sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

NULIDADE DO CONTRATO DE TRABALHO – ABUSO DE DIREITO




Proc. Nº 118/09.4TTMAI.P1.S1   STJ       8 de Junho de 2011

1. É nulo o contrato de trabalho, celebrado na vigência do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, por acordo verbal e tempo indeterminado, entre o Estado e uma empregada de limpeza.
2. A invocação, pelo Estado, da nulidade desse contrato, para o fazer cessar imediatamente, não integra a figura do abuso do direito.
3. Cessando, esse contrato nulo, por invocação da nulidade, por parte do empregador/Estado, conhecendo este a invalidade, mas tendo-o mantido em execução, deve considerar-se parte de má-fé.
4. Nesse caso, estando a parte contrária de boa fé, tem direito a uma indemnização de antiguidade, nos termos do disposto no n.º 3 do art. 116.º do Código do Trabalho de 2003.

ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
 
I. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A SOLUCIONAR.
No Tribunal do Trabalho da Maia, AA, residente na …, ... .., ent. …, ...° Dtº., …, Maia, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra o Estado Português - (Ministério da Administração Interna/Polícia de Segurança Pública) - representado pelo Ministério Público, alegando, em síntese, que:
A Autora foi admitida pelo Réu, por ajuste verbal, para exercer a sua actividade profissional de auxiliar de limpeza nas instalações da Área do Comando Metropolitano do Porto, da Polícia de Segurança Pública, em 01/03/1997;
O seu local de trabalho era nas instalações da Esquadra da Maia da PSP, e o Réu, à semelhança dos demais trabalhadores subordinados ao seu serviço, atribuiu-lhe número de matrícula;
Desde a data da admissão, exerceu a sua actividade sempre sob a direcção e autoridade do Réu, recebendo ordens e instruções dos superiores hierárquicos que, de acordo com a estrutura do Comando Metropolitano do Porto, da PSP, tinham por função a fiscalização da actividade da Autora;
Para a execução das tarefas inerentes à sua actividade profissional, usava os instrumentos de trabalho fornecidos pelo Réu e estava sujeita a horário de trabalho determinado pelo mesmo, recebendo a correspondente remuneração de base mensal, acrescida de um subsídio de alimentação;
A qual era, e foi, paga todos os meses do ano civil (12 meses), bem como foram pagos, em cada ano, os correspondentes subsídios de férias e de Natal e sempre gozou de um período anual de férias remuneradas;
Em Janeiro de 2008, a sua remuneração base mensal ascendia a € 344,50 (trezentos e quarenta e quatro euros e cinquenta cêntimos), acrescida de € 4,03 (quatro euros e três cêntimos) diários de subsídio de refeição;
A Autora recebeu uma carta, datada de 10 de Dezembro de 2007, do Comando Metropolitano do Porto, da Polícia de Segurança Pública, e uma notificação pessoal datada de 20 de Dezembro de 2007, na qual lhe foi comunicado que o contrato que mantém com a Instituição é nulo e que, apesar da nulidade do contrato, não há lugar à reposição de quaisquer quantias pagas pelo tempo prestado, já que produz todos os efeitos. Para terminar informa que deixará de prestar serviço na PSP, decorridos que sejam sessenta dias após a recepção da notificação;
Por força da aludida comunicação, cessou a respectiva actividade ao serviço do Réu em 19 de Fevereiro de 2008;
A Autora foi despedida sem justa causa e sem prévio procedimento disciplinar e a alegação da nulidade do contrato traduz manifesto abuso de direito;
E nem sequer é verdade que o Réu estivesse legalmente impedido de contratar a Autora sob o regime do contrato individual de trabalho, que, pelo menos desde finais de 1998, era permitida.
Pediu que fosse:
- declarado que o contrato de trabalho outorgado pelo Réu com a Autora é válido;
- declarado que o despedimento da Autora é ilícito e, por conseguinte, nulo e de nenhum efeito;
- condenado o Réu a reintegrar a Autora no seu posto de trabalho, sem prejuízo da sua categoria profissional e antiguidade, sem prejuízo de esta poder optar, em sua substituição e até à data da sentença, pela indemnização prevista na lei;
- condenado o Réu a pagar à Autora salários e subsídios que se vencerem desde a data do respectivo despedimento até ao trânsito em julgado da sentença que vier a ser proferida, acrescida de juros de mora à taxa legal.
Ou, alternativamente, para o caso de se considerar nulo o contrato de trabalho outorgado pelo Réu com a Autora, que fosse:
- declarado que o Réu actuou de má fé quer na celebração do contrato de trabalho, quer na manutenção da respectiva execução, sabendo da invalidade que veio a invocar para lhe pôr termo;
- declarado ao invés, que a Autora sempre actuou de boa fé, quer no momento da outorga do contrato, quer durante toda a respectiva execução;
- condenado, em consequência, o Réu a pagar à Autora a indemnização prevista no art. 439.º, n.° 1 do Código do Trabalho, “ex vi” do art. 116.º, n.° 3, do mesmo Código.
Realizou-se, sem êxito, a audiência de partes e o Réu Estado, citado para contestar, fê-lo, alegando, em suma, que:
O contrato invocado pela Autora, no qual alicerça o seu pedido está ferido de nulidade, uma vez que não foi reduzido a escrito, de acordo com o disposto no art. 8.º, n.°s 1 e 3, da Lei n.° 23/2004 de 22 de Junho;
Nos termos do Decreto-Lei n.° 427/89, de 7 de Dezembro, a constituição de uma relação jurídica de emprego com a Administração Pública só pode ter lugar mediante a nomeação, contrato administrativo de provimento e contrato a termo;
Não foi isto que aconteceu com a Autora, pelo que o contrato verbal ajustado com a mesma era nulo e continuou inválido;
Mesmo com a entrada em vigor da Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho, o contrato continua a ser nulo.
Conclui que a acção deve ser julgada improcedente por não provada, com a sua absolvição do pedido, uma vez que o Estado Português não actuou de má fé, quer na celebração do contrato, quer na manutenção da respectiva execução.
Prosseguindo os autos os seus trâmites, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, na qual acordaram as partes fixar a matéria de facto provada, como consta da respectiva acta.
Proferiu-se, na sequência, sentença cujo segmento decisório foi o seguinte: julgar totalmente improcedente a presente acção e, em consequência, absolver o Réu Estado Português do pedido formulado pela Autora AA.
Inconformada, a Autora recorreu da sentença, pedindo a sua revogação e a procedência da acção.
Tendo os autos continuado os seus termos, veio a ser proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto, no qual se anuiu, por maioria, na seguinte decisão:
«Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida, que se substitui pelo presente acórdão e como tal:
- Declara-se que o contrato de trabalho celebrado entre a autora e o réu é válido, sendo ilícito o despedimento perpetrado na pessoa desta;
Condena-se o réu:
- A pagar à autora a indemnização por antiguidade, à razão de 30 dias de retribuição base, de € 344,50, por cada ano de antiguidade até ao trânsito em julgado da decisão judicial;
Bem como
- A pagar-lhe as retribuições vencidas desde 2008-02-19, considerando a retribuição auferida 14 vezes por ano, acrescida do subsídio de alimentação correspondente a 11 meses por ano, até trânsito em julgado da decisão do Tribunal.
Tudo a liquidar oportunamente».
Inconformado, agora, o Estado Réu, interpôs o mesmo recurso de Revista para este STJ, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:
1. Inexiste, no caso concreto, abuso de direito;
2. Na verdade, não constitui abuso de direito invocar a nulidade decorrente da inobservância da forma legalmente prescrita [existe impossibilidade de invocação do abuso de direito por inobservância da forma legalmente prescrita];
3. Acresce que a invocação de uma nulidade pela parte que dela aproveita não pode ter-se como abuso de direito, dado que apenas representa a sobreposição de regra processual ao direito substantivo, o que é legitimado pela norma que impõe um determinado procedimento em termos cominatórios;
4. Mas, mesmo que se admita essa possibilidade, ou seja, a de se invocar o abuso do direito em casos de nulidade por inobservância de forma, não se verifica ele no caso em apreço;
5. Com efeito, nestes casos específicos de pedido de declaração de nulidade de um negócio jurídico só excepcionalmente é que se pode admitir a invocação do abuso do direito, desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso do direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo;
6. Ora, da factualidade provada inexiste qualquer facto que aponte para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé;
7. Igualmente da matéria de facto provada não resulta que se tenha verificado qualquer situação objectiva de confiança, isto é, não se provou que a Autora estava convicta da validade do seu contrato de trabalho e, também, não se provou que o réu tenha agido/procedido de modo a criar naquela a convicção de que não iria invocar a nulidade do contrato:
8. Não se apurou, pois, qualquer matéria de facto de onde se possa extrair tais conclusões/ilações;
9. A invocação de nulidade do contrato de trabalho, por parte do empregador, não configura abuso do direito, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 334.° do Código Civil, no circunstancialismo em que se apura que a relação profissional entre as partes, que se manteve durante cerca de sete anos, foi qualificada, posteriormente à sua cessação, como de trabalho por tempo indeterminado, nulo por inadmissibilidade legal;
10. Por outro lado, acto administrativo é o acto jurídico unilateral praticado por um órgão da Administração no exercício do poder administrativo e que visa a produção de efeitos jurídicos sobre uma situação individual num caso concreto;
11. Ora, o "Estado Português" ao celebrar um contrato individual de trabalho não está a praticar qualquer acto administrativo;
12. É que só os actos praticados no exercício de um poder público para o desempenho de uma actividade administrativa de gestão pública é que são actos administrativos;
13. Logo, não são actos administrativos os actos jurídicos praticados pela Administração Pública no desempenho de actividade de gestão privada;
14. É este o caso dos autos - celebrar um contrato individual de trabalho é um acto de gestão privada;
15. Não é, aqui, deste modo, aplicável a figura da usucapião;
16. A interpretação feita no acórdão recorrido do artigo 334°, do CC, é inconstitucional, por violação do artigo 47°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa, pois permite a validação de contratos sem termo, nulos por falta de forma, sem haver qualquer procedimento de recrutamento e selecção de eventuais candidatos à contratação que garanta o acesso em condições de liberdade e de igualdade.
Termos em que concedendo-se a presente revista, revogando-se o acórdão recorrido e, consequentemente, mantendo-se a sentença da 1.ª instância, se fará JUSTIÇA.
A A. contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida e concluindo:
1. Existe, de facto, no caso concreto manifesto abuso do direito
2. Ora, uma das concretizações do abuso do direito, na modalidade do “venire contra factum proprium” ocorre nas situações de inalegabilidade formal quando, como se tem entendido... "num primeiro tempo o agente daria azo a uma nulidade formal, prevalecendo-se do negócio (nulo) assim mantido enquanto lhe conviesse; na melhor (ou pior) altura, invocaria a nulidade, recuperando a sua liberdade. Haveria uma grosseira violação da confiança com a qual o sistema não poderia pactuar." (Conf. António Menezes Cordeiro, in Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa "in Agendo", Almedina, 2006, pag. 54 e in Da Boa Fé no Direito Civil, cit pag. 771 e segs).
3. Vistos os factos provados, afigura-se-nos que o contrato dos autos é facilmente qualificável como de trabalho, por tempo indeterminado, tendo o acordo das partes sido feito por ajuste verbal, verificando-se a subordinação jurídica e económica e toda uma série de factos índice que nos permitem concluir que as partes celebraram um contrato de trabalho, atenta a definição constante do art. 1.° do regime jurídico aprovado pelo Decreto--Lei n.° 49.408 de 1969.11.24, do art. 1.152.° do Código Civil e do art. 10.° do Código de Trabalho de 2003, diploma este vigente na data em que o R. fez cessar o contrato de trabalho.
4. O Réu pagou a retribuição à A. através de transferência bancária, atribuindo número de matrícula à A., procedeu aos descontos legais para a Segurança Social e IRS e dirigiu a actividade da A. e a A. sempre executou o contrato agindo de boa fé.
5. A atitude do R. ao fazer cessar o contrato de trabalho com fundamento (decorridos 11 anos) na inobservância da forma escrita do contrato e da modalidade legal taxada, é desproporcional, pois conduz a resultados que desequilibram de forma injusta a posição de cada uma das partes, descartando-se o R. do vínculo quando foi ele que ocasionou a inobservância da forma e colocando a A. sem trabalho quando ela se limitou a cumprir o que lhe foi ordenado pelo R. e durante 11 (onze) anos. O direito não pode, a nosso ver, consentir com tamanha desproporção de comportamentos e suportar as respectivas consequências.
6. Pelo que, o R. agiu sem direito, antijuridicamente declarando a cessação do contrato sem invocação de justa causa apurada em prévio processo disciplinar o que conduz à ilicitude do despedimento, com as legais consequências.
7. Decorrido o prazo de 11 (onze) anos e revestindo-se o exercício de funções das características já apontadas, portanto, sem oposição de ninguém, ininterruptamente e à vista de toda a gente, os agentes de facto, admitidos mediante acto administrativo nulo ou inexistente, tornavam-se agentes de direito e
8. Embora se possa considerar excepcional a figura desta espécie de usucapião, a verdade é que ela poderá constituir um meio de solucionar situações de facto que, de outro modo, se traduziram em algo de aberrante, como sucedeu in casu.
9. Tendo a A. adquirido por usucapião o direito ao lugar, a mesma foi ilicitamente despedida.
Termos em que, deverá manter-se o acórdão recorrido do Venerando Tribunal da Relação do Porto.
Foram colhidos os legais vistos, pelo que cumpre enunciar as questões que se colocam à apreciação, que são as relativas:
a) à usucapião, enquanto pretenso estribo da validade do contrato.
b) ao abuso de direito, enquanto pretenso fundamento de despedimento ilícito.
C) à inconstitucionalidade do art. 334.º do CC, na interpretação feita pelo acórdão recorrido.
II.   FUNDAMENTOS DE FACTO.
A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos, que o Tribunal da Relação não alterou:
A) A Autora foi admitida pelo Réu, por ajuste verbal, para exercer a sua actividade profissional de auxiliar de limpeza, nas instalações da Área do Comando Metropolitano do Porto, da Polícia de Segurança Pública, em 01/03/1997 (doc. 1).
B) Iniciou a Autora, naquela mesma data, a actividade profissional para que foi admitida.
C) A limpeza e arrumação das instalações, na Esquadra da PSP da Maia, que constituiu, desde a data da respectiva admissão, o seu local de trabalho.
D) À Autora, o Réu atribuiu a categoria profissional de auxiliar de limpeza, tudo como se alcança do recibo de remunerações emitido pelo R. (doc. 2).
E) À Autora, o Réu, à semelhança dos demais trabalhadores subordinados ao seu serviço, atribuiu número de matrícula.
F) À Autora foi atribuído o número de matrícula 900.045, como se alcança do recibo de remunerações emitido pelo R. (doc. 2).
G) Desde a data da admissão, a Autora exerceu a actividade correspondente à referida categoria profissional sempre sob a direcção e autoridade do Réu.
H) Recebendo ordens e instruções dos superiores hierárquicos que, de acordo com a estrutura do Comando Metropolitano do Porto, da PSP, tinham por função a fiscalização da actividade da Autora.
I) Para a execução das tarefas inerentes à actividade profissional da Autora, esta usava os instrumentos de trabalho fornecidos pelo Réu, nomeadamente, vassoura, panos, detergentes e todo o mais material de limpeza necessário.
J) A actividade profissional da Autora era exercida com sujeição a horário de trabalho determinado pelo Réu.
K) A Autora trabalhava nos dias úteis, Sábados e feriados, das 08.00 horas às 13.00 horas, tendo como dia de descanso semanal, o Domingo.
L) Pela actividade profissional desenvolvida pela Autora, o Réu pagava a correspondente remuneração base mensal, acrescida de um subsídio de alimentação.
M) A remuneração base mensal era, e foi, paga todos os meses do ano civil (12 meses), bem como foram pagos, em cada ano, os correspondentes subsídios de férias e de Natal.
N) A Autora sempre gozou, tal como todos os demais trabalhadores subordinados ao serviço do Réu, um período anual de férias remuneradas.
O) Desde a data da respectiva admissão até Fevereiro de 2008 - o Réu fez cessar a actividade profissional que a Autora, desde então, lhe vinha prestando - o Réu procedeu mensalmente aos correspondentes descontos para a Segurança Social (Regime Geral), à taxa aplicável ao trabalho subordinado.
P) A remuneração base e demais abonos mensais eram pagos pelo Réu à Autora através de transferência bancária para a conta que esta detinha na Caixa Geral de Depósitos, cujo NIB se encontra devidamente identificado no recibo de remunerações. (doc. 2).
Q) Em Janeiro de 2008, a remuneração base mensal da Autora ascendia a € 344,50 (trezentos e quarenta e quatro euros e cinquenta cêntimos), acrescido de € 4,03 (quatro euros e três cêntimos) diários de subsídio de refeição.
R) Nesse mês de Janeiro de 2008, a Autora, após os descontos para a Segurança Social, a remuneração líquida foi de € 383,17 (trezentos e oitenta e três euros e dezassete cêntimos).
S) O Réu convocou a Autora para uma reunião no edifício do Comando Metropolitano do Porto, da P.S.P., que se realizou em 20 de Dezembro, conf. cópia do fax que se junta - doc. 3 - e na qual foi entregue uma carta dirigida à A., datada de 10 de Dezembro de 2007 e uma notificação pessoal datada de 20/12/2007, tendo nessa carta o Réu comunicado a cessação do respectivo contrato de trabalho, com efeitos produzidos 60 dias após a recepção da aludida carta.
T) Por força da aludida comunicação, a Autora cessou a respectiva actividade ao serviço do Réu em 19 de Fevereiro de 2008.
U) Cessação que decorreu exclusivamente da iniciativa do Réu pelas razões alegadas na aludida comunicação.
V) O Réu, na referida comunicação dirigida à Autora, declarou o que a seguir se transcreve: "A PSP celebrou contrato não escrito com V. Exa. em (...), para a prestação de serviços de limpeza (...) do Comando Metropolitano do Porto. O contrato que esta instituição mantém com V. Exa. é nulo, nos termos do n.° 1, do art. 14.° e art. 16.° do Decreto-Lei n.° 427/89, de 7 de Dezembro e do art. 10.°, n.° 4 deste diploma, na redacção que lhe foi dada pelo D/L n.° 218/98, de 17/9, decorrendo daqui responsabilidade civil, disciplinar e financeira para os funcionários e agentes que não ponham termo à prestação de serviço na situação de V. Exa..
Apesar da cominação legal de nulidade deste contrato, não há lugar à reposição de quaisquer quantias pagas pelo tempo prestado por V. Exa., já que o contrato produz todos os efeitos.
Nestes termos, no uso de competência delegada e ao abrigo do art. 134.° do CPA, notifico V. Exa. que deixará de prestar serviço na PSP, decorridos que sejam sessenta dias após a recepção da presente notificação".
III. FUNDAMENTOS DE DIREITO.
Antes de entrarmos na análise das questões suscitadas no recurso, e para melhor enquadramento das mesmas, importa apresentar as seguintes considerações:
No acórdão recorrido, como na sentença, conclui-se, antes de mais, que o contrato celebrado entre a Autora e o Estado é nulo, por celebrado através de modalidade não admitida por lei e por inobservância da forma escrita.
No entanto, na Relação, após assim se concluir e de se considerar que a Autora, face ao contexto fáctico, celebrou e executou o contrato, agindo de boa fé, admitiu-se que o Réu Estado actuou de má fé e com abuso de direito, proferindo um despedimento ilícito.
Considerou-se ainda que no caso vertente a Autora adquiriu direito ao lugar através da figura da usucapião.
Ou seja, fazendo uma síntese do entendimento seguido pelo tribunal da Relação, entendimento que não foi unânime por ter voto de vencido, temos que foi o de considerar que o contrato de trabalho celebrado entre as partes é de haver por nulo, por não ter sido celebrado em qualquer das modalidades previstas na lei, nem observar a forma escrita. Mas por se verificar abuso do direito por parte do Estado, ao contratar a autora e a mantê-la ao serviço, com actuação de má fé, por saber que o contrato era nulo, proferiu o Estado Réu um despedimento ilícito, despedimento que sempre seria ilícito por a Autora ter adquirido direito ao lugar através de uma “espécie de usucapião” e não ter sido observado o legal formalismo para a cessação do contrato.
Sendo entendimento já pacífico dentro do processo que o contrato firmado entre as partes foi nulo, importa, essencialmente, verificar se, apesar disso, a Autora adquiriu direito ao lugar pela invocada usucapião e, em todo o caso, se existiu, de facto, abuso do direito por parte do Estado Réu ao contratar a autora e ao colocar termo ao contrato e se tal abuso teve a consequência de um despedimento ilícito e se há obrigação de indemnizar. Coloca-se ainda a questão da invocada inconstitucionalidade.
a) Quanto à invocada usucapião.
Alega o Recorrente que o "Estado Português" ao celebrar um contrato individual de trabalho não está a praticar qualquer acto administrativo porque só os actos praticados no exercício de um poder público para o desempenho de uma actividade administrativa de gestão pública é que são actos administrativos, não sendo actos administrativos os actos jurídicos praticados pela Administração Pública no desempenho de actividade de gestão privada.
É este o caso dos autos - celebrar um contrato individual de trabalho é um acto de gestão privada, não sendo, aqui, deste modo, aplicável a figura da usucapião.
Por seu lado, alega a Recorrida que, decorrido o prazo de 11 (onze) anos e revestindo-se o exercício de funções das características apontadas, portanto, sem oposição de ninguém, ininterruptamente e à vista de toda a gente, os agentes de facto, admitidos mediante acto administrativo nulo ou inexistente, tornavam-se agentes de direito e embora se possa considerar excepcional a figura desta espécie de usucapião, a verdade é que ela poderá constituir um meio de solucionar situações de facto que, de outro modo, se traduziram em algo de aberrante, como sucedeu in casu. Tendo a A. adquirido por usucapião o direito ao lugar, a mesma foi ilicitamente despedida.
Ora, entende-se que não é de seguir o entendimento defendido no Acórdão recorrido, entendimento - que a Recorrida, obviamente, também defende - de esta ter adquirido direito ao lugar por usucapião.
Quando art. 134.°/3, do CPA, diz que o acto administrativo nulo não prejudica a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito, certamente que não se está a reportar à figura jurídica da usucapião, nem a abrir caminho para qualquer figura semelhante, uma “espécie de usucapião”, cujo prazo, deva corresponder ao da usucapião de bens móveis.
Qualquer instituto jurídico carece de expressa consagração na lei, não cabendo ao intérprete congeminar outros institutos à imagem dos existentes. Admitir uma “espécie de usucapião” à semelhança da que a lei consagra é construir mera ficção sem qualquer sustentáculo jurídico.
Procurar defender-se que o exercício de determinada função ao serviço do Estado durante longos anos, de forma pública, pacífica, sem oposição de ninguém e aos olhos de toda a gente, apesar de o contrato ser nulo perante a lei, se traduz numa situação laboral de facto, tão consolidada que não podia deixar de criar no trabalhador a confiança de que o vínculo continuaria a perdurar ao longo do tempo e que era válido, não parece que seja de entendimento pacífico.
Por outro lado, não parece ter suporte na lei defender-se que a autora embora admitida irregularmente em termos formais, acabou por desempenhar funções durante mais de 10 anos, como se regular fosse o vínculo, devendo o mesmo, como tal, desde o início ser considerado com o correspondente direito ao lugar por parte da autora, através da figura da usucapião.
Mas aplicar a figura da usucapião porquê?
Só se for por aplicação analógica da lei, como parece estar subjacente na pronúncia da decisão recorrida, quando se apela ao prazo de usucapião dos bens móveis.
Mas não se vislumbra que a lei contenha lacuna para se lançar mão da aplicação analógica. E se lacuna existisse, sempre estaria vedado o recurso à figura da usucapião consagrada em sede de direitos reais, por se tratar de regulamentação através de normas excepcionais [art. 11.º do CC] e por as razões justificativas de regulamentação não serem as mesmas [art. 10.º/2 do CC], sendo que, em todo o caso, sempre seria de concluir pela inoperância da usucapião no âmbito de um contrato de trabalho.
A lei regula os termos em que o Estado celebra contratos de trabalho com particulares, prevendo as modalidades e formalidades respectivas, não se vendo que careça de regular as situações em que os contratos sejam elaborados em desconformidade, pois que subjacente à inobservância está a estatuição da lei geral, não se exigindo qualquer prevenção em particular.
Por isso, não existe qualquer fundamento para invocar lacuna da lei.
Por outro lado, as normas relativas à figura da usucapião aplicável em sede de direitos reais são normas de carácter excepcional, previstas apenas para os direitos reais de gozo (até com excepção de alguns deles), insusceptíveis de aplicação analógica. Além de que as razões justificativas da regulação não assentariam em idêntico pressuposto de uma posse de natureza corpórea nem em idêntico interesse tutelado.
Do que se conclui que o contrato dos autos, que é de considerar como nulo, não se convolou em contrato válido através de usucapião.
b) Quanto ao abuso do direito:
Nos termos do art. 334º CC "é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito".
Perante o preceituado neste artigo, o exercício do direito não deve exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, por a todos se impor uma conduta de acordo com os padrões da diligência, da honestidade e da lealdade exigíveis no comércio jurídico.
Assim, os sujeitos de determinada relação jurídica devem actuar como pessoas de bem, com correcção e probidade, de modo a contribuir, de acordo com o critério normativo do comportamento, para a realização dos interesses legítimos que se pretendam atingir com a mesma relação jurídica.
Os limites impostos pela boa fé são excedidos, designadamente, quando alguém pretenda fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior, quando tal conduta objectivamente interpretada, de harmonia com a lei, justificava a convicção de que se não faria valer o mesmo direito.
O mesmo se diga dos limites impostos pelos bons costumes, ou seja, pelo conjunto de regras éticas de que costumam usar as pessoas sérias, honestas e de boa conduta na sociedade onde se inserem.
Por outro lado, os direitos devem ser exercidos de acordo com o fim social e económico para que a lei os concebeu. Se forem exercidos para fins diferentes daqueles para que a lei os consagrou, ainda que tal exercício seja útil ao seu autor, poderá haver abuso do direito, se tal exercício ofender claramente a consciência social dominante.
Para Manuel de Andrade “há abuso do direito quando o direito, legítimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a de o titular do direito ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual” [Teoria Geral das Obrigações, 3.ª ed., pg. 63-64].
De outro ponto de vista, o acto abusivo é, em regra, no pensamento de Vaz Serra, o acto de exercício de um direito que, intencionalmente, causa danos a outrem, por forma contrária à consciência jurídica dominante na colectividade social. Só excepcionalmente se prescindindo da intenção de prejudicar terceiros quando a contraditoriedade àquela consciência, isto é, à boa fé e aos bons costumes, for clamorosa ou quando o direito for exercido para fim diverso daquele para que a lei o concede [“Abuso do Direito", in BMJ nº 85, pág. 253, também citado por F. A. Cunha de Sá in Abuso do Direito, pg. 127].
Noutra perspectiva, para A. Varela, "para que haja lugar ao abuso do direito é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito” [Das Obrigações em Geral, vol. I, 6ª ed., pág. 516].
Daí que o exercício de um direito só poderá haver-se por abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou seja, quando esse direito seja exercido em termos gritantemente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante [Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, pág. 299].
Na sequência do ensinamento dos ilustres mestres, poder-se-á dizer, em síntese:
Existirá abuso do direito quando alguém, detentor aparentemente de um determinado direito válido, o exercita, todavia, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, apodicticamente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado.
Ora, em face destes princípios será de perguntar se o comportamento do Estado Réu, ao celebrar por mero ajuste verbal o contrato, ao mantê-lo por cerca de 11 anos e ao fazê-lo cessar, com fundamento em nulidade baseada na inobservância da forma escrita do contrato e da modalidade legal taxada, terá actuado com abuso de direito.
A resposta num ou noutro sentido, não será certamente isenta de dúvidas e de merecer o respeito de um juízo sustentável.
            Porém, em caso idêntico já julgado neste Supremo Tribunal, em 01.06.2011 [Proc. n.º 156/09.7TTVNG.P1.S1] sufragou-se como melhor entendimento o de não considerar a actuação do Estado Réu como uma actuação com abuso de direito.
            E não se vê motivo para não seguir esta orientação.
   
Na verdade, a lei faculta invocar a todo o tempo a nulidade por parte de qualquer interessado [art. 286.º do CC] e no caso não se descortina que o Estado Réu, ao invocar a nulidade do contrato, tenha agido com intenção de causar prejuízo à Autora, antes sendo de afastar tal desiderato e, por outro lado, dada a natureza do empregador em causa, aproveita-lhe a utilidade do exercício do direito, no objectivo da resolução de uma situação que, porventura, dificilmente pudesse ser sustentada ou resolvida em termos diferentes.
Por isso, o comportamento do Estado Réu não está naquele patamar em que se excede manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou em que o exercício do direito tenha sido em termos gritantemente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante.
Considera-se, pois, inexistir abuso do direito no presente caso.
Deste modo, não existindo abuso do direito por parte do Estado Réu, não é sustentável o entendimento de o mesmo dever manter a relação de trabalho com a Autora, nem o de ter proferido um despedimento ilícito, ao invocar a nulidade do contrato.
Nem ainda o entendimento de o Estado Réu ter obrigação de indemnizar, fundada em abuso do direito.
Por isso, relativamente ao pedido da Autora de que seja declarado que o contrato de trabalho outorgado pelo Réu com a mesma Autora é válido e o despedimento ilícito e de que o Réu seja condenado a reintegrá-la no seu posto de trabalho e a pagar-lhe os salários e os subsídios que se vencerem desde a data do respectivo despedimento até ao trânsito em julgado da sentença, a acção não pode deixar de improceder.
Ou seja, a Autora não tem direito a qualquer indemnização ou compensação, a que aludem os artigos 435.º a 436.º do Código do Trabalho de 2003, previstas para o efeitos da ilicitude do despedimento, porque não houve despedimento.
Mas a Autora formulou um pedido subsidiário, para o caso de se considerar nulo o contrato de trabalho outorgado pelo Réu com a mesma Autora, isto é, de que seja declarado que o Réu actuou de má fé, quer na celebração do contrato de trabalho, quer na manutenção da respectiva execução, sabendo da invalidade que veio a invocar para lhe pôr termo, condenando-se, em consequência, o Réu a pagar à Autora a indemnização prevista no art. 439.º, n.° 1 do Código do Trabalho, «ex vi» do art. 116.º, n.° 3, do mesmo Código.
Ora, a má fé do Estado Réu decorre, efectivamente, do facto de o mesmo não poder ignorar a invalidade do contrato, enquanto que, em relação à Autora, se presume a sua boa fé, por não lhe ser exigível conduta diferente da de cumprir os deveres impostos pela relação de trabalho que assumiu.
Porque o contrato celebrado entre as partes foi, efectivamente, nulo e porque à situação se consideram aplicáveis os preceitos citados, por força dos artigos 2.º/1 e 26.º/1 da Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho, há que reconhecer direito à Autora à indemnização de antiguidade prevista no art. 439.º, n.° 1 do Código do Trabalho, considerando-se adequado fixá-la em 30 dias de retribuição (que era de € 344,50 mensais), por cada ano completo ou fracção de antiguidade, a contar de 01.03.1997 até à presente data, a qual perfaz o montante de € 5.167,50 [344,50x15].
C) Quanto à alegada inconstitucionalidade do art. 334.º do CC, na interpretação feita pelo acórdão recorrido.
Alega o Recorrente que a interpretação feita no acórdão recorrido do artigo 334°, do CC, é inconstitucional, por violação do artigo 47.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa, pois permite a validação de contratos sem termo, nulos por falta de forma, sem haver qualquer procedimento de recrutamento e selecção de eventuais candidatos à contratação que garanta o acesso em condições de liberdade e de igualdade.
Ora, esta questão resulta prejudicada em face da solução dada ao recurso, não interessando já saber se a decisão recorrida fez interpretação do artigo 334.º do CC susceptível de incorrer em inconstitucionalidade, pois que se extraem deste normativo, aplicado ao caso dos autos, consequências diferentes das tiradas pela Relação.
Não há, pois, que apreciar esta questão.
Procedem, em parte, as conclusões do recurso, havendo que alterar em consonância o acórdão recorrido.
IV.  DECISÃO:
Em conformidade com os fundamentos expostos, concede-se parcialmente a Revista e altera-se a decisão recorrida, condenando-se o Estado Réu apenas na indemnização de antiguidade acima descrita.
Custas pela Autora e pelo Estado réu em conformidade com o respectivo decaimento.
[Anexa-se o sumário elaborado nos termos do artigo 713, n.º 6, do CPC]
Lisboa, 8 de Junho de 2011. 
                             
Pereira Rodrigues (Relator)
Pinto Hespanhol
Fernandes da Silva

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