e não, no que toca à proibição de concorrência, ao seu universo familiar ou afectivamente mais próximo, como parece pretender a Requerida (na sua perspectiva, o facto do marido da Apelada poder estar a trabalhar no mesmo ramo de actividade da empresa constituía, só por si, uma “traição”, uma violação do quadro contratual vigente entre as partes, o que não é consentido pela lei).
Melhor seria que uma qualquer empresa pudesse não só limitar o conteúdo funcional ou as escolhas profissionais do seu funcionário ou ex-empregado como ainda pudesse estender tais prerrogativas - restritas e excepcionais - a terceiros, pelo simples facto de possuírem uma relação de proximidade com aqueles (cf., quanto ao regime legal em análise, Júlio Manuel Vieira Gomes, obra e local citados, páginas 531 e seguintes e 608 e seguintes e ainda, do mesmo autor, o estudo intitulado «Algumas novas questões sobre as cláusulas ou pactos de não concorrência em Direito do Trabalho», publicado a páginas 77 a 99 da Revista do Ministério Público n.º 127 (Julho/Setembro de 2011)].
Esta nova linha de análise também retira, objectivamente, parte do fundamento disciplinar a algumas das imputações feitas à Requerente pela Requerida no âmbito do procedimento disciplinar.

C6 – PROBABILIDADE SÉRIA DE INEXISTÊNCIA DE JUSTA CAUSA

Chegados aqui e face à diversa argumentação, quer de carácter fáctico, como de índole jurídica, que fomos desenvolvendo nos cinco pontos anteriores, pouco mais nos resta, por apelo ao disposto nos artigos 328.º e seguintes, 351.º, 357.º, 381.º e 386.º do Código do Trabalho de 2009 e 39.º do Código do Processo do Trabalho, do que reconhecer uma probabilidade séria de inexistência de justa causa no que toca ao despedimento individual de que foi alvo a Apelada.
Sendo assim, julgando-se o presente recurso de Apelação improcedente, confirma-se a bem elaborada sentença que decretou a suspensão do despedimento de que foi alvo a Requerente.

IV – DECISÃO

Por todo o exposto, nos termos dos artigos 40.º, número 1 e 87.º, número 1, do Código do Processo do Trabalho e 712.º e 713.º do Código de Processo Civil, acorda-se, neste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente o recurso de apelação interposto por BB – ALUGUER DE AUTOMÓVEIS, S.A., nessa medida se confirmando a sentença recorrida.

Custas do presente recurso a cargo da Apelante e Requerida – artigo446.º, número 1, do Código de Processo Civil.

Registe e notifique.

Lisboa, 18 de Abril de 2012

José Eduardo Sapateiro
Maria José Costa Pinto
Seara Paixão

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