terça-feira, 1 de outubro de 2013

ACIDENTE DE TRABALHO - DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE



 Proc. Nº 1008/06.8TTVFX.L2-4          11 Set 2013                         TRLisboa


Constitui acidente de trabalho o infortúnio sofrido por um trabalhador no tempo e local de trabalho, e quando se encontrava sob a autoridade da empregadora, que consistiu em ficar esmagado entre um tractor e o respectivo reboque quando prestava assistência ao motorista do tractor, do qual resultaram lesões que lhe provocaram a morte, não descaracterizando o acidente o facto de o empregador não lhe ter mandado prestar tal assistência, a qual nem estava incluída nas tarefas que lhe cabia executar

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa.
I.
A)  AA.: AA;
              BB;
              CC.  
     Sinistrado: DD;
     Responsáveis civis (também designadas por RR. de rés): EE - Companhia de Seguros, SA (recorrente);
              FF, Lda.
AA, por si e em representação de BB e CC demandou as RR. alegando que no dia 23.09.2006, DD, marido de AA e pai de BB e de CC, foi vítima de um acidente de trabalho, que consistiu em ficar esmagado entre o tractor e o reboque quando os fazia desatrelar, vindo, nessa sequência a morrer, o que aconteceu no desempenho das suas funções, sob direcção e fiscalização da R. entidade patronal; DD tinha a categoria profissional de motorista de veículos pesados de mercadorias e auferia a retribuição anual de € 11.934,64 (€ 489,82 x 14M + € 5,50 x 22D x 11M + 340,36 x 11M) sendo que a sua entidade patronal tinha a sua responsabilidade transferida para a Companhia Seguradora R. apenas em função retribuição de € 489,82 x 14 M; as despesas de funeral foram no valor de € 3.087,20 uma vez que houve transladação. Afinal, pediu a condenação das RR. a pagarem:
- A R. seguradora à beneficiária AA: € 2.057,24 de pensão anual; € 3.087,20 a título de despesas de funeral; e € 2.315,40 a título de subsídio; à beneficiária BB: € 1.371,50 de pensão anual e € 1.157,70 a título de subsídio por morte; ao beneficiário CC: € 1.371,50 de pensão anual e € 1.157,70 a título de subsídio por morte;
- A R. entidade patronal à beneficiária AA: € 1.523,15 de pensão anual; à beneficiária BB: € 1.015,43 de pensão anual; ao beneficiário CC: € 1.015,43 de pensão anual. 
O Instituto de Segurança Social, I.P. deduziu pedido de reembolso das prestações de segurança social pagas à A. AA por virtude do acidente em apreço nos autos, peticionando a condenação das RR. na quantia de € 709,40, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, alegando que, em virtude do acidente dos autos pagou àquela A. pensão de sobrevivência entre Outubro de 2006 a Agosto de 2008 no valor peticionado.
A R. Seguradora contestou a acção, alegando que na folha de férias do mês imediatamente anterior ao acidente a entidade patronal não fez constar o nome do sinistrado, embora o tivesse feito nos meses anteriores. Mais alegou que no momento do acidente o sinistrado não executava tarefa que lhe competisse realizar, que coubesse no âmbito das suas funções ou que lhe tivesse sido determinada pela sua entidade patronal, pelo que o acidente não pode ser qualificado como de trabalho.
A R. EE apresentou contestação à acção, porém a mesma foi determinada desentranhar por ser extemporânea.
A R. EE apresentou contestação ao pedido de reembolso formulado pelo ISS, IP, alegando não estarmos perante um acidente de trabalho pelo que se mostra excluído o direito à reparação, requerendo a intervenção da FF, Lda. enquanto proprietária do veículo com o qual o acidente ocorreu sendo por isso essa a entidade responsável, intervenção esta que foi indeferida.
A fls. 278 a 284 foi proferido despacho saneador, com selecção da matéria de facto assente e a que constitui a Base Instrutória.
A fls. 431 o ISS, IP veio actualizar o valor do seu pedido para a quantia de € 5.679,96.
Efetuado o julgamento, foi proferida sentença que julgando improcedente a ação e absolvendo os demandados.
Inconformada a A. apelou, na sequência do que foi anulada a sentença, determinando-se a ampliação da matéria de facto.
Efetuado novo julgamento, o Tribunal julgou a ação parcialmente procedente e:
- o pedido formulado pelo ISS-IP/CNP procedente e, em consequência:
a) condeno a R. “EE - Companhia de Seguros, S.A.” a pagar a AA:
i. uma pensão anual e vitalícia de € 2.057,24 (dois mil e cinquenta e sete euros e vinte e quatro cêntimos), devida desde 24 de setembro de 2006 e até à idade da reforma da A., acrescida de juros de mora desde o fim de cada mês a que o duodécimo atrasado respeita, à taxa legal e até integral pagamento, pensão essa que, após a idade da reforma ou no caso de doença física ou mental que afete sensivelmente a capacidade de trabalho da A., deverá passar a ser calculada com base em 40% da retribuição do sinistrado;
ii. a quantia de € 2.315,40 (dois mil trezentos e quinze euros e quarenta cêntimos), a título de subsídio por morte, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 24 de setembro de 2006 e até integral pagamento;
iii. a quantia de € 1.543,60 (mil quinhentos e quarenta e três euros e sessenta cêntimos), a título de despesas de funeral.
b) condeno a R. “EE - Companhia de Seguros, S.A.” a pagar a BB:
i. a pensão anual de € 1.371,50 (mil trezentos e setenta e um euros e cinquenta cêntimos), devida desde 24 de setembro de 2006 até à data em que atinja 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respetivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, ou sem limite de idade, quando afetada de doença física ou mental que a incapacite sensivelmente para o trabalho, acrescida de subsídios de férias e de natal, no valor de 1/14 cada da pensão anual, a pagar nos meses de maio e novembro de cada ano, bem como dos juros de mora desde o fim de cada mês a que o duodécimo atrasado respeita, à taxa legal e até integral pagamento;
ii. a quantia de €1.157,70 (mil cento e cinquenta e sete euros e setenta cêntimos), a título de subsídio por morte, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 24 de setembro de 2006 e até integral pagamento.
c) condeno a R. “EE - Companhia de Seguros, S.A.” a pagar a CC:
i. a pensão anual de € 1.371,50 (mil trezentos e setenta e um euros e cinquenta cêntimos), devida desde 24 de setembro de 2006 até à data em que atinja 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respetivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, ou sem limite de idade, quando afetado de doença física ou mental que o incapacite sensivelmente para o trabalho, acrescida de subsídios de férias e de natal, no valor de 1/14 cada da pensão anual, a pagar nos meses de maio e novembro de cada ano, bem como dos juros de mora desde o fim de cada mês a que o duodécimo atrasado respeita, à taxa legal e até integral pagamento;
ii. a quantia de € 1.157,70 (mil cento e cinquenta e sete euros e setenta cêntimos), a título de subsídio por morte, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 24 de setembro de 2006 e até integral pagamento.
d) condeno a R. FF, Lda.” a pagar:
i. a AA uma pensão anual e vitalícia de € 2.170,48 (dois mil cento e setenta euros e quarenta e oito cêntimos), devida desde 24 de setembro de 2006 e até à idade da reforma, acrescida de juros de mora desde o fim de cada mês a que o duodécimo atrasado respeita, à taxa legal e até integral pagamento, pensão essa que após a idade da reforma ou no caso de doença física ou mental que afete sensivelmente a capacidade de trabalho da A. deverá passar a ser calculada com base em 40% da retribuição;
ii. a BB uma pensão anual de €1.446,98 (mil quatrocentos e quarenta e seis euros e noventa e oito cêntimos), devida desde 24 de setembro de 2006 até à data em que atinja 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respetivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, ou sem limite de idade, quando afetada de doença física ou mental que a incapacite sensivelmente para o trabalho, acrescida de subsídios de férias e de natal, no valor de 1/14 cada da pensão anual, a pagar nos meses de maio e novembro de cada ano, bem como dos juros de mora desde o fim de cada mês a que o duodécimo atrasado respeita, à taxa legal e até integral pagamento;
iii. a CC uma pensão anual de € 1.446,98 (mil quatrocentos e quarenta e seis euros e noventa e oito cêntimos), devida desde 24 de setembro de 2006 até à data em que atinja 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respetivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, ou sem limite de idade, quando afetado de doença física ou mental que o incapacite sensivelmente para o trabalho, acrescida de subsídios de férias e de natal, no valor de 1/14 cada da pensão anual, a pagar nos meses de maio e novembro de cada ano, bem como dos juros de mora desde o fim de cada mês a que o duodécimo atrasado respeita, à taxa legal e até integral pagamento.
e) condeno a R. “EE - Companhia de Seguros, S.A.” a pagar ao Instituto de Segurança Social a quantia referente ao subsídio por morte pago a AA, BB e CC acrescido de juros, à taxa legal, contados desde 08 de junho de 2009 e até integral pagamento;
f) determino que às quantias a pagar pela R. “DD - Companhia de Seguros, S.A.” a AA, BB e CC conforme consta de a) ii, b) ii e c) ii seja deduzida a quantia referida em e) deste dispositivo;
g) condeno as RR. a pagar ao Instituto de Segurança Social, na proporção de 51,34% a 1. R. e 48,66% a 2. R, a quantia referente às pensões de sobrevivência pagas a AA, BB e CC desde 24 de setembro de 2006 e até ao trânsito em julgado da presente sentença e juros, à taxa legal, contados desde 08 de junho de 2009 e até integral pagamento;
h) determino que às quantias a pagar pelas RR. a AA, BB e CC conforme consta de a) i, b) i e c) i seja deduzida a quantia referida em g) deste dispositivo.
*
B) A R. não se conformou e recorreu, pedindo “a revogação da sentença e em seu lugar outra declarando não existir acidente de trabalho, ou, se assim não for doutamente entendido, haver o acidente por descaraterizado por provir exclusivamente de negligencia grosseira do sinistrado”, formulando estas conclusões:
(…)
*
C) Os AA. contra-alegaram pedindo a improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida, assim concluindo:
(…)
*
Foram colhidos os competentes vistos.
O MºPº teve vista e pugnou pela manutenção da sentença.
A R. EE respondeu ao parecer do MºPº.
*
II
A) É sabido e tem sido jurisprudência uniforme a conclusão de que o objecto do recurso se limita em face das conclusões insertas nas alegações do recorrente, pelo que, em princípio, só abrange as questões aí contidas, como resultado aliás do disposto nos artigos 684/3 e 690/1 do CPC.
Deste modo o objecto do recurso consiste em saber se o infortúnio dos autos constitui acidente de trabalho e, em caso afirmativo, ainda assim está descaraterizado.
*
B) Ficaram provados os seguintes factos:
(…)
*
*
C) De direito
É sabido que a revolução industrial, com a produção em série que trouxe, estando os trabalhadores confinados nos espaços físicos autónomos que são as fábricas, trouxe um aumento exponencial dos acidentes de trabalho em resultado da utilização da máquina, primeiro a vapor e depois a outras energias, no processo produtivo. Pior, os danos tenderam a tornar-se muito mais graves do que em épocas anteriores[1]. Gerou-se, assim, no séc. XIX, um sério problema social, para cuja resolução se impunha a criação dos remédios jurídicos adequados.
Num primeiro momento a reparação dos danos ficou sujeita à prova da culpa do agente, a cargo do lesado. Embora adequado às necessidades da acumulação de capital, o princípio casum sentit dominus conduziu a resultados infelizes[2], ficando os sinistrados em regra sem qualquer reparação. Efectivamente, era muito difícil a prova da culpa do empregador, não apenas pela diferença de recursos existente entre este e o trabalhador, mas também porque muitas vezes o empregador realmente não tinha qualquer culpa[3]. E também era complexo demonstrar o nexo de causalidade entre a culpa e o dano
Face à inadequação dessa responsabilidade obrigacional clássica (teoria da culpa aquiliana) no final do sec. XIX intentou-se inverter o ónus da prova, mediante o recurso à teoria da responsabilidade contratual[4]. Seria ao empregador que cabia demonstrar que não tivera qualquer culpa na produção do evento, o qual se produzira, em princípio, apenas devido à sua má organização do trabalho. Surgida na sequência das críticas de Sauzet e Sauctelette, e consagrada designadamente na Bélgica e na Suíça, não foi acolhida entre nós, revelando-se, aliás, tão insuficiente como a anterior[5].
Uma perspectiva próxima era a que fazia assentar a responsabilidade patronal numa ideia de responsabilidade extra-contratual por facto ilícito, presumindo-se em termos elidíveis a culpa do empregador, com os mesmos (escassos) resultados.
Com vista a ultrapassar as dificuldades que surgiam para obter o ressarcimento, já que o empregador provava amiúde com facilidade que nenhuma culpa tivera, ficando sem cobertura os acidentes devidos a caso fortuito ou de força maior e a negligência do sinistrado, começa a falar-se em responsabilidade objectiva ou pelo risco. Em lugar da culpa do empregador parte-se de uma relação de causa e efeito entre o acidente e a actividade laboral.
Numa visão inicial defende-se que a responsabilidade emerge do risco inerente ao exercício de toda e qualquer actividade profissional, sendo razoável que quem aufere os benefícios do labor suporte os correspondentes riscos (ubi commoda ibi incommoda; ou ubi emolumentum ibi onus). É a teoria do risco profissional.
Este entendimento foi entre nós adoptado pela Lei 83, de 24.1.1913[6], que pela primeira vez estabeleceu um regime específico de reparação dos desastres no trabalho (na terminologia do diploma). 
Numa segunda perspectiva procurou acautelar-se a protecção de actos preparatórios ou consequentes à prestação do trabalho, mas com ele conexos, e os acidentes ocorridos no caminho para e do local de trabalho – os acidentes in itinere. Designada pelo risco de autoridade ou económico, aparta-se da conexão directa acidente – trabalho para se centrar na noção ampla de autoridade do empregador.  
Esta é a concepção que enformou as leis de acidentes de trabalho subsequentes[7], a saber a Lei n.º 1942, de 27.7.36 e a Lei n.º 2127, de 3.8.65 (quanto à Lei n.º 100/97, de 13.9.97[8], veremos que releva a ideia do risco).
*
Mas o que é um acidente de trabalho? O que é que o carateriza?
Dispõe o art.º 6 da Lei 100/97, de 13.97, aqui aplicável atenta a data do acidente (e, já agora, a omissão de regulamentação do capitulo correspondente do Código do Trabalho 2003), sob a epigrafe “conceito de acidente de trabalho”, que:
1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
(…)
3 - Entende-se por local de trabalho todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador.
4 - Entende-se por tempo de trabalho, além do período normal de laboração, o que preceder o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe seguir, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.
(…)
Do ponto de vista naturalístico o acidente é um evento súbito, violento, inesperado, de ordem exterior ao próprio lesado. A subitaneidade é a caraterística que melhor distingue o acidente da doença profissional, por regra lenta e progressiva; e significa que o evento pode ser localizado no tempo e no espaço. A violência tem um sentido próprio: de que o evento viola o equilíbrio orgânico do trabalhador (neste sentido cfr. Vítor Ribeiro, Acidentes de Trabalho, Rei dos Livros, 1984, 208 e ss; Noções Elementares de Acidentes de Trabalho, cadernos do CEJ, jurisdição laboral, notas ao XVI curso de formação; Maria de Deus Crus Silva, Três Temas de Direito do Trabalho, Cadernos do CEJ, n.º 2, 1987, pag. 18; Ives Saint-Jours, em Les Accidents du Travail, Tomo III, LGDJ, 1982, a fls. 72, refere que “o acidente é caraterizado pela ação súbita e violenta de um acontecimento exterior que provoca uma lesão no organismo humano”, acrescentando que os elementos fundamentais são “a subitaneidade e a lesão corporal”, sendo “a violência e o acontecimento exterior” elementos secundários – tradução do relator).
A lei não se detém a fornecer uma definição naturalista; parte logo para a sua caraterização tendo em atenção a sua verificação no tempo e no local de trabalho.
Ora, não há qualquer dúvida que o acidente ocorreu no local de trabalho, ou seja, em sitio onde o infeliz DD se encontrava por virtude do seu trabalho e em que estava directamente sujeito ao controlo do empregador.
Com efeito, como resulta da al. a) dos factos provados, “em 23 de setembro de 2006 DD trabalhava sob as ordens, direção e fiscalização da firma “FF, Lda.”, em execução de um contrato de trabalho celebrado entre si e a referida entidade, com a categoria de motorista de veículos pesados de mercadorias”, concretamente (al. b) “no parque exterior do armazém, designado por A3, junto ao Cais 10 da empresa de Logística da Modis, na zona industrial de Alverca do Ribatejo”, que era zona de exploração de trabalho do empregador (a propósito veja-se o que já há cerca de 70 anos resultava da lei – então a L 1942 -: que “por local de trabalho deve entender-se toda a zona de exploração do trabalho ou ligada a essa exploração” – acórdão do STA de 16.1.45, citado por Veiga Rodrigues, Acidentes de Trabalho, anotações à Lei 1942, 22).
Também é irrefragável que o fazia no tempo de trabalho (no período normal de laboração), conforme as RR. aceitaram aliás em tentativa de conciliação (apenas a R. seguradora o pôs em causa, por entender que o sinistro resultou de uma actuação espontânea do sinistrado, sem ordem da entidade patronal). O que releva nos termos do disposto no art.º 112/1, do Código de Processo do Trabalho, circunscrevendo o litígio a esta questão sobre a qual não houve acordo.
Pois bem. Argumenta a EE que o A. agiu contrariando instruções da FF, sua empregadora, havendo “ordens expressas (…) no sentido de não realizar aquela tarefa (…); a conduta do sinistrado (…) deveu-se exclusivamente a um ímpeto voluntarista seu, contrariando proibição da empregadora (…) pelo que o acidente deve ter-se por descaraterizado”.
Provou-se que (al. a) no dia 23 de setembro de 2006 DD trabalhava sob as ordens, direção e fiscalização de “FF, Lda.”, em execução de um contrato de trabalho celebrado entre si e a referida entidade, com a categoria de motorista de veículos pesados de mercadorias”, (al. b) “no parque exterior do armazém, designado por A3, junto ao Cais 10 da empresa de Logística da Modis, na zona industrial de Alverca do Ribatejo, quando, ao prestar assistência a outro motorista (HH que agia sob as ordens, direção e fiscalização de “GG, Lda” –  al. c), conduzindo o trator com a matrícula 00-00-GX que tinha atrelado o reboque L-00000, na manobra de encosto ao cais de carga, ao fazer desatrelar o trator do reboque, este descaiu, ficando DD esmagado entre os dois
Em 17 de janeiro de 2006 a R. “FF, Lda.” e a “GG, S.A.” tinham celebrado o acordo cuja cópia consta de fls. 409 a 417 dos autos e o aditamento de fls. 418, dados por integralmente transcritos (al. d. e e.).
No dia do evento o trator com a matrícula 00-00-GX, que tinha atrelado o reboque L-00000, ostentava o logótipo “LS” (al. f).
Nessa ocasião DD atuou sem o conhecimento, ordens ou autorização da R. “FF, Lda”, executando tarefa que não lhe competia realizar, não cabia no âmbito das suas funções profissionais e não lhe foi determinada pela R. “FF, Lda” (al. g. e h).
O acordo supra referido celebrado entre a FF e a GG, SA,  incidia sobre a prestação de serviços de transporte rodoviário de mercadorias a executar pela R. por conta da GG (LS), “incluindo diversas operações auxiliares e complementares do transporte “(clausula 1ª, n.º 1 – fls. 409). O n.º 2, al. a), da cláusula única do aditamento ao acordo, estabelece que cabe à FF, perante a LS, designadamente “colaborar com as várias entidades intervenientes no transporte …afetando à prestação de serviços pessoal qualificado” (fls. 418).
É bom de ver que auxiliar a manobra de um veículo da LS nada tinha de inusitado, de invulgar, que supusesse que o sinistrado se houvesse de subtrair à esfera de autoridade da empregadora e de recuperar a sua autonomia, para o poder fazer. Pelo contrário: seria certamente por estar a laborar para a R., e não por sua recreação, que o sinistrado se disporia a colaborar nessa operação.
Do exposto é fácil ver que houve um efetivo acidente de trabalho, no tempo e local de prestação da atividade, e com ela conexionado, súbito e inesperado, e que provocou danos dos quais sobreveio a morte do DD.
De resto, tendo os danos ocorrido no tempo e lugar de trabalho, caberia às RR. provar que não resultaram de infortúnio laboral (art.º 7/1 do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30.04, Regulamento da Lei dos Acidentes de Trabalho, RLAT). Ou seja, caberia às RR. afastar a presunção de acidente de trabalho. Coisa que não fizeram.
Outro corolário do exposto é que o argumento da seguradora de que o sinistrado violou ordens expressas da empregadora não corresponde à verdade: o que resulta dos factos é que ele atuou sem conhecimento da FF e para além daquilo que lhe cabia realizar. O que é muito diferente: uma coisa é uma desobediência expressa, outra é executar tarefa que não lhe competia realizar, não cabia no âmbito das suas funções profissionais e que não lhe foi determinada pela empregadora. A primeira supõe o desprezar a direção do empregador, uma atitude de forte irreverência ou de acentuada displicência; esta – a do A. - pode resultar de voluntarismo, boa vontade, porventura excesso de zelo, mas não de semelhante postura. De resto, é amiúde muito difícil, senão mesmo impossível, tipificar os atos que ao trabalhador cabe realizar; espera-se, antes, que ele saiba interpretar casuisticamente as suas tarefas, indo além da mera reprodução mecânica e rígida de atividades básicas.
E isto também exclui a ideia de que o sinistrado quando muito estaria a executar atos espontâneos (aliás, a al. b do n.º 2 do art.º 6 prescinde, tanto quanto se alcança, de uma atuação no tempo e local de trabalho e de o trabalhar estar sob a autoridade do empregador – neste sentido cfr. Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª ed., 55 -, o que manifestamente não é o caso).
*
Será que, ainda assim, a conduta do sinistrado descarateriza o acidente?
Excluindo, desde logo, por manifestamente inaplicáveis, as al. c) (que assenta na privação de faculdades mentais do sinistrado) e d) (relativa a casos de força maior, i. é, irresistível), vejamos as al. a) e b) do n.º do art.º 7 da LAT:
1 - Não dá direito a reparação o acidente: 
a) Que for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei;
b) Que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
A al. a) manifestamente não colhe: não resulta de lado algum que DD haja provocado dolosamente (isto é que o tenha previsto e querido) o acidente (a talho de foice citar-se-á a velha norma do n.º 2 do art.º 2 da Lei 1942, que se referia a “ato ou omissão da vitima contra ordens expressas e logo propositadamente infringidas”, acentuando o elemento volitivo), e nem que haja violado regras de segurança.
Resta a negligencia grosseira, a qual consubstancia uma ideia de imprudência ou falta de cuidado grave, na qual não incorreria um homem médio, no fundo – conceção que já a Lei 2127, anterior LAT, consagrava na Base VI/b -, que o trabalhador tenha agido com culpa grave e indesculpável (cfr. por todos os acórdãos Supremo Tribunal de Justiça, 2.2.2005, CJ-S, I-228 e Relação de Coimbra de 27.11.2003, CJ V-62).
A exclusão apenas destes casos bem se compreende por duas ordens de razões: a positiva é que a habitualidade faz as pessoas naturalmente menos cuidadosas, mais convictas de que nada de mal ocorrerá: se andarmos em regra sobre telhados a repetição da atividade far-nos-á perder, até dado ponto, a perceção do risco de queda; se partirmos carnes creremos que a faca nunca nos atingirá a mão. Se a negligencia leve bastasse para afastar a responsabilidade muitos acidentes todavia humanamente compreensíveis ficariam sem reparação.
A razão negativa é que, pelo contrário, quem atua sem qualquer cuidado não merece proteção: o seu, no mínimo, forte desleixo, está a montante do acidente e, de certo modo, é-lhe causal. Imagine-se que alguém, por brincadeira, provoca um acidente por conduzir de olhos fechados: a possibilidade da colisão salta à vista de qualquer observador que não seja muito tolo, enfim, é óbvia para qualquer pessoa normal, e portanto não é o trabalho que gera as condições para o sinistro mas a atitude irresponsável ou até criminosa do próprio lesado.
É fácil de ver, porém, que não resulta de lado algum que o sinistrado tenha atuado com negligencia grosseira, i. é, de uma forma que um bónus pater famílias não agiria: limitou-se a auxiliar a estacionar um veículo da LS, a quem a sua empregadora prestava serviços, conduta quiçá até expectável de um trabalhador comum.
O que prejudica o recurso.
Acentue-se, ainda, que a lei não se limita a exigir a negligencia grosseira do lesado: é preciso que o evento provenha exclusivamente dessa sua negligencia.
E é claro que tal nexo, essa causalidade exclusiva, também não se vislumbra, só que seja indiciada; nem sequer que o acidente tenha sido causado pela conduta do lesado. O evento ocorreu simplesmente porque o reboque descaiu, e não por qualquer conduta descuidada do sinistrado.  
*
Em suma: o evento dos autos é um verdadeiro acidente de trabalho, nada o descaracterizando (e nada excluindo o seu caráter laboral).
Logo a sentença não merece censura, improcedendo o recurso.
*
*
III.
Pelo exposto o Tribunal julga improcedente o recurso e confirma a decisão recorrida.
Custas pela Ré seguradora.
Lisboa, 11 de Julho de 2013
Sérgio Almeida
Jerónimo Freitas
Francisca Mendes

[1] Sugestivamente, Elias Gonzalez-Posada Martinez, em “El Accidente de Trabajo: Evolucion Normativa y Tratamiento Jurídico Comparado” (acessível in http//www.der.uva.es/trabajo.acci2.html) afirma que “o risco, a proximidade de um dano, é o trágico companheiro de viagem de todo o trabalhador”. 
[2]
Sobre esta matéria vide Luís Leitão, “Acidentes de Trabalho e Responsabilidade Civil (A Natureza Jurídica da Reparação de Danos Emergentes de Acidentes de Trabalho e a Distinção entre as Responsabilidades Obrigacional e Delitual)”, in ROA, 778.
[3]
Christian Fabry, Les Accidents de Trajet – La Couverture de ce Risque en Droit Francais et en Droit Comparé, Paris, 1970, pag. 10, refere que apenas  ¼ dos acidentes se deviam a culpa do empregador.
[4]
A mera existência do vínculo contratual acarretaria, à luz desta perspectiva, a existência de uma cláusula tácita de segurança. A ser assim, porém, nada impediria que o trabalhador renunciasse a ela, ou que fossem acordadas outras limitações. Cfr. Elias Gonzalez-Posada Martinez, El Accidente de Trabajo: Evolucion Normativa y Tratamiento Jurídico Comparado”..
[5]
Cfr. Noções Elementares de Acidentes de Trabalho e Jurisprudência, CEJ, Jurisdição Laboral, lições ao XVI Curso Normal de Formação de Magistrados.
[6]
Inspirando-se na Lei francesa de 9 de Abril de 1898, cujo art.º 1º adoptou a conhecida definição de acidente de trabalho como “les accidents survenus par le fait du travail ou à lóccasion du travail”. Esta, por sua vez, foi influenciada pela legislação de Bismark, que pela primeira vez consagrou o princípio da responsabilidade pelo risco profissional.
[7]
Sem prejuízo das alterações ao regime inicial da Lei 83, designadamente operadas pelo Decreto n.º 5637 de 10.5.1919, que passou a abranger as doenças profissionais. 
[8]
O Código do Trabalho contém no Livro I, Título II o Capítulo V que regula a matéria dos acidentes de trabalho; e o Capítulo VI  que rege as doenças profissionais. Inspirados ainda na teoria do risco de autoridade, não se encontram em vigor por falta da regulamentação  a que alude o art.º 21, n.º 2, al. g) da Lei 99/03, de 27.8, aprovou o Código do Trabalho. Por este motivo centraremos a nossa análise no regime da Lei n.º 100/97

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