Proc. Nº 1008/06.8TTVFX.L2-4
11 Set 2013 TRLisboa
Constitui acidente de trabalho o
infortúnio sofrido por um trabalhador no tempo e local de trabalho, e quando se
encontrava sob a autoridade da empregadora, que consistiu em ficar esmagado
entre um tractor e o respectivo reboque quando prestava assistência ao
motorista do tractor, do qual resultaram lesões que lhe provocaram a morte, não
descaracterizando o acidente o facto de o empregador não lhe ter mandado
prestar tal assistência, a qual nem estava incluída nas tarefas que lhe cabia
executar
Acordam os
juízes no Tribunal da Relação de Lisboa.
I.
A) AA.: AA;
BB;
CC.
Sinistrado: DD;
Responsáveis civis (também designadas por RR. de
rés): EE - Companhia de Seguros, SA (recorrente);
FF, Lda.
AA, por si e em representação de BB e CC demandou as RR. alegando que no
dia 23.09.2006, DD, marido de AA e pai de BB e de CC, foi vítima de um acidente
de trabalho, que consistiu em ficar esmagado entre o tractor e o reboque quando
os fazia desatrelar, vindo, nessa sequência a morrer, o que aconteceu no
desempenho das suas funções, sob direcção e fiscalização da R. entidade
patronal; DD tinha a categoria profissional de motorista de veículos pesados de
mercadorias e auferia a retribuição anual de € 11.934,64 (€ 489,82 x 14M + €
5,50 x 22D x 11M + 340,36 x 11M) sendo que a sua entidade patronal tinha a sua
responsabilidade transferida para a Companhia Seguradora R. apenas em função
retribuição de € 489,82 x 14 M; as despesas de funeral foram no valor de €
3.087,20 uma vez que houve transladação. Afinal, pediu a condenação das RR. a
pagarem:
- A R. seguradora à beneficiária AA: € 2.057,24 de pensão anual; €
3.087,20 a título de despesas de funeral; e € 2.315,40 a título de subsídio; à
beneficiária BB: € 1.371,50 de pensão anual e € 1.157,70 a título de subsídio
por morte; ao beneficiário CC: € 1.371,50 de pensão anual e € 1.157,70 a título
de subsídio por morte;
- A R. entidade patronal à beneficiária AA: € 1.523,15 de pensão anual; à
beneficiária BB: € 1.015,43 de pensão anual; ao beneficiário CC: € 1.015,43 de
pensão anual.
O Instituto de Segurança Social, I.P. deduziu pedido de reembolso das prestações
de segurança social pagas à A. AA por virtude do acidente em apreço nos autos,
peticionando a condenação das RR. na quantia de € 709,40, acrescida de juros de
mora vencidos e vincendos, alegando que, em virtude do acidente dos autos pagou
àquela A. pensão de sobrevivência entre Outubro de 2006 a Agosto de 2008 no
valor peticionado.
A R. Seguradora contestou a acção, alegando que na folha de férias do mês
imediatamente anterior ao acidente a entidade patronal não fez constar o nome
do sinistrado, embora o tivesse feito nos meses anteriores. Mais alegou que no
momento do acidente o sinistrado não executava tarefa que lhe competisse
realizar, que coubesse no âmbito das suas funções ou que lhe tivesse sido
determinada pela sua entidade patronal, pelo que o acidente não pode ser
qualificado como de trabalho.
A R. EE apresentou contestação à acção, porém a mesma foi determinada
desentranhar por ser extemporânea.
A R. EE apresentou contestação ao pedido de reembolso formulado pelo ISS,
IP, alegando não estarmos perante um acidente de trabalho pelo que se mostra
excluído o direito à reparação, requerendo a intervenção da FF, Lda. enquanto
proprietária do veículo com o qual o acidente ocorreu sendo por isso essa a
entidade responsável, intervenção esta que foi indeferida.
A fls. 278 a 284 foi proferido despacho saneador, com selecção da matéria
de facto assente e a que constitui a Base Instrutória.
A fls. 431 o ISS, IP veio actualizar o valor do seu pedido para a quantia
de € 5.679,96.
Efetuado o julgamento, foi proferida sentença que julgando improcedente a
ação e absolvendo os demandados.
Inconformada a A. apelou, na sequência do que foi anulada a sentença,
determinando-se a ampliação da matéria de facto.
Efetuado novo julgamento, o Tribunal julgou a ação parcialmente
procedente e:
- o pedido formulado pelo ISS-IP/CNP procedente e, em consequência:
a) condeno a R. “EE - Companhia de Seguros, S.A.” a pagar a AA:
i. uma pensão anual e vitalícia de € 2.057,24 (dois mil e cinquenta e
sete euros e vinte e quatro cêntimos), devida desde 24 de setembro de 2006 e
até à idade da reforma da A., acrescida de juros de mora desde o fim de cada
mês a que o duodécimo atrasado respeita, à taxa legal e até integral pagamento,
pensão essa que, após a idade da reforma ou no caso de doença física ou mental
que afete sensivelmente a capacidade de trabalho da A., deverá passar a ser
calculada com base em 40% da retribuição do sinistrado;
ii. a quantia de € 2.315,40 (dois mil trezentos e quinze euros e quarenta
cêntimos), a título de subsídio por morte, acrescida de juros de mora, à taxa
legal, desde 24 de setembro de 2006 e até integral pagamento;
iii. a quantia de € 1.543,60 (mil quinhentos e quarenta e três euros e
sessenta cêntimos), a título de despesas de funeral.
b) condeno a R. “EE - Companhia de Seguros, S.A.” a pagar a BB:
i. a pensão anual de € 1.371,50 (mil trezentos e setenta e um euros e
cinquenta cêntimos), devida desde 24 de setembro de 2006 até à data em que
atinja 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respetivamente, o ensino
secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, ou sem limite de idade,
quando afetada de doença física ou mental que a incapacite sensivelmente para o
trabalho, acrescida de subsídios de férias e de natal, no valor de 1/14 cada da
pensão anual, a pagar nos meses de maio e novembro de cada ano, bem como dos
juros de mora desde o fim de cada mês a que o duodécimo atrasado respeita, à
taxa legal e até integral pagamento;
ii. a quantia de €1.157,70 (mil cento e cinquenta e sete euros e setenta
cêntimos), a título de subsídio por morte, acrescida de juros de mora, à taxa
legal, desde 24 de setembro de 2006 e até integral pagamento.
c) condeno a R. “EE - Companhia de Seguros, S.A.” a pagar a CC:
i. a pensão anual de € 1.371,50 (mil trezentos e setenta e um euros e
cinquenta cêntimos), devida desde 24 de setembro de 2006 até à data em que
atinja 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respetivamente, o ensino secundário
ou curso equiparado ou o ensino superior, ou sem limite de idade, quando
afetado de doença física ou mental que o incapacite sensivelmente para o
trabalho, acrescida de subsídios de férias e de natal, no valor de 1/14 cada da
pensão anual, a pagar nos meses de maio e novembro de cada ano, bem como dos
juros de mora desde o fim de cada mês a que o duodécimo atrasado respeita, à
taxa legal e até integral pagamento;
ii. a quantia de € 1.157,70 (mil cento e cinquenta e sete euros e setenta
cêntimos), a título de subsídio por morte, acrescida de juros de mora, à taxa
legal, desde 24 de setembro de 2006 e até integral pagamento.
d) condeno a R. FF, Lda.” a pagar:
i. a AA uma pensão anual e vitalícia de € 2.170,48 (dois mil cento e
setenta euros e quarenta e oito cêntimos), devida desde 24 de setembro de 2006
e até à idade da reforma, acrescida de juros de mora desde o fim de cada mês a
que o duodécimo atrasado respeita, à taxa legal e até integral pagamento,
pensão essa que após a idade da reforma ou no caso de doença física ou mental
que afete sensivelmente a capacidade de trabalho da A. deverá passar a ser
calculada com base em 40% da retribuição;
ii. a BB uma pensão anual de €1.446,98 (mil quatrocentos e quarenta e
seis euros e noventa e oito cêntimos), devida desde 24 de setembro de 2006 até
à data em que atinja 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respetivamente, o
ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, ou sem limite de
idade, quando afetada de doença física ou mental que a incapacite sensivelmente
para o trabalho, acrescida de subsídios de férias e de natal, no valor de 1/14
cada da pensão anual, a pagar nos meses de maio e novembro de cada ano, bem
como dos juros de mora desde o fim de cada mês a que o duodécimo atrasado
respeita, à taxa legal e até integral pagamento;
iii. a CC uma pensão anual de € 1.446,98 (mil quatrocentos e quarenta e
seis euros e noventa e oito cêntimos), devida desde 24 de setembro de 2006 até
à data em que atinja 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respetivamente, o
ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, ou sem limite de
idade, quando afetado de doença física ou mental que o incapacite sensivelmente
para o trabalho, acrescida de subsídios de férias e de natal, no valor de 1/14
cada da pensão anual, a pagar nos meses de maio e novembro de cada ano, bem
como dos juros de mora desde o fim de cada mês a que o duodécimo atrasado
respeita, à taxa legal e até integral pagamento.
e) condeno a R. “EE - Companhia de Seguros, S.A.” a pagar ao Instituto de
Segurança Social a quantia referente ao subsídio por morte pago a AA, BB e CC
acrescido de juros, à taxa legal, contados desde 08 de junho de 2009 e até
integral pagamento;
f) determino que às quantias a pagar pela R. “DD - Companhia de Seguros,
S.A.” a AA, BB e CC conforme consta de a) ii, b) ii e c) ii seja deduzida a
quantia referida em e) deste dispositivo;
g) condeno as RR. a pagar ao Instituto de Segurança Social, na proporção
de 51,34% a 1. R. e 48,66% a 2. R, a quantia referente às pensões de
sobrevivência pagas a AA, BB e CC desde 24 de setembro de 2006 e até ao
trânsito em julgado da presente sentença e juros, à taxa legal, contados desde
08 de junho de 2009 e até integral pagamento;
h) determino que às quantias a pagar pelas RR. a AA, BB e CC conforme
consta de a) i, b) i e c) i seja deduzida a quantia referida em g) deste
dispositivo.
*
B) A R. não se conformou e recorreu, pedindo “a revogação da sentença
e em seu lugar outra declarando não existir acidente de trabalho, ou, se assim
não for doutamente entendido, haver o acidente por descaraterizado por provir
exclusivamente de negligencia grosseira do sinistrado”, formulando estas
conclusões:
(…)
*
C) Os AA. contra-alegaram pedindo a improcedência do recurso e a
manutenção da decisão recorrida, assim concluindo:
(…)
*
Foram colhidos os competentes vistos.
O MºPº teve vista e pugnou pela manutenção da sentença.
A R. EE respondeu ao parecer do MºPº.
*
II
A) É sabido e tem sido jurisprudência uniforme a conclusão de que o
objecto do recurso se limita em face das conclusões insertas nas alegações do
recorrente, pelo que, em princípio, só abrange as questões aí contidas, como
resultado aliás do disposto nos artigos 684/3 e 690/1 do CPC.
Deste modo o objecto do recurso consiste em saber se o infortúnio dos
autos constitui acidente de trabalho e, em caso afirmativo, ainda assim está
descaraterizado.
*
B) Ficaram provados os seguintes factos:
(…)
*
*
C) De direito
É sabido que a revolução industrial, com a produção em série que trouxe,
estando os trabalhadores confinados nos espaços físicos autónomos que são as
fábricas, trouxe um aumento exponencial dos acidentes de trabalho em resultado
da utilização da máquina, primeiro a vapor e depois a outras energias, no
processo produtivo. Pior, os danos tenderam a tornar-se muito mais graves do
que em épocas anteriores[1]. Gerou-se, assim, no séc. XIX, um sério problema social, para cuja
resolução se impunha a criação dos remédios jurídicos adequados.
Num primeiro momento a reparação dos danos ficou sujeita à prova da culpa
do agente, a cargo do lesado. Embora adequado às necessidades da acumulação de
capital, o princípio casum sentit dominus conduziu a resultados
infelizes[2], ficando os sinistrados em regra sem qualquer reparação. Efectivamente,
era muito difícil a prova da culpa do empregador, não apenas pela diferença de
recursos existente entre este e o trabalhador, mas também porque muitas vezes o
empregador realmente não tinha qualquer culpa[3]. E também era complexo demonstrar o nexo de causalidade entre a culpa e
o dano
Face à inadequação dessa responsabilidade obrigacional clássica (teoria
da culpa aquiliana) no final do sec. XIX intentou-se inverter o ónus da prova,
mediante o recurso à teoria da responsabilidade contratual[4]. Seria ao empregador que cabia demonstrar que não tivera qualquer culpa
na produção do evento, o qual se produzira, em princípio, apenas devido à sua
má organização do trabalho. Surgida na sequência das críticas de Sauzet e
Sauctelette, e consagrada designadamente na Bélgica e na Suíça, não foi
acolhida entre nós, revelando-se, aliás, tão insuficiente como a anterior[5].
Uma perspectiva próxima era a que fazia assentar a responsabilidade
patronal numa ideia de responsabilidade extra-contratual por facto ilícito,
presumindo-se em termos elidíveis a culpa do empregador, com os mesmos
(escassos) resultados.
Com vista a ultrapassar as dificuldades que surgiam para obter o
ressarcimento, já que o empregador provava amiúde com facilidade que nenhuma
culpa tivera, ficando sem cobertura os acidentes devidos a caso fortuito ou de
força maior e a negligência do sinistrado, começa a falar-se em
responsabilidade objectiva ou pelo risco. Em lugar da culpa do empregador
parte-se de uma relação de causa e efeito entre o acidente e a actividade
laboral.
Numa visão inicial defende-se que a responsabilidade emerge do risco
inerente ao exercício de toda e qualquer actividade profissional, sendo
razoável que quem aufere os benefícios do labor suporte os correspondentes
riscos (ubi commoda ibi incommoda; ou ubi emolumentum ibi onus).
É a teoria do risco profissional.
Este entendimento foi entre nós adoptado pela Lei 83, de 24.1.1913[6], que pela primeira vez estabeleceu um regime específico de reparação dos
desastres no trabalho (na terminologia do diploma).
Numa segunda perspectiva procurou acautelar-se a protecção de actos preparatórios ou consequentes à prestação do trabalho, mas com ele conexos, e os acidentes ocorridos no caminho para e do local de trabalho – os acidentes in itinere. Designada pelo risco de autoridade ou económico, aparta-se da conexão directa acidente – trabalho para se centrar na noção ampla de autoridade do empregador.
Numa segunda perspectiva procurou acautelar-se a protecção de actos preparatórios ou consequentes à prestação do trabalho, mas com ele conexos, e os acidentes ocorridos no caminho para e do local de trabalho – os acidentes in itinere. Designada pelo risco de autoridade ou económico, aparta-se da conexão directa acidente – trabalho para se centrar na noção ampla de autoridade do empregador.
Esta é a concepção que enformou as leis de acidentes de trabalho
subsequentes[7], a saber a Lei n.º 1942, de 27.7.36 e a Lei n.º 2127, de 3.8.65 (quanto
à Lei n.º 100/97, de 13.9.97[8], veremos que releva a ideia do risco).
*
Mas o que é um acidente de trabalho? O que é que o carateriza?
Dispõe o art.º 6 da Lei 100/97, de 13.97, aqui aplicável atenta a data do
acidente (e, já agora, a omissão de regulamentação do capitulo correspondente
do Código do Trabalho 2003), sob a epigrafe “conceito de acidente de trabalho”,
que:
1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de
trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação
funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de
ganho ou a morte.
(…)
3 - Entende-se por local de trabalho todo o lugar em que o trabalhador se
encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa
ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador.
4 - Entende-se por tempo de trabalho, além do período normal de
laboração, o que preceder o seu início, em actos de preparação ou com ele
relacionados, e o que se lhe seguir, em actos também com ele relacionados, e
ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.
(…)
Do ponto de vista naturalístico o acidente é um evento súbito, violento,
inesperado, de ordem exterior ao próprio lesado. A subitaneidade é a
caraterística que melhor distingue o acidente da doença profissional, por regra
lenta e progressiva; e significa que o evento pode ser localizado no tempo e no
espaço. A violência tem um sentido próprio: de que o evento viola o equilíbrio
orgânico do trabalhador (neste sentido cfr. Vítor Ribeiro, Acidentes de
Trabalho, Rei dos Livros, 1984, 208 e ss; Noções Elementares de Acidentes de
Trabalho, cadernos do CEJ, jurisdição laboral, notas ao XVI curso de formação;
Maria de Deus Crus Silva, Três Temas de Direito do Trabalho, Cadernos do CEJ,
n.º 2, 1987, pag. 18; Ives Saint-Jours, em Les Accidents du Travail, Tomo III,
LGDJ, 1982, a fls. 72, refere que “o acidente é caraterizado pela ação súbita e
violenta de um acontecimento exterior que provoca uma lesão no organismo
humano”, acrescentando que os elementos fundamentais são “a subitaneidade e a
lesão corporal”, sendo “a violência e o acontecimento exterior” elementos
secundários – tradução do relator).
A lei não se detém a fornecer uma definição naturalista; parte logo para
a sua caraterização tendo em atenção a sua verificação no tempo e no local de
trabalho.
Ora, não há qualquer dúvida que o acidente ocorreu no local de
trabalho, ou seja, em sitio onde o infeliz DD se encontrava por virtude do seu
trabalho e em que estava directamente sujeito ao controlo do empregador.
Com efeito, como resulta da al. a) dos factos provados, “em 23 de
setembro de 2006 DD trabalhava sob as ordens, direção e fiscalização da firma
“FF, Lda.”, em execução de um contrato de trabalho celebrado entre si e a
referida entidade, com a categoria de motorista de veículos pesados de
mercadorias”, concretamente (al. b) “no parque exterior do armazém,
designado por A3, junto ao Cais 10 da empresa de Logística da Modis, na zona
industrial de Alverca do Ribatejo”, que era zona de exploração de trabalho
do empregador (a propósito veja-se o que já há cerca de 70 anos resultava da
lei – então a L 1942 -: que “por local de trabalho deve entender-se toda a zona
de exploração do trabalho ou ligada a essa exploração” – acórdão do STA de
16.1.45, citado por Veiga Rodrigues, Acidentes de Trabalho, anotações à Lei
1942, 22).
Também é irrefragável que o fazia no tempo de trabalho (no período
normal de laboração), conforme as RR. aceitaram aliás em tentativa de
conciliação (apenas a R. seguradora o pôs em causa, por entender que o
sinistro resultou de uma actuação espontânea do sinistrado, sem ordem da
entidade patronal). O que releva nos termos do disposto no art.º 112/1, do
Código de Processo do Trabalho, circunscrevendo o litígio a esta questão sobre
a qual não houve acordo.
Pois bem. Argumenta a EE que o A. agiu contrariando instruções da FF, sua
empregadora, havendo “ordens expressas (…) no sentido de não realizar aquela
tarefa (…); a conduta do sinistrado (…) deveu-se exclusivamente a um ímpeto
voluntarista seu, contrariando proibição da empregadora (…) pelo que o acidente
deve ter-se por descaraterizado”.
Provou-se que (al. a) no dia 23 de setembro de 2006 DD trabalhava sob
as ordens, direção e fiscalização de “FF, Lda.”, em execução de um contrato de
trabalho celebrado entre si e a referida entidade, com a categoria de motorista
de veículos pesados de mercadorias”, (al. b) “no parque exterior do
armazém, designado por A3, junto ao Cais 10 da empresa de Logística da Modis,
na zona industrial de Alverca do Ribatejo, quando, ao prestar assistência a
outro motorista (HH que agia sob as ordens, direção e fiscalização de “GG, Lda”
– al. c), conduzindo o trator com a matrícula 00-00-GX que tinha atrelado
o reboque L-00000, na manobra de encosto ao cais de carga, ao fazer desatrelar
o trator do reboque, este descaiu, ficando DD esmagado entre os dois
Em 17 de janeiro de 2006 a R. “FF, Lda.” e a “GG, S.A.” tinham celebrado
o acordo cuja cópia consta de fls. 409 a 417 dos autos e o aditamento de fls.
418, dados por integralmente transcritos (al. d. e e.).
No dia do evento o trator com a matrícula 00-00-GX, que tinha atrelado o
reboque L-00000, ostentava o logótipo “LS” (al. f).
Nessa ocasião DD atuou sem o conhecimento, ordens ou autorização da R.
“FF, Lda”, executando tarefa que não lhe competia realizar, não cabia no âmbito
das suas funções profissionais e não lhe foi determinada pela R. “FF, Lda” (al.
g. e h).
O acordo supra referido celebrado entre a FF e a GG, SA, incidia
sobre a prestação de serviços de transporte rodoviário de mercadorias a
executar pela R. por conta da GG (LS), “incluindo diversas operações
auxiliares e complementares do transporte “(clausula 1ª, n.º 1 – fls. 409).
O n.º 2, al. a), da cláusula única do aditamento ao acordo, estabelece que cabe
à FF, perante a LS, designadamente “colaborar com as várias entidades
intervenientes no transporte …afetando à prestação de serviços pessoal
qualificado” (fls. 418).
É bom de ver que auxiliar a manobra de um veículo da LS nada tinha de
inusitado, de invulgar, que supusesse que o sinistrado se houvesse de subtrair
à esfera de autoridade da empregadora e de recuperar a sua autonomia, para o
poder fazer. Pelo contrário: seria certamente por estar a laborar para a R., e
não por sua recreação, que o sinistrado se disporia a colaborar nessa operação.
Do exposto é fácil ver que houve um efetivo acidente de trabalho, no
tempo e local de prestação da atividade, e com ela conexionado, súbito e
inesperado, e que provocou danos dos quais sobreveio a morte do DD.
De resto, tendo os danos ocorrido no tempo e lugar de trabalho, caberia
às RR. provar que não resultaram de infortúnio laboral (art.º 7/1 do
Decreto-Lei n.º 143/99, de 30.04, Regulamento da Lei dos Acidentes de Trabalho,
RLAT). Ou seja, caberia às RR. afastar a presunção de acidente de trabalho.
Coisa que não fizeram.
Outro corolário do exposto é que o argumento da seguradora de que o
sinistrado violou ordens expressas da empregadora não corresponde à verdade: o
que resulta dos factos é que ele atuou sem conhecimento da FF e para além
daquilo que lhe cabia realizar. O que é muito diferente: uma coisa é uma
desobediência expressa, outra é executar tarefa que não lhe competia
realizar, não cabia no âmbito das suas funções profissionais e que não lhe foi
determinada pela empregadora. A primeira supõe o desprezar a direção do
empregador, uma atitude de forte irreverência ou de acentuada displicência;
esta – a do A. - pode resultar de voluntarismo, boa vontade, porventura excesso
de zelo, mas não de semelhante postura. De resto, é amiúde muito difícil, senão
mesmo impossível, tipificar os atos que ao trabalhador cabe realizar;
espera-se, antes, que ele saiba interpretar casuisticamente as suas tarefas,
indo além da mera reprodução mecânica e rígida de atividades básicas.
E isto também exclui a ideia de que o sinistrado quando muito estaria a
executar atos espontâneos (aliás, a al. b do n.º 2 do art.º 6 prescinde, tanto
quanto se alcança, de uma atuação no tempo e local de trabalho e de o trabalhar
estar sob a autoridade do empregador – neste sentido cfr. Carlos Alegre,
Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª ed., 55 -, o que
manifestamente não é o caso).
*
Será que, ainda assim, a conduta do sinistrado descarateriza o acidente?
Excluindo, desde logo, por manifestamente inaplicáveis, as al. c) (que
assenta na privação de faculdades mentais do sinistrado) e d) (relativa a casos
de força maior, i. é, irresistível), vejamos as al. a) e b) do n.º do art.º 7
da LAT:
1 - Não dá direito a reparação o acidente:
a) Que for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto
ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de
segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei;
b) Que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
A al. a) manifestamente não colhe: não resulta de lado algum que DD haja
provocado dolosamente (isto é que o tenha previsto e querido) o acidente (a
talho de foice citar-se-á a velha norma do n.º 2 do art.º 2 da Lei 1942, que se
referia a “ato ou omissão da vitima contra ordens expressas e logo
propositadamente infringidas”, acentuando o elemento volitivo), e nem que
haja violado regras de segurança.
Resta a negligencia grosseira, a qual consubstancia uma ideia de
imprudência ou falta de cuidado grave, na qual não incorreria um homem médio,
no fundo – conceção que já a Lei 2127, anterior LAT, consagrava na Base VI/b -,
que o trabalhador tenha agido com culpa grave e indesculpável (cfr. por todos
os acórdãos Supremo Tribunal de Justiça, 2.2.2005, CJ-S, I-228 e Relação de
Coimbra de 27.11.2003, CJ V-62).
A exclusão apenas destes casos bem se compreende por duas ordens de
razões: a positiva é que a habitualidade faz as pessoas naturalmente menos
cuidadosas, mais convictas de que nada de mal ocorrerá: se andarmos em regra
sobre telhados a repetição da atividade far-nos-á perder, até dado ponto, a
perceção do risco de queda; se partirmos carnes creremos que a faca nunca nos
atingirá a mão. Se a negligencia leve bastasse para afastar a responsabilidade
muitos acidentes todavia humanamente compreensíveis ficariam sem reparação.
A razão negativa é que, pelo contrário, quem atua sem qualquer cuidado
não merece proteção: o seu, no mínimo, forte desleixo, está a montante do
acidente e, de certo modo, é-lhe causal. Imagine-se que alguém, por
brincadeira, provoca um acidente por conduzir de olhos fechados: a
possibilidade da colisão salta à vista de qualquer observador que não seja
muito tolo, enfim, é óbvia para qualquer pessoa normal, e portanto não é o
trabalho que gera as condições para o sinistro mas a atitude irresponsável ou
até criminosa do próprio lesado.
É fácil de ver, porém, que não resulta de lado algum que o sinistrado
tenha atuado com negligencia grosseira, i. é, de uma forma que um bónus pater
famílias não agiria: limitou-se a auxiliar a estacionar um veículo da LS, a
quem a sua empregadora prestava serviços, conduta quiçá até expectável de um
trabalhador comum.
O que prejudica o recurso.
Acentue-se, ainda, que a lei não se limita a exigir a negligencia
grosseira do lesado: é preciso que o evento provenha exclusivamente dessa sua
negligencia.
E é claro que tal nexo, essa causalidade exclusiva, também não se
vislumbra, só que seja indiciada; nem sequer que o acidente tenha sido causado
pela conduta do lesado. O evento ocorreu simplesmente porque o reboque descaiu,
e não por qualquer conduta descuidada do sinistrado.
*
Em suma: o evento dos autos é um verdadeiro acidente de trabalho, nada o
descaracterizando (e nada excluindo o seu caráter laboral).
Logo a sentença não merece censura, improcedendo o recurso.
*
*
III.
Pelo exposto o Tribunal julga improcedente o recurso e confirma a decisão
recorrida.
Custas pela Ré seguradora.
Lisboa, 11 de Julho de 2013
Sérgio Almeida
Jerónimo Freitas
Francisca Mendes
[1] Sugestivamente, Elias Gonzalez-Posada Martinez, em “El Accidente de Trabajo: Evolucion Normativa y Tratamiento Jurídico Comparado” (acessível in http//www.der.uva.es/trabajo.acci2.html) afirma que “o risco, a proximidade de um dano, é o trágico companheiro de viagem de todo o trabalhador”.
[2] Sobre esta matéria vide Luís Leitão, “Acidentes de Trabalho e Responsabilidade Civil (A Natureza Jurídica da Reparação de Danos Emergentes de Acidentes de Trabalho e a Distinção entre as Responsabilidades Obrigacional e Delitual)”, in ROA, 778.
[3] Christian Fabry, Les Accidents de Trajet – La Couverture de ce Risque en Droit Francais et en Droit Comparé, Paris, 1970, pag. 10, refere que apenas ¼ dos acidentes se deviam a culpa do empregador.
[4] A mera existência do vínculo contratual acarretaria, à luz desta perspectiva, a existência de uma cláusula tácita de segurança. A ser assim, porém, nada impediria que o trabalhador renunciasse a ela, ou que fossem acordadas outras limitações. Cfr. Elias Gonzalez-Posada Martinez, El Accidente de Trabajo: Evolucion Normativa y Tratamiento Jurídico Comparado”..
[5] Cfr. Noções Elementares de Acidentes de Trabalho e Jurisprudência, CEJ, Jurisdição Laboral, lições ao XVI Curso Normal de Formação de Magistrados.
[6] Inspirando-se na Lei francesa de 9 de Abril de 1898, cujo art.º 1º adoptou a conhecida definição de acidente de trabalho como “les accidents survenus par le fait du travail ou à lóccasion du travail”. Esta, por sua vez, foi influenciada pela legislação de Bismark, que pela primeira vez consagrou o princípio da responsabilidade pelo risco profissional.
[7] Sem prejuízo das alterações ao regime inicial da Lei 83, designadamente operadas pelo Decreto n.º 5637 de 10.5.1919, que passou a abranger as doenças profissionais.
[8] O Código do Trabalho contém no Livro I, Título II o Capítulo V que regula a matéria dos acidentes de trabalho; e o Capítulo VI que rege as doenças profissionais. Inspirados ainda na teoria do risco de autoridade, não se encontram em vigor por falta da regulamentação a que alude o art.º 21, n.º 2, al. g) da Lei 99/03, de 27.8, aprovou o Código do Trabalho. Por este motivo centraremos a nossa análise no regime da Lei n.º 100/97
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