terça-feira, 1 de outubro de 2013

ACIDENTE DE TRABALHO - LOCAL DE TRABALHO



 Proc. Nº 1408/11.1TTLSB.L1-4                     TRLisboa                  19 Jun 2013

O trabalhador que tem um infortúnio no refeitório afecto ao pessoal sito no edifício em que labora, à hora do almoço, ao sentar-se para comer, sofre-o em local de trabalho, e o mesmo constitui acidente de trabalho (e não, sequer, acidente in itinere), susceptível de reparação ao abrigo da lei dos acidentes de trabalho

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa.

I.
A) Sinistrada (também designado infra por A. de autora): AA, patrocinada pelo MºPº;
Responsável civil (também designada por R. de ré) e recorrente: Companhia de Seguros BB, SA.
A A., alegando que como trabalhadora da CC, Empresa de Trabalho Temporário, Lda, torceu o joelho direito quando se encontrava a subir para o banco da mesa do refeitório onde ia almoçar no dia 6/4/2010, pelas 13h, no refeitório das instalações da PT, onde exercia as suas funções, pediu a condenação da Ré a pagar-lhe o capital de remição da pensão anual e vitalícia de € 93,10, a quantia de € 20 a título de reembolso das despesas realizadas com as deslocações obrigatórias ao tribunal, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde o respetivo vencimento até integral pagamento.
A Ré Seguradora contestou alegando que não está em causa um acidente de trabalho uma vez que o mesmo ocorreu no interior do refeitório e não no trajeto entre o local de trabalho e o local de refeição.
Afinal foi proferida sentença que, na parte relevante, estribou-se e decidiu desta sorte:
(…) Segundo o alegado pela Ré Seguradora, se a Sinistrada tivesse sofrido o acidente depois de sair do seu posto de trabalho, ou do edifício, onde se localizava o mesmo, estando-se a dirigir ao local das refeições, estar-se-ia face a um acidente de trabalho atento o disposto no art. 9°, n.º 2, e). (…) Bastaria a Autora estar a efetuar o percurso entre o seu posto de trabalho e o refeitório para se tratar de um acidente de trabalho. Porém, como a Autora não abandonou o edifício onde se localizava o seu posto de trabalho, e já se encontrava no local onde ia tomar a sua refeição, já não se pode qualificar o acidente como acidente de trabalho.
Ora, (…) consideramos que o acidente se enquadra no art. 8° n.º 1, uma vez que ocorreu no local e no tempo de trabalho. Ocorreu no local de trabalho porque, atento o conceito legal da transcrita alínea a), o local de trabalho é muito mais abrangente do que o posto de trabalho. Como (…) a Autora exercia funções de assistente operacional de Call Center, nas instalações da PT, e que foi no refeitório das dessas instalações que sofreu o acidente, necessariamente que se terá que concluir que ocorreu no seu local de trabalho. (… E) ocorreu, ainda, no tempo de trabalho, na medida em que este conceito é igualmente mais abrangente que o de período de trabalho efetivo. (…) O horário de trabalho da Autora previa o período das 12h30 e as 13h30 para almoço e a Autora sofreu o acidente pelas 13.00h. Estipulando a lei como tempo de trabalho as interrupções normais de trabalho, e tendo em conta que a interrupção para almoço corresponde também a um intervalo de descanso nos termos previstos no art. 213° do C. do Trabalho, então o acidente ocorreu no tempo de trabalho (relativamente a um acidente numa cantina, que foi qualificado como acidente de trabalho ver Ac. STJ de 3/7/87, n.º de documento SJ19870 7030016034, in www.dgsi.pt).
Assim, há que qualificar o acidente sofrido pela Autora a 6/4/2010, como um acidente de trabalho, visto estar definida a relação laboral entre a Sinistrado e a Empregadora, acidente esse que ocorreu no local e tempo de trabalho e produziu diretamente lesões corporais na Autora.
(…)
3-DECISÃO
Face ao exposto julga-se a ação procedente e, consequentemente, condena-se a Ré COMPANHIA DE SEGUROS BB, SA, a pagar à Autora:
I) o capital de remição da pensão anual e vitalícia de €93,1O( vinte e três euros e dez cêntimos devido desde 1/4/2011
II) a quantia de € 20,00 (vinte euros) de despesas de deslocação.
Montantes estes acrescidos de juros de mora, à taxa legal, até integral pagamento.

*
B) É quanto à parte da sentença que considerou ser o evento acidente de trabalho que a R. se rebela, formulando estas conclusões:
(…)
*
C) A A. contra-alegou pedindo a improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida, assim concluindo:
(…)
*
Foram colhidos os competentes vistos.
*
II
A) É sabido e tem sido jurisprudência uniforme a conclusão de que o objecto do recurso se limita em face das conclusões insertas nas alegações do recorrente, pelo que, em princípio, só abrange as questões aí contidas, como resultado aliás do disposto nos artigos 684/3 e 690/1 do CPC.
Deste modo o objecto do recurso consiste em saber se o infortúnio dos autos constitui acidente de trabalho, face ao local em que ocorreu (sendo irrelevante discutir a questão do tempo de trabalho, visto que a própria R. aceita que (conclusão 4ª) este acidente ocorreu no tempo de trabalho, porquanto se verificou durante a hora de almoço, ou seja, durante uma interrupção normal de trabalho - situação contemplada na parte final da alínea b) do n.º 2 da Lei 98/2009 de 4 de Setembro).
*
B) Ficaram provados os seguintes factos:
1. A A. era trabalhadora da CC, Empresa de trabalho temporário, Lda, com o NIPC 507485882, por cuja conta e sob cujas ordens e direcção, exercia a profissão de assistente operacional de Call Center nas instalações da PT. (A)
2. Auferia, em Abril de 2010, a seguinte retribuição anual:
€ 356,25 x 14 meses (salário-base);
€ 6 x 242 dias (subsídio de refeição. ( B)
3. Durante o seu horário de trabalho possuía o período das 12h30 e as 13h30 para almoçar. (C)
4. No dia 6/4/2010, pelas 13h, no refeitório das instalações da PT, onde exercia as suas funções, a A. sofreu um acidente. ( D)
5. Tal acidente consistiu em ter torcido o joelho direito quando se encontrava a subir para o banco da mesa do refeitório onde ia almoçar. (E)
6. A entidade empregadora CC, Lda, tinha transferido a responsabilidade por sinistros para a R., mediante contrato de seguro titulado pela apólice n° (…), com base na retribuição de €475 x 14 meses. (F)
7. O acidente acima referido causou à A. as lesões descritas na documentação clínica e nosológica constante dos autos, nomeadamente entorse do joelho direito. (G)
8. A sinistrada recebeu cuidados médicos por parte da R. até 31/3/2011, data em que lhe foi atribuída alta definitiva. (H)
9. Entre a data do acidente e a alta a R. pagou à sinistrada as indemnizações que lhe eram devidas por ITA e ITP. (L)
10. Submetida a exame médico neste tribunal, foi-lhe fixada a TPP de 2% a partir de 31/3/2011. (J)
11. Na tentativa de conciliação realizada em 15/9/2011 e 10/10/2011 a R. seguradora aceitou a existência do acidente mas não a sua caracterização como acidente de trabalho, aceitou o nexo causal entre o mesmo e as lesões sofridas pela sinistrada mas não aceitou o resultado do exame médico. ( L)
12. Aceitou igualmente encontrar-se transferia a responsabilidade infortunística-laboral pelo montante do salário base de € 475 x 14. (M)
*
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C) De direito
É sabido que a revolução industrial, com a produção em série que trouxe, estando os trabalhadores confinados nos espaços físicos autónomos que são as fábricas, trouxe um aumento exponencial dos acidentes de trabalho em resultado da utilização da máquina, primeiro a vapor e depois a outras energias, no processo produtivo. Pior, os danos tenderam a tornar-se muito mais graves do que em épocas anteriores[1]. Gerou-se, assim, no séc. XIX, um sério problema social, para cuja resolução se impunha a criação dos remédios jurídicos adequados.
Num primeiro momento a reparação dos danos ficou sujeita à prova da culpa do agente, a cargo do lesado. Embora adequado às necessidades da acumulação de capital, o princípio casum sentit dominus conduziu a resultados infelizes[2], ficando os sinistrados em regra sem qualquer reparação. Efectivamente, era muito difícil a prova da culpa do empregador, não apenas pela diferença de recursos existente entre este e o trabalhador, mas também porque muitas vezes o empregador realmente não tinha qualquer culpa[3]. E também era complexo demonstrar o nexo de causalidade entre a culpa e o dano
Face à inadequação dessa responsabilidade obrigacional clássica (teoria da culpa aquiliana) no final do sec. XIX intentou-se inverter o ónus da prova, mediante o recurso à teoria da responsabilidade contratual[4]. Seria ao empregador que cabia demonstrar que não tivera qualquer culpa na produção do evento, o qual se produzira, em princípio, apenas devido à sua má organização do trabalho. Surgida na sequência das críticas de Sauzet e Sauctelette, e consagrada designadamente na Bélgica e na Suíça, não foi acolhida entre nós, revelando-se, aliás, tão insuficiente como a anterior[5].
Uma perspectiva próxima era a que fazia assentar a responsabilidade patronal numa ideia de responsabilidade extra-contratual por facto ilícito, presumindo-se em termos elidíveis a culpa do empregador, com os mesmos (escassos) resultados.
Com vista a ultrapassar as dificuldades que surgiam para obter o ressarcimento, já que o empregador provava amiúde com facilidade que nenhuma culpa tivera, ficando sem cobertura os acidentes devidos a caso fortuito ou de força maior e a negligência do sinistrado, começa a falar-se em responsabilidade objectiva ou pelo risco. Em lugar da culpa do empregador parte-se de uma relação de causa e efeito entre o acidente e a actividade laboral.
Numa visão inicial defende-se que a responsabilidade emerge do risco inerente ao exercício de toda e qualquer actividade profissional, sendo razoável que quem aufere os benefícios do labor suporte os correspondentes riscos (ubi commoda ibi incommoda; ou ubi emolumentum ibi onus). É a teoria do risco profissional.
Este entendimento foi entre nós adoptado pela Lei 83, de 24.1.1913[6], que pela primeira vez estabeleceu um regime específico de reparação dos desastres no trabalho (na terminologia do diploma). 
Numa segunda perspectiva procurou acautelar-se a protecção de actos preparatórios ou consequentes à prestação do trabalho, mas com ele conexos, e os acidentes ocorridos no caminho para e do local de trabalho – os acidentes in itinere. Designada pelo risco de autoridade ou económico, aparta-se da conexão directa acidente – trabalho para se centrar na noção ampla de autoridade do empregador.  
Esta é a concepção que enformou as leis de acidentes de trabalho subsequentes[7], a saber a Lei n.º 1942, de 27.7.36 e a Lei n.º 2127, de 3.8.65 (quanto à Lei n.º 100/97, de 13.9.97[8], veremos que releva a ideia do risco de trajecto).
Entretanto, a jurisprudência, designadamente em França, interpretou o art.º 1º da Lei (gaulesa) de 9.4.1898 no sentido de, progressivamente, abranger outras situações em que o trabalhador, não estando no local e no tempo de trabalho, se encontrava ainda sob a autoridade patronal, com a necessária manutenção do nexo de subordinação resultante do contrato de trabalho.
Tal era o caso dos trabalhadores enviados em missão e que eram considerados em serviço até a cumprirem integralmente, aceitando-se que nas deslocações necessárias se compreendia o regresso a casa (p. ex. os caixeiros viajantes); dos alojados pelo empregador nos estaleiros onde laboravam, considerando-se que estavam em serviço até entrarem no alojamento atribuído em termos tais que recuperassem a sua plena liberdade.
Mas também se admitiu a responsabilidade do empregador se o acidente ocorria
- nas instalações da empresa,
- num trajecto por ele imposto,
- se para chegar ao local de trabalho o sinistrado tinha de passar por um local perigoso.
- em transporte fornecido pelo empregador (ou até custeado por ele)[9].
 Tudo isto acarretou uma ampliação da noção de acidentes por motivo de trabalho e conduziu à consagração legislativa da modalidade do acidente in itinere.
Entre nós a consagração legislativa ocorreu com a Lei n.º 2127 de 3.8.65, regulamentada pelo Decreto n.º 360/71, de 21.8, cuja Base V, n.º 2, al. b), que dispunha: “considera-se também acidente de trabalho o ocorrido: (b) na ida para o local de trabalho ou no regresso deste, quando for utilizado meio de transporte fornecido pela entidade patronal, ou quando o acidente seja consequência de particular perigo do percurso normal ou de outras circunstâncias que tenham agravado o risco do mesmo percurso”.
Por seu lado, os art.º 10 e 11 do Decreto-Lei n.º 360/71 alargavam a noção aos acidentes ocorridos entre o local de trabalho e a residência habitual ou ocasional e entre qualquer um destes e os locais de pagamento da retribuição e de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente.
Certo é, todavia, que a mesma evolução jurisprudencial prévia à expressa consagração legal se verificou em Portugal[10].
A Lei 2127 veio a ser substituída pela a Lei n.º 100/97, de 13.9.97, regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de abril, e esta pela Lei 98/2009, de 4 de Setembro, aplicável ao caso.
*
Poder-se-á discutir se a reparação dos danos decorrentes de acidentes in itinere é uma mera opção política, havendo até sistemas jurídicos que desconhecem a reparação dos acidentes laborais enquanto tais[11], e as razões materiais que levaram à consagração desta responsabilidade[12].
Alternativa possível seria diluir a reparação dos acidentes laborais nos esquemas de proteção da circulação automóvel. No entanto, a reparação dos acidentes rodoviários supõe em regra a culpa de um terceiro e a ausência de culpa (ou pelo menos um grau de culpa não elevado) do lesado (art.º 483, 487 e 570 do Código Civil), deixando de fora aqueles que são devidos inteiramente a culpa do lesado; e, por outro, casos há em que nem há intervenção de terceiros, estando mesmo fora do âmbito da circulação estradal ou ferroviário[13]. Ou seja, seria uma alternativa muito insuficiente e inadequada para a proteção dos trabalhadores.
No que aos acidentes in itinere toca ainda se pode discutir se tem alguma especificidade ou, no fundo, não é mais do que um acidente de trabalho como qualquer outro, com a única particularidade de se dar no caminho.
A verdade, porém, é que o acidente in itinere se caracteriza precisamente por ter lugar fora do tempo e do lugar de trabalho que carateriza o acidente de trabalho propriamente dito. Estas diferenças levam-nos a concluir, porém, que são diversas as noções de acidente de trabalho (em sentido estrito[14]) e de acidente in itinere. Tendo em comum a conexão trabalho – lesão[15], não partilham os demais elementos “tempo e local de trabalho”[16] [17]. Em suma: os acidentes in itinere são acidentes de trabalho em sentido amplo[18]: têm conexão com o trabalho e a própria lei os designa como tal[19] [20], traduzindo uma extensão da noção de acidente de trabalho (em sentido estrito, isto é, ocorridos no tempo  e no local de trabalho e relacionados com ele), abrangendo também situações que não estariam formalmente [21], compreendidos no conceito indeterminado do art.º 8, n.º 1, da Lei 98/2009, de 4.9[22]. Deste modo, o acidente no percurso ocorre fora do local e do tempo de trabalho, continuando a ser relevante para o direito infortunístico pela sua relação com o trabalho, já que foi a necessidade de se deslocar por motivos laborais que expôs o trabalhador ao risco do sinistro.
*
No caso temos que a trabalhadora se deslocou ao refeitório das instalações da PT onde prestava a atividade de assistente operacional de call center para a R. CC, Lda, no período destinado ao almoço, e torceu o joelho ao subir para o banco da mesa onde ia almoçar.
Entendeu a sentença recorrida que se trata de um verdadeiro e próprio acidente de trabalho, ocorrido no tempo (que vimos ser aceite) e no local (que é controvertido) de trabalho. E é contra a conclusão de que o infortúnio ocorreu no local de trabalho que se ergue a R., esgrimindo que “o refeitório não era local de trabalho…sendo irrelevante que se situe dentro ou fora da PT”, não variando por esse facto o risco de acidente. Em suma: “o acidente não ocorreu no ou durante o trajeto entre o call center e o refeitório, mas sim quando a recorrida já se encontrava no interior do refeitório” (pelo que não é acidente in itinere); nem “sujeita ao controlo da empregadora” (pelo que não é acidente de trabalho, s. sensu).
Já para a recorrida trata-se de um acidente de trabalho porquanto nunca saiu das instalações da empregadora, no mesmo edifício onde exerce a sua atividade.
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Para responder à questão dos autos importa pôr o problema em perspetiva.
Algumas interrogações ajudam-nos nisso.
O infortúnio mereceria a reparação à luz da LAT se:
a) a trabalhadora saísse do edifício para (em local razoável, na ótica do homem médio) almoçar ?
b) a trabalhadora não saísse sequer do seu local de trabalho, limitando a suspender a atividade limitando-se, como sói dizer-se, a comer uma “bucha” ou um “farnel” ?
c) se deslocasse para outro canto da sala onde presta a atividade ?
d) se saísse da sala e comesse junto à mesma mas do lado de fora ?
Não há duvida que o a), ocorrido em transito, seria um típico acidente in itinere (art.º 9/1/a e 2/a, da LAT, a dita Lei 98/2009); e que os demais constituiriam claros acidentes de trabalho (em que, de todo o modo, a A. estaria sob o império do empregador, sujeita a receber ordens [porventura desde logo para mudar de local]).
Em todos estes casos há uma evidente conexão com a atividade profissional[23]: se a A. não laborasse para a empregadora não careceria de fazer certo trajeto para ir almoçar (al. a), ou de comer em certo sítio (al. b, c, d).
Ora, é precisamente essa conexão que existe, manifestamente, no caso: a A. vai almoçar ao refeitório das instalações onde labora, sitio mais que razoável para o fazer (que aliás não podia ser mais próximo), obviamente frequentado por colegas e quiçá superiores (é para isso que servem os refeitórios das empresas), e onde não está a salvo ainda da autoridade do empregador, isto é, onde afinal não recuperou plenamente a sua independência: se é possível, como nos parece irrefragável, a sinistrada deparar com algum superior hierárquico no exterior da sala em que labora, também o é no refeitório sito no mesmo edifício onde trabalha. De resto, é fácil ver que o poder do empregador não se manifesta apenas na prolação imediata de ordens, mas de formas muito mais subtis: por exemplo a classificação interna dos trabalhadores nem sempre ignorará factos porventura ocorridos à hora da refeição num local habitualmente frequentado por trabalhadores.
A conexão evidencia-se também se tivermos em conta que, tratando-se de um refeitório para trabalhadores, é precisamente essa qualidade que permite a sua frequência. É por laborar para a empregadora que a A. aí pode ir.
De aí que o mais alto Tribunal já tenha considerado, em considerações que não obstante a sucessão de leis no tempo se mantêm pertinentes[24], que “o n.º 3 da Base V da Lei n. 2127, dá ao conceito "local de trabalho" uma tal amplitude que permite considerar, não só a zona de laboração, mas também todas as zonas que se relacionem necessariamente com a exploração laboral, como estaleiros e cantina” (Supremo Tribunal de Justiça, 03-07-1987).
O trabalhador que come num refeitório sito nas instalações do empregador (ou da entidade a quem este presta atividade vg em sede de outsourcing) em que labora na realidade nunca sai do controlo do empregador, ao menos indireto.
Podemos evidenciá-lo pondo uma quinta hipótese, aliás não alheia à argumentação da recorrente segundo a qual é indiferente a localização do refeitório: se o refeitório se situasse mesmo em frente à sala onde a trabalhadora laborava bastar-lhe-ia franquear a ombreira da sala do call center para deixar de estar sob qualquer controlo do empregador? É óbvio que não, que naquele local facilmente poderia ser chamada a retomar funções em caso tido por urgente; que a sua conduta à mesa não seria ignorada pela empregadora se por qualquer motivo entendesse que ela se afastava significativamente das regras do trato social; e por aí adiante.
Veja-se bem a diferença entre a situação em que a A. está no refeitório sito nas instalações da empresa, em termos de auto-determinação e de reserva pessoal, e aquela em que estaria se fosse a casa (e em que, aí sim, a proteção in itinere se esgota ao franquear a porta da sua residência): aqui estava efetivamente salvaguardada do controlo patronal, ao contrário do que acontece no refeitório sito no edifício.
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Em suma: o trabalhador que tem um acidente no refeitório afeto ao pessoal sito no edifício em que labora, à hora do almoço, ao sentar-se para comer, sofre-o em local de trabalho, e o mesmo constitui acidente de trabalho (e não acidente in itinere), suscetível de reparação.
Conclui-se deste modo que a sentença decidiu bem e que não merece censura.  
*
*
III.
Pelo exposto o Tribunal julga improcedente o recurso e confirma a decisão recorrida.
Custas pela Ré seguradora.
Lisboa, 19 de Junho de 2013

Sérgio Almeida
Jerónimo Freitas
Francisca Mendes



[1]
Sugestivamente, Elias Gonzalez-Posada Martinez, em “El Accidente de Trabajo: Evolucion Normativa y Tratamiento Jurídico Comparado” (acessível in http//www.der.uva.es/trabajo.acci2.html) afirma que “o risco, a proximidade de um dano, é o trágico companheiro de viagem de todo o trabalhador”. 
[2]
Sobre esta matéria vide Luís Leitão, “Acidentes de Trabalho e Responsabilidade Civil (A Natureza Jurídica da Reparação de Danos Emergentes de Acidentes de Trabalho e a Distinção entre as Responsabilidades Obrigacional e Delitual)”, in ROA, 778.
[3]
Christian Fabry, Les Accidents de Trajet – La Couverture de ce Risque en Droit Francais et en Droit Comparé, Paris, 1970, pag. 10, refere que apenas  ¼ dos acidentes se deviam a culpa do empregador.
[4]
A mera existência do vínculo contratual acarretaria, à luz desta perspectiva, a existência de uma cláusula tácita de segurança. A ser assim, porém, nada impediria que o trabalhador renunciasse a ela, ou que fossem acordadas outras limitações. Cfr. Elias Gonzalez-Posada Martinez, El Accidente de Trabajo: Evolucion Normativa y Tratamiento Jurídico Comparado”..
[5]
Cfr. Noções Elementares de Acidentes de Trabalho e Jurisprudência, CEJ, Jurisdição Laboral, lições ao XVI Curso Normal de Formação de Magistrados.
[6]
Inspirando-se na Lei francesa de 9 de Abril de 1898, cujo art.º 1º adoptou a conhecida definição de acidente de trabalho como “les accidents survenus par le fait du travail ou à lóccasion du travail”. Esta, por sua vez, foi influenciada pela legislação de Bismark, que pela primeira vez consagrou o princípio da responsabilidade pelo risco profissional.
[7]
Sem prejuízo das alterações ao regime inicial da Lei 83, designadamente operadas pelo Decreto n.º 5637 de 10.5.1919, que passou a abranger as doenças profissionais. 
[8]
O Código do Trabalho contém no Livro I, Título II o Capítulo V que regula a matéria dos acidentes de trabalho; e o Capítulo VI  que rege as doenças profissionais. Inspirados ainda na teoria do risco de autoridade, não se encontram em vigor por falta da regulamentação  a que alude o art.º 21, n.º 2, al. g) da Lei 99/03, de 27.8, aprovou o Código do Trabalho. Por este motivo centraremos a nossa análise no regime da Lei n.º 100/97.  
[9]
Sobre o exposto cfr. Christian Fabry, op. cit., 12 e ss. 
[10]
Podem-se mencionar-se várias decisões, por todas Acórdãos do STA  em pleno, de 10.7.58, 20.4.59, 13.4.67, antes de existir lei em vigor sobre os acidentes in itinere, citados por Cruz de Carvalho, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª ed., Petrony, 1983, pag. 33. Por seu lado Feliciano Tomás de Resende, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª ed., Almedina, 1988, pag. 20, afirma, referindo-se aos acidentes in itinere, que “a jurisprudência e a doutrina muito discutiram se seriam ou não abrangidos, e na hipótese afirmativa, em que termos, pela Lei n.º 1942, não obstante a ausência de disposição legal expressa”. Dessa discussão já Veiga Rodrigues, in Acidentes de Trabalho – Anotações à Lei n.º 1942, a folhas 20-21 dava conta, citando também ele diversos acórdãos. Por todos menciona-se o Acórdão de 21.10.47: “se é em obediência ao seu contrato individual de trabalho que o trabalhador se dirige da sua casa para o local de execução do trabalho e se no caminho sofre algum acidente este caracteriza-se de acidente de trabalho, porque é por ele sofrido como trabalhador e quando subordinado à empresa e, portanto, sob a autoridade desta”.
[11]
Será porventura o caso da Holanda, onde não há cobertura específica para estes acidentes, havendo, todavia, mecanismos de segurança que permitem integrar o ressarcimento das incapacidades temporárias e das permanentes resultantes de acidentes de trabalho em esquemas de reparação mais vastos que abrangem qualquer tipo de acidentes, laborais ou não. Sobre isto cfr. “A Protecção nos Acidentes de Trabalho nos Países da União Europeia”, in www.global.pt.
[12]
Se a evolução tecnológica expôs os trabalhadores a riscos acrescidos, quer no local de trabalho quer nas deslocações, as dificuldades da prova e a necessidade de ultrapassar a culpa como fundamento da responsabilidade explicam cabalmente a existência deste instituto jurídico. Fosse esta uma opção puramente arbitrária e poder-se-ia equiparar a um ressarcimento universal dos danos ocorridos no dia em que o cidadão comemora o seu aniversário ou se casa; é, porém, evidente que neste exemplo, como noutros possíveis, não existem motivos que os tornem compreensíveis e necessários, ao contrário do que ocorre em sede laboral.
[13]
É o caso, por. ex., do trabalhador que carece de se deslocar de helicóptero para o local de trabalho (uma plataforma petrolífera – apreciado pelo Tribunal Supremo espanhol, por sentença de 20.04.81, cit. por Cristina Sanchez-Rodas Navarro, “El Accidente in Itinere”, Editorial Comares, 1998, pag. 66); ou o do trabalhador que para o mesmo efeito atravessa frequentemente um rio a nado (julgado por um Tribunal de S.Paulo, Brasil: “não sendo a travessia do rio a nado, para se dirigir à sua casa, uma atitude esporádica do trabalhador, considera-se acidente in itinere o afogamento de que foi vítima - Ap. c/ Rev. 310.710, 7ª Câm., Rel. Juiz Ary Casagrande, j. 31-3-1992 – cfr. www.estacio.br/graduacao).
[14]
Cumpre distinguir entre um sentido amplo de acidentes de trabalho, que engloba os acidentes in itinere e as próprias doenças profissionais, de um sentido estrito, que não abrange estes dois últimos.
[15]
A propósito dos eventos provocados pelo próprio trabalhador, quando o resultado é previsto, e querido por ele, refere Juan Jimenez García que “a conexão trabalho – lesão rompe-se, com excepção das lesões e suicídios em que a vontade deliberada e consciente do trabalhador tenha sido alterada devido a uma doença ou lesão prévia decorrente do próprio trabalho” – La Imprudência Temeraria del Trabajador Accidentado como causa de Exoneración de la Responsabilidad Empresarial, pag.9, apud. Cristina Sanchez-Rodas Navarro, 99.
[16]
A distinção entre acidentes de trabalho em sentido estrito e acidentes in itinere é comum designadamente na doutrina francesa, que em termos expositivos adopta habitualmente uma classificação tripartida.
[17]
Não são estas as únicas diferenças. Com efeito, o nexo de causalidade entre o trabalho e o evento é muito claro nos acidentes de trabalho, enquanto que nos acidentes in itinere há “uma ampliação do conceito etiológico ou causal” na expressão da sentença do Tribunal de Julgado Social n.º 20 de Madrid, citado por Cristina Navarro, op.cit., 47.
[18]
Neste sentido cfr. também António Martin Valverde e Joaquin Garcia Murcia, Tratado Prático de Derecho del Trabajo y Seguridad Social, Aranzadi Ed., 2002, folhas 4636: “o acidente de trabalho é um acidente de trabalho impróprio, que deriva de circunstâncias concorrentes com a actividade laboral, como são as correspondentes à deslocação que deve realizar o trabalhador para cumprir a sua prestação de serviços”. 
Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais – Regime Jurídico Anotado, Almedina, 2ª ed., 48, defende que o acidente in itinere é uma das formas possíveis do acidente de trabalho. 
[19]
Este facto é relevante designadamente para a sua interpretação.
[20]
Em sentido contrario Cristina Navarro, op. cit., 48, para quem, apesar dos pontos em comum, não se pode qualificar um como género e outro como espécie, sendo os acidentes in itinere “uma figura plenamente autónoma, dotada de perfis próprios”
[21]
Dizemos não estariam porque, como é sabido, a noção de acidente in itinere foi segregada pela jurisprudência a partir exactamente da noção de acidente de trabalho, vindo mais tarde a ter consagração formal no texto da lei.
[22]
Neste sentido cfr., na doutrina, Noções Elementares de Acidentes de Trabalho e Jurisprudência, CEJ, já citado, e Silvia Payon Marques, op. cit., pag. 7.  Na jurisprudência veja-se p.ex. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.101999, in Colectânea de Jurisprudência, S-III: “o acidente de trabalho in itinere é uma extensão do acidente de trabalho”.
[23]
Diz destarte o acórdão do STJ, de 26-10-2011 que “é necessário que exista uma ligação ao trabalho”.
E na fundamentação do acórdão de 21.4.99 refere: “O que pode relevar para efeitos de descaracterização do acidente (…) é a quebra da relação laboral, ou seja, a interrupção do estado de ligação e de continuidade com a actividade laboral propriamente dita, interpondo-lhe uma situação ou uma circunstância de todo alheia e estranha à relação laboral concretamente actuada e desenvolvida naquele dia de trabalho”.
[24]
Refere o art.º 8/2/a da LAT que se entende por “local de trabalho todo o lugar em que o trabalhador se encontra o deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, direta ou indiretamente, sujeito ao controlo do empregador”.

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