terça-feira, 1 de outubro de 2013

CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO - ABANDONO DE TRABALHO - TRABALHADORA GRÁVIDA



 Proc. Nº 1600/10.6TTLSB.L1-4  TRLisboa    19 Jun 2013


I. Incorre em despedimento ilícito o empregador que considera cessado o contrato de trabalho com fundamento em abandono do trabalhador que não se verifica.
II. Não há abandono quando não existe animus extintivo do contrato por parte da trabalhadora grávida (facto que a R. não ignorava), que, tendo dado à luz, deixa de comparecer ao trabalho por se achar no gozo de licença de parentalidade.

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO

Autora (adiante, por comodidade, designada abreviadamente por A.): AA.
Ré (adiante designada por R.) e recorrente: BB, Lda.
A A. alegou que foi despedida sem justa causa, o que lhe causou danos, e pediu a condenação da Ré a reconhecer a ilicitude do despedimento de que foi alvo a pagar-lhe todas as retribuições devidas nos termos legais e ainda uma indemnização por danos morais no montante de 15.000,00€.
A R. contestou, alegando o abandono do trabalho.
Saneados os autos e condensada a matéria de facto, e efectuado o julgamento o Tribunal proferiu sentença na qual julgou a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e decidiu:
a) Declarar a ilicitude do despedimento de que a Autora foi vítima;
b) Declarar improcedente a excepção de abandono do posto de trabalho;
c) Condenar a Ré a pagar à Autora uma indemnização por antiguidade, computada em 30 dias de retribuição, por cada ano de trabalho, cfr. Art. 389º, nº1 al. a) do CT (2009);
d) Condenar a Ré a pagar à Autora as retribuições que esta deixou de auferir por força do despedimento, descontando-se apenas as quantias aludidas no art. 390º, nº2 als. a) e b) do CT (2009);
e) Condenar a Ré a pagar à Autora uma indemnização, por danos morais no valor de 5000,00€, art. 389º, nº1 al. a) do mencionado diploma legal;
f) Condenar a Ré a pagar os juros de mora, respeitantes a estes montantes, à taxa legal em vigor, contabilizados desde o vencimento até integral pagamento
g) Condenar a Ré a pagar uma sanção pecuniária compulsória de 50,00 €/Diários por cada de atraso no pagamento à Autora, das indemnizações aludidas supra, após o trânsito em julgado desta sentença.
*
A R recorreu da sentença formulando as seguintes conclusões:
(…)
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A A. não respondeu.
O MºPº teve vista.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
Cumpre apreciar neste recurso – considerando que o seu objecto é definido pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e exceptuando aquelas cuja decisão fique prejudicada pela decisão dada a outras, art.º 684/3, 660/2 e 713, todos do Código de Processo Civil – a correção da decisão de facto e, face aos factos apurados, se existe abandono ou despedimento.
*
A) Matéria de Facto
(…)
*
*
São, pois, estes os factos provados:
(…)
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B) Da cessação do contrato.
O abandono é uma figura que enquadra “as situações em que… o trabalhador assume uma postura reveladora de que não pretende a manutenção do vínculo contratual” (cfr. O Abandono do Trabalho, do ora relator, in Revista de Direito e Estudos Sociais, Janeiro-Dezembro 2010, 138).
Podemos enunciar destarte as suas características[1]:
a) é um incumprimento contratual unilateral e voluntário, consubstanciado de ordinário numa falta de comparência do trabalhador[2],[3];
b) a ausência é qualificada, de tal modo que da sua materialidade extrai-se inequivocamente a intenção de pôr fim à relação laboral, distinguindo-se por isso de uma ausência vulgar;
c) é eficaz para fazer cessar os efeitos do contrato;
d) e é ilícita e susceptível de gerar responsabilidade civil[4].
Dentro da classificação quadripartida das causas de cessação do contrato laboral o abandono do trabalho tem a natureza de uma denúncia tácita, que se deduz do comportamento do trabalhador (face a um comportamento do qual se deduz com toda a probabilidade a vontade da parte - art.º 217.º, n.º 1, Código Civil).
O abandono, como resulta do disposto no art.º 403 do Código do Trabalho, assenta em dois pressupostos
1 – objetivo – ausência do trabalhador no local e tempo de trabalho (…);
2 – subjetivo – a existência de factos que, com toda a probabilidade revela a intenção de não retomar a atividade (animus extintivo)” (idem, 143-144).
É preciso, naturalmente, que o empregador prove estes dois pressupostos (art.º 344/2, CC).
Se, porém, beneficiar da presunção, nem sequer carecerá de provar os factos de onde se extrai o animus extintivo.
Não poderá, porém, beneficiar da presunção caso existam elementos concretos que ponham em causa a existência de vontade da resolução.
É que ao abandono não basta a materialidade da conduta omissiva traduzida na não comparência no local de trabalho; é preciso que tal ausência seja qualificada pela intenção que dos factos (extintiva) que se deduz dos factos.
Posto isto, e com o devido respeito, podemos assentar desde logo que, ao contrário dos termos da discussão desenvolvida pelas partes, que as levou a enveredar pela apresentação de articulados anómalos, a alegação de abandono nada tem de exceção: não é um facto impeditivo, modificativo ou extintivo (art.º 342/2, Código Civil) do invocado despedimento, constituindo antes uma outra forma de extinção da relação laboral. E ou se verifica uma ou outra.
E não se queira dar-lhe outro nome, como “exceção da comunicação do abandono do trabalho”, porque não é a comunicação que põe termo ao contrário, mas o abandono; a comunicação é apenas requisito[5] de invocabilidade da denuncia tácita (art.º 217, Código Civil) que é o abandono.
Portanto, a invocação, pelo empregador, de que não houve despedimento mas abandono não constitui exceção alguma: é uma simples negação motivada dos factos articulados pelo trabalhador (“não houve despedimento porque foi ele(a) quem pôs termo ao contrato de trabalho, desaparecendo de vez do local de trabalho”).
Mas vejamos. A R. põe a discussão nestes termos:
a) a A. não informou por escrito o nascimento da filha, e portanto não tem, nos termos do art.º 36 do CT, direito à proteção da parentalidade;
b) e nem à justificação da ausência durante os 5 meses seguintes, visto que de facto nada disse;
c) a devolução da carta contendo a comunicação da R. de que considerava verificado o abandono é imputável à A, que não comunicou que mudara de residência, pelo que a comunicação tem de ser válida e eficaz.
A nosso ver esta argumentação não colhe.
Na verdade o problema equaciona-se tendo presente a natureza do abandono – que já vimos ser uma denúncia tácita através de um comportamento omissivo do trabalhador que revela a vontade de não apenas incumprir pontualmente o contrato, mas de pôr fim a toda a situação laboral – e da situação de facto da A. conhecida pela R..
Quanto à ausência do trabalhador, dito de outro modo: não basta a situação de falta à prestação da atividade, sendo necessário que dessa ausência, acompanhada pelos demais factos conhecidos, se extraia o elemento subjetivo pertinente, a intenção de não retomar a prestação da atividade.
Situações que evidenciam essa intenção são, por exemplo, os casos em que o trabalhador:
a) leva da empresa os seus instrumentos de trabalho;
b) vai trabalhar, em horário ou local incompatível para outra empresa;
c) afirma que não aceita a mudança legítima do local de trabalho e não vai comparecer, e não comparece mesmo (acórdão STJ de 6.2.2008, relator Vasques Dinis);
d) entrega a chave de que carece para entrar e anuncia a colegas que não volta mais (ac. RL de 13.10.2004, Ramalho Pinto);
e) sem qualquer impedimento não regressa ao posto de trabalho após cumprir sanção disciplinar ou gozar férias, ou estar de baixa (STJ, 10.12.2009, Bravo Serra; RC, 15.01.2004, Serra Leitão).
Resulta, com efeito, desta atuação a intenção de incorrer em inadimplemento definitivo do contrato, não mais voltando a prestar a atividade.
Mas existem pelo contrário muitas outras situações que não evidenciam tal vontade, como sejam aquelas em que o trabalhador:
a) desconhece onde é o local de trabalho – v.g. após suspensão do contrato ou na sequência de sentença que declarou ilícito o despedimento (ac. STJ de 24.10.2002, Mário Torres; RL, acórdão de 6.2.2, Sarmento Botelho);
b) vai de férias convencido que tal lhe é permitido;
c) está de baixa ou incapacitado por qualquer motivo comunicado ao empregador, mesmo que olvide juntar oportunamente prorrogações de baixa – desde logo atenta a suspensão do contrato passados 30 dias - art.º 296/1, Código do Trabalho (ac. STJ de 10.07.96, Carvalho Pinheiro, RC de 12-02-2009, Fernandes da Silva; RL, ac. de 6.12.2000, Manuela Gomes);    
d) aguarda contacto após determinação judicial de reintegração;
e) a entidade patronal o dispensa do dever de assiduidade e não chama ou revê tal situação (RC, 17.02.2002, Serra Leitão; RL. de 22.09.99, Andrade Borges);
f) o empregador recusa receber o atestado médico;
g) a trabalhadora se ausenta por motivo de nascimento de filho (RP, ac. 9.5.2007, Fernanda Soares);
h) a empregadora manda o trabalhador para casa até lhe ser dada nova ordem, ou indicado local de trabalho, ou até que obtenha “alta” da seguradora ou de outra entidade;
i) é suspenso por decisão judicial em procedimento cautelar movido pela empregadora;
j) não comparece apenas por considerar ter sido despedido (RP. 31.05.99, Machado Silva);
m) não comparece porque foi suspenso pelo empregador em sede disciplinar;
n) tem o contrato de trabalho suspenso (ac. STJ de 16.02.2000, Diniz Nunes; RP 10.02.2003, Sousa Peixoto);
o) está impedido por doença do conhecimento do empregador (ac. STJ de 10.07.1996, Carvalho Pinheiro).
Com efeito, nada mostra que o trabalhador, nestes casos, pretende denunciar o contrato. Pelo contrário, existe algum motivo que o leva a crer que atua licitamente; ou então que o impede de atuar de outro modo.
Nestes casos, amiúde, o empregador sabe bem que o trabalhador não pretende pôr fim ao contrato, estando antes convicto que um motivo atendível lhe permite não se apresentar ao serviço.
Deve notar-se que o abandono foi criado como figura que visa exatamente tutelar os casos em que o trabalhador quer fazer cessar o contrato.
Um breve excurso pelos sucessivos regimes legais permite-nos verificar que antes da LCCT, Decreto-Lei n.º 64/A-89, o abandono era visto meramente como um ilícito disciplinar, o que acarretava a instauração de procedimento disciplinar, com todas as dificuldades e custos inerentes (anuir-se-á desde logo, certamente, que pode não ser fácil notificar o trabalhador quando este pura e simplesmente se ausenta para parte incerta), associados a um procedimento disciplinar pensado para garantir os direitos de quem pretende salvaguardar a estabilidade do vinculo laboral, mas que, no caso, era posto de alguma sorte ao serviço de quem manifestamente não o quer conservar.
O art.º 40, n.º 4, da LCCT passou a tratar o abandono como resolução (rescisão na terminologia coeva) unilateral (porque da iniciativa do trabalhador) tácita, permitindo evitar o recurso ao procedimento disciplinar.
Por fim, o CT2003 deu-lhe a atual configuração de denúncia tácita no art.º 450/4, configuração a nosso ver mais feliz, atenta a conduta omissiva subjacente.
Certo é que a figura contempla a conduta do trabalhador que pretende por omissão fazer cessar o vínculo.
No caso, o que temos? Muito simplesmente que a A. deixou de comparecer porquanto deu à luz. E a R. sabia que a A. estava grávida (estado, aliás, geralmente difícil de ocultar, ao menos na fase terminal). Aliás, a R. confessa-o na contestação, ao afirmar que aquela justificou uma baixa médica por referencia a uma situação de pré-maternidade (art.º 4º da contestação), e que até houve quem temesse que o parto pudesse ter corrido mal (art.º 8º), e que ela, R., foi sensível ao melindre da questão (art.º 9º).
Ora, a ausência na sequência de parto não evidencia a vontade de acabar com a situação laboral.
E não se diga que o nascimento teria de ser comunicado por escrito. Por um lado estamos a discutir o animus extintivo da trabalhadora (o qual não encontra génese em eventuais faltas de comunicação) e não a proteção da parentalidade; e por outro lado até nesta ultima sede o n.º 2 do art.º 36 do Código do Trabalho dispõe que “o regime de protecção da parentalidade é ainda aplicável desde que o empregador tenha conhecimento da situação ou do facto relevante” (sublinhado nosso).
Mais: a A. foi mãe em 25.5.9 e ausentou-se durante 5 meses, até se apresentar em 26.10.2009, 1º dia útil a seguir ao termo da licença parental (art.º 40/1, CT).
De aqui conclui a R. que a A. se apresentou nesse dia porque entretanto a R. mandou a comunicação de abandono que aliás veio devolvida, o “que é sintomático da atuação” (art.º 16 da contestação) desta.
Porém nada se extrai de “sintomático” nessa atuação: se a licença acabou a 24, sábado, era de esperar que ela se apresentasse na segunda feira 26 (por outro lado, tendo sido devolvida a comunicação não se alcança sequer o que quis a R. dizer com essa expressão, visto que a A. não leu a carta e consequentemente até se compreende a sua reação de espanto que a própria R. relata no art.º 33 da contestação ao ser confrontada, dia 26, com a informação do envio da comunicação de abandono)[6].
Mais relevante, de todo o modo, para a discussão, é que, nestas circunstâncias, não se descortina qualquer intenção de fazer cessar o contrato, sem a qual não opera o abandono.
Ou seja: não se verificam os pressupostos do abandono (é irrelevante, pois, a discussão sobre a morada da A.).
E não havendo abandono incorre em despedimento o empregador – no caso a R. – que obsta a trabalhadora de retomar a atividade com o argumento afinal errado de que o contrato já não existia porque ela, trabalhadora, lhe pusera termo. O fim do mesmo é imputável, a final, à R..
Não merece, pois, censura a sentença recorrida, que fez boa aplicação do direito.
*
*
DECISÃO
Pelo exposto o Tribunal julga o recurso improcedente e consequentemente confirma a sentença recorrida.
Custas do recurso a cargo da recorrente.
Lisboa, 19 junho de 2013


Sérgio Almeida
Jerónimo Freitas
Francisca Mendes


[1] “O Abandono do Trabalho”, pag. 135 e ss.
[2]
Um dos elementos do abandono “consiste num incumprimento voluntário do contrato de trabalho que, na generalidade dos casos se traduz na não comparência do trabalhador no local e no tempo de laboração” – STJ, ac. 03-06-2009, Sousa Grandão.
[3]
A vontade não é meramente de inadimplir ou alguns deveres contratuais, mas o próprio contrato de trabalho “em si mesmo”, referem Alonso Olea e Emília Casas Baamonde, Derecho del Trabajo, 14ª ed., Madrid, 451.
[4]
N.º 5 do art.º 403.º.
Ilícita exactamente pela inobservância dos procedimentos impostos para a denuncia, previstos no art.º 400: comunicação escrita e com aviso prévio (neste sentido cf. Romano Martinez, Direito do Trabalho, Almedina, 2ª ed., 2005, 926). Daí a responsabilidade civil (art.º 403.º n.º 5 e 401.º), sendo certo que é susceptível de causar maiores danos que a denuncia expressa ou propriamente dita, já que no abandono o empregador de início nem terá, provavelmente, conhecimento do intuito do ausente, ficando assim mais limitado nomeadamente nas diligencias para o substituir. 
[5]
O “ónus suplementar” para o empregador a que alude o prof. Menezes Leitão.
[6]
Não se vislumbra aliás que seja menos “sintomática” a conduta da R. ao enviar a comunicação de abandono poucos dias antes de findar a licença de parentalidade da trabalhadora

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