quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Acórdão do Tribunal Constitucional. Liberdade religiosa.


                                            TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
                                                     
Acórdão n.º 544/2014
Processo n.º 53/12
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I — Relatório
1 — Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente Natália da Silva Alves e Silva e recorrida CODAN Portugal — Instrumentos Médicos S. A. , a primeira vem interpor recurso ao abrigo da alínea b) do n.° 1 do artigo 70.° da Lei n.° 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 15/12/2011 (cf. fls. 417 a 440-verso), que negou provimento à apelação, confirmando a sentença do Tribunal do Trabalho de Loures (2.° Juízo), de 19/06/2011, que julgou improcedente a impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento deduzida pela ora recorrente contra a ora recorrida (cf. fls. 245 a 287).
2 — Tendo o recurso de constitucionalidade sido admitido por despacho do Tribunal recorrido de 16/01/2012 (cf. fls. 453) e prosse­guido neste Tribunal (cf. fls. 457), a recorrente apresentou alegações (cf. fls. 459-507).
3 — A recorrida, notificada para o efeito (cf. fls. 508), apresentou contra-alegações (fls. 533 a 557).
4 — Dos documentos juntos aos autos, tem-se por assente, com re­levância para a decisão, o seguinte:
4.1 — Em sentença proferida pelo Tribunal do Trabalho de Loures, no âmbito do processo n.° 449/10.OTTLRS.L1, foi julgada improcedente a impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento de­duzida pela ora recorrente e, assim, lícito o despedimento promovido pela ora Recorrida.
Nessa sentença (fls. 245-287) é feita aplicação do disposto no ar­tigo 14.°, n.° 1, da Lei da Liberdade Religiosa, tendo o Juiz concluído pela não verificação in casu dos requisitos expressos nas alíneas que o compõem, termos em que baseou a decisão desfavorável à ora Recor­rente. Como se pode ler no citado aresto:
«[...] o que está aqui em causa passa exclusivamente por saber se ao abrigo do disposto no artigo 14.° da Lei n.° 16/2001, de 22 de junho, mas atendendo essencialmente ao disposto nas alíneas a) e c), assistia à A. o direito a recusar a prestação da sua atividade a partir do pôr do sol de sexta-feira até ao pôr do sol de sábado, em virtude de a religião que professa observar esse período como dia de descanso, o que se traduziu no não cumprimento do horário integral às sextas-feiras, quando o seu turno terminava às 24h00, ou em não prestar trabalho suplementar ao sábado, quando solicitado pela Requerida.
[...]
A primeira ideia que se pode retirar relativamente a ambos, é que têm em comum o propósito de limitar o prejuízo resultante do exercí­cio daquele direito pelo trabalhador para a atividade e utilização dos recursos humanos pela entidade empregadora. Procura-se salvaguardar o direito do trabalhador, mas sem que tal imponha prejuízo injustifi­cado e desproporcionado para a entidade empregadora.
Como se menciona na motivação do projeto que deu origem à lei, procura-se compatibilizar os direitos esses direitos, em caso de conflito.»
4.2 — Inconformada, a ora Recorrente interpôs recurso da decisão judicial que lhe foi desfavorável para o Tribunal da Relação de Lisboa, que veio a confirmar a sentença recorrida, negando provimento à apela­ção. Acordaram os juízes, em 15/11/2011, como sintetizado no sumário elaborado pelo relator (INão é inconstitucional o artigo 14. ° da Lei da Liberdade Religiosa — LLR (Lei n.° 16/2001, de 22/6); II — Não se pode considerar o trabalho em regime de dois turnos rotativos como integrando o conceito, contido na alínea a) do n.° 1 do artigo 14.° da LLR, de trabalho em regime de flexibilidade de horário; III — Constitui justa causa de despedimento o comportamento da trabalhadora, que professando um confissão religiosa cujos membros observam o sábado como dia de guarda e não integrando a sua situação a previsão, cumu­lativa, das als. a) e c) do n.° 1 do referido artigo 14.°, persiste em se recusar a trabalhar a partir do pôr do sol de sexta-feira, quando o seu turno terminava muito tempo depois desse momento, causando, assim,prejuízos consideráveis à sua entidade empregadora, e a prestar

trabalho suplementar ao sábado, sendo que, pelos mesmos motivos,já havia sido objeto de 4 sanções disciplinares), o seguinte (fls. 428-verso a 440):
«a alegada inconstitucionalidade do artigo 14. ° da Lei n.° 16/2001, de 22/6:
Entende a Autora — apelante que tal disposição legal é inconsti­tucional, por violação dos princípios constitucionais da proporcio­nalidade e da igualdade.
Estamos, como é natural, perante uma questão essencial para a apreciação da justa causa de despedimento, já que foi precisamente com base na não verificação dos pressupostos estabelecidos na mesma disposição legal que a Ré considerou as ausências ao serviço da Au­tora a partir do pôr do sol de sexta-feira como faltas injustificadas e como desobediência a ordens expressas a não prestação de trabalho ao sábado.
A Ré entendeu que não se verificavam os requisitos cumulativos previstos nesse citado artigo 14.° da Lei n.° 16/2011 (que passaremos a designar por LLR), já que a Autora não tinha flexibilidade de ho­rário nem era possível a compensação integral do respetivo período de ausência, pelo que não poderia haver dispensa de prestação de trabalho.
Ao que a Autora contrapôs, logo na contestação ao articulado de motivação, a inconstitucionalidade dessa norma legal, posição que continua a sustentar no presente recurso.
Vejamos:
O direito à liberdade religiosa está expressamente consagrado no artigo 41.° da Constituição:
“1 — Á liberdade de consciência, de religião e de culto é invio­lável
2 — Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa
3 — Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder
[...]”.
Como muito bem se refere na sentença recorrida, sendo um preceito constitucional relativo a um direito fundamental, a sua interpretação e integração deve ser feita de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (n.° 2 do artigo 16.° da CRP).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 18 de dezembro de 1948, trata a questão relativa à liberdade religiosa no seu artigo 1 8.°, nos termos seguintes:
Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciên­cia e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos”.
A declaração da ONU de 25/11/1981, citada por Júlio Gomes, in Direito do Trabalho, vol. I, Relações Individuais de Trabalho, pag. 295, sobre a eliminação de todas as formas de discriminação e intolerância fundadas na religião e nas crenças, refere, no seu artigo 6.°, a liberdade de observar os dias de repouso e de celebrar as festas e cerimónias segundo os preceitos da própria religião ou culto.
E não esquecendo, porque também aqui deverá ser o mesmo cha­mado à liça, o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.° da CRP, segundo o qual “1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”.
Assim, a todo o cidadão deverá ser reconhecida a faculdade de ter ou não ter religião, professar esta ou aquela, mudar de crença, praticá-la só ou acompanhado de outras pessoas, agrupar-se com outros crentes formando confissões ou associações de caráter religioso, etc. Nessa sua faculdade deverá estar ausente todo o tipo de coação, injustificada, exercida por qualquer pessoa ou autoridade pública.
E se o culto pode ser meramente interno, quando se confina ao pensamento e à vontade de cada individuo — e que tornará mais difícil, para não dizer impossível, a sua restrição de ordem externa, precisamente por dizer respeito ao for intimo do ser humano —, o que nos interessa para aqui será o culto externo, aquele que se manifesta externamente pelas formas mais variadas. Culto esse que poderá ser particular ou privado, quando celebrado pelos indivíduos, sós ou acompanhados, em nome próprio, ou público ou oficial, quando realizado em nome da comunidade e por ela, geralmente com a in­tervenção de ministro autorizado.
Por esse artigo 41.° da CRP dizer respeito aos direitos, liberdades e garantias, ele é diretamente aplicável, vinculando as entidades públicas e privadas (n.° 1 do artigo 1 8.° da CRP), só podendo a sua restrição ser feita através de lei, limitada ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, não podendo diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial daquele preceito (n.os 2 e 3 do mesmo artigo 18.°).
Pese embora a consagração, logo em 1976, na nossa Constituição, só com a designada Lei da Liberdade Religiosa — Lei n.° 16/200 1 de 22 de junho — é que o legislador veio concretizar, em termos de lei ordinária, estes princípios de opção religiosa, bem como os critérios de organização e funcionamento.
Entre esses princípios encontra-se, como não poderia deixar de ser, o da liberdade de religião e de culto, o qual compreende, além do mais, o direito de adesão à igreja ou comunidade religiosa que se escolher e o direito de participar na vida interna e nos ritos religiosos.
Daí o artigo 10.° da LLR dispor o seguinte:
“Á liberdade de religião e de culto compreende o direito de, de acordo com os respetivos ministros do culto e segundo as normas da igreja ou comunidade religiosa escolhida:
a)   Aderir à igreja ou comunidade religiosa que escolher, participar na vida interna e nos ritos religiosos praticados em comum e receber a assistência religiosa que pedir;
b)   Celebrar casamento e ser sepultado com os ritos da própria religião;
c) Comemorar publicamente as festividades religiosas da própria religião”.
Mas ainda que a Constituição o não refira expressamente, parece­-nos manifesto e indiscutível, tal como se decidiu no Ac. da Relação do Porto de 19/2/2008, in www.dgsi.pt. que a liberdade religiosa e de culto terá necessariamente de ter limites impostos pela ordem jurídica e constitucional vigentes numa comunidade civilizacional e pelos va­lores fundamentais nela consagrados e defendidos, como sejam — na comunidade em que nos inserimos — a liberdade, os direitos alheios, a ordem pública e a realização da justiça. Valores e objetivos estes que não podem ser violados ou impedidos por motivos de cariz religioso. Na verdade, os fundamentos ético-jurídicos de cariz humanista e racio­nal em que a nossa comunidade de cidadãos se alicerça não podem ser postergados por princípios e práticas religioso/as, como sejam, vg., a admissão de certas mutilações físicas ou da poligamia — cf. António Leite, Á Religião no Direito Constitucional Português in Estudos so­bre a Constituição, 1978, 2.°, p. 265 e segs. Nesta vertente ao Estado já assiste o poder/dever de, através da função jurisdicional, garantir proteção jurídica a todo aquele que vir os seus direitos ou interesses juridicamente relevantes questionados ou violados por opções, atitudes ou cultos religiosos iníquos e intoleráveis, de forma a preveni-los ou repará-los, constituindo este um direito fundamental com assento constitucional — artigo 20.°, n.° 1, da CRP.
Ou seja, não estamos, contrariamente ao que acontece com o direito à vida, perante um direito absoluto, podendo e devendo, se for o caso e dentro dos limites constitucionais, ser objeto de restrições.
É o que decorre não só do n.° 2 do artigo 1 8.° da CRP, mas também do artigo 6.° da LLR, onde expressamente se salvaguardou que a liberdade de religião e de culto “[...] admite as restrições necessárias para salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente prote­gidos” — n.° 1 desse artigo 6.°
No particular campo das relações laborais, e com vista a encontrar o necessário equilíbrio e proporcionalidade entre esse direito de liber­dade religiosa e outros com consagração constitucional, veio reger o artigo 14.° da LRR, nos seguintes termos e que para aqui relevam:
1Os funcionários e agentes do estado e demais entidades públicas, bem como os trabalhadores em regime de contrato de tra­balho, têm o direito de, a seu pedido, suspender o trabalho no dia de descanso semanal, nos dias de festividade e nos períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam, nas seguintes condições:
a)   Trabalharem em regime de flexibilidade de horário;
b)   Serem membros de igreja ou comunidade religiosa inscrita que enviou no ano anterior ao membro do Governo competente emrazão da matéria a indicação dos referidos dias e períodos horários no ano em curso;
c) Haver compensação integral do respetivo período de traba­lho”
[...].
Por forma a justificar a inclusão desta norma, escreveu-se, a pro­pósito desta disposição, no Projeto de Lei n.° 27/VII (disponível em http://app.parlamento.pt), que veio a dar lugar à LRR, o seguinte:
“O direito de suspender o trabalho no dia de descanso semanal, nos dias das festividades e nos períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam [...] deve compatibilizar-se com os direitos da entidade empregadora e com o princípio da igual­dade. Seguiu-se o modelo de alguns acordos italianos [artigo 17. ° da Lei n. o 516, de 22 de novembro de 1988 (adventistas), artigo 4. ° da Lei n.° 102, de março de 1989 (comunidades hebraicas)], aplicável em regime de flexibilidade de horário. É certo que o Estado francês concede aos seus funcionários e agentes autorização de ausência por ocasião das festas próprias das confissões ou comunidades arménia, israelita ou muçulmana a que pertençam, em três dias por ano em cada caso (circular de 9 de janeiro de 1991). Mas esta solução não resolve os problemas de igualdade referidos”.
Ou seja, foi nítido propósito do legislador encontrar aquele neces­sário equilíbrio entre o direito de liberdade religiosa e os legítimos direitos da entidade empregadora, não esquecendo, como não poderia deixar de ser, o princípio constitucional da igualdade.
Citando aqui a sentença (refira-se, por ser de elementar justiça, que a mesma se encontra doutamente elaborada) “como decorre desta exposição de motivos, ao procurar salvaguardar e assegurar o direito de liberdade de consciência, de religião e de culto, a que se refere o artigo 1.°, articulando-o com o princípio da igualdade, este consagrado no art. 2, o legislador procurou nesta matéria alcançar uma solução equilibrada, no sentido de conseguir compatibilizar os direitos potencialmente em conflito, ou seja, de um lado, os do trabalhador que professa determinada religião e pretende observar o “descanso semanal”, os “dias das festividades” e os “períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam”; e, de outro lado, os da entidade empregadora, desde logo, ao livre exercício da iniciativa económica privada “nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral” [n.° 1 do artigo 61.° CRP], bem como de “Liberdade de [...] organização empresarial” [artigo 80.° al. d), da CRP], a que acrescem, como expressão daqueles, os poderes que a lei ordinária lhe confere, nessa qualidade de empregador, de “estabelecer os termos em que o trabalho deve ser prestado, dentro dos limites decorrentes do contrato e das normas que o regem” [ar­tigo 97.° do CT], e, para além de outros, os de “determinar o horário de trabalho do trabalhador, dentro dos limites da lei” [n.° 1 do ar­tigo 212.° do CT]”.
Como corolário do seu poder de direção, ínsito à celebração do contrato de trabalho, cabe à entidade empregadora, dentro dos limites legais e da regulamentação coletiva em vigor, estabelecer o horário de trabalho, como um dos instrumentos ao seu alcance com vista a uma correta organização técnico-produtiva. Objetivo este que só numa análise muito simplista pode ser encarado como sendo do interesse exclusivo da entidade empregadora: é que uma correta gestão terá como uma das facetas decisivas a manutenção do emprego dos seus trabalhadores e a otimização das suas condições de trabalho.
O próprio estabelecimento de um horário de trabalho acarreta ine­gáveis vantagens do ponto de vista do trabalhador: para além de tal determinação ser uma exigência da proteção da vida e da integridade física e psíquica do trabalhador, definindo os espaços de repouso e lazer necessários à salvaguarda da sua integração familiar e social, permite-lhe, conhecendo-o antecipadamente, orientar a sua própria vida pessoal e familiar de harmonia com o mesmo.
E chegados aqui a resposta à questão que nos ocupa terá de ser necessariamente negativa: não se verifica a inconstitucionalidade invocada- o direito à liberdade religiosa não é um direito absoluto, estando sujeito, com já vimos, “às restrições necessárias para salva­guardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (n.° 1 do artigo 6.° da CRP).
E um dos interesses constitucionalmente protegidos é a “liberdade de [...] organização empresarial”(artigo 80.°, al. d), da CRP], inte­resse esse que não se limita, como aflorámos, ao ponto de vista do empregador- o sucesso da empresa acarretará, em condições normais, a manutenção dos contratos de trabalho dos seus trabalhadores e das condições de laboração destes e contribuirá, certamente, para o desenvolvimento da economia de um país. Por isso se entende que na base desta consagração constitucional não esteve, exclusi­vamente, a preocupação da salvaguarda dos interesses económicos do empregador.
E não se deve perder de vista que o princípio constitucional da igualdade acarreta que se trate de forma igual o que é igual e de forma desigual aquilo que se apresenta como desigual: e que, por articula­ção com o artigo 41.° da CRP, se ninguém poder ser prejudicado em função exclusivamente da sua religião ou credo, também não poderá ser beneficiado por mor das mesmas convicções, nomeadamente em confronto com outros trabalhadores de outras religiões ou sem religião alguma.
É certo que nem sempre será fácil encontrar um ponto de equilíbrio entre o direito à liberdade religiosa e os interesses tutelados da entidade empregadora. Mas certamente que o critério não poderá residir, única e exclusivamente, na circunstância de o primeiro ser um direito de caráter pessoal, como defende a apelante.
E é nosso modesto entendimento o que o referido artigo 14.° da LLR não estabelece uma desproporção entre os interesses em po­tencial conflito.
Como refere Paula Meira Lourenço, in Os Deveres de Informação no Contrato de Trabalho, REDS 2003, Ano XLIV, n.os 1 e 2, pags. 29 e ss (citada, e relacionando esse ensinamento com o artigo 14.° da LLR, por Júlio Gomes, ob. cit., pago 299, nota 803) “a atuação dos dois direitos fundamentais no direito privado não pode legitimar situações de incumprimento de obrigações, necessitando de se com-paginar com a autonomia privada”.
Tal disposição veio criar digamos uma solução de compromis­so — que se não nos afigura desequilibrada — entre o direito do trabalhador em obedecer às suas convicções religiosas e em praticar o respetivo culto e o interesse empresarial do empregador, estabele­cendo as 3 condições cumulativas para que se verifique a suspensão do contrato de trabalho.
E nem sequer alinhamos por algum “radicalismo” revelado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, quando, por decisão de 3/12/1996 (também citada por Júlio Gomes, ob. cit., pago 309), consi­derando que o despedimento não se devia às convicções religiosas do trabalhador, mas sim à inobservância dos horários, e que o trabalhador teria de cumprir as regras respeitantes aos horários e não tinha sido impedido de manifestar a sua religião, entendeu que o trabalhador, se considerasse incompatíveis as condições de trabalho com a sua religião, teria sempre a liberdade de se demitir, liberdade essa que era “a garantia fundamental do seu direito à liberdade de religião”.
Salvo o devido respeito por tal decisão, essa “liberdade de demis­são” está fortemente condicionada nos tempos que correm, atentos a crise económico-financeira de caráter mundial e o desemprego daí decorrente.
Mas se é certo que, como refere Júlio Gomes, ob. cit, pago 300, “a liberdade religiosa tem custos e que um crente tem consciência de que uma fé digna desse nome comporta sacrifícios”, também o é que haverá casos em que, dentro do respeito de boa-fé que deve nortear os contratos, incluindo, naturalmente, o contrato de trabalho, será possível harmonizar os interesses em conflito, designada, mas não exclusivamente, através de um acordo entre o trabalhador e o empregador, no sentido do estabelecer de um regime de trabalho a tempo parcial, que exclua o período destinado ao culto.
E no que toca à alínea b) do n.° 1 do artigo 14.° da LLR, cuja in­constitucionalidade específica residirá, segundo a apelante, em não ser clara quanto ao membro do governo competente para se enviar a declaração em causa e por ser excessiva ao exigir o envio de uma nova declaração que já foi enviada para o registo das pessoas coleti­vas religiosas, remetemos para o decidido no Ac. de 08/02/2007 do Tribunal Central Administrativo Norte (citado pela sentença recorrida e disponível em www.dgsi.pt). onde se afirma que o requisito formal contido em tal alínea introduz «[...] um fator de objetividade e de segurança fáctico-jurídica” [...] evitando que uma parte importante do direito à liberdade religiosa (direito ao culto e à comemoração pública das festividades religiosas da própria religião), uma matéria e área tão sensível, ficasse na disponibilidade e à mercê da inter­pretação e entendimento subjetivo ou mesmo arbitrário da entidade empregadora ou da entidade diretiva do estabelecimento escolar, visando-se o evitar o apelo aos factos de “conhecimento público” e, assim, introduzir mais rigor e objetividade nesta sede. [...] Esta limitação ou restrição ao direito ter-se-ia, assim, como adequada, necessária e proporcional face aos outros interesses conflituantes em termos, desde logo, do reconhecimento e do respeito dos direitos e liberdades dos outros no confronto com aqueles, e, bem assim, do satisfazer de justas exigências e interesses em matéria de segurança e de disciplina pública em termos da relação de emprego, seja ele público ou privado, e do funcionamento do sistema escolar numa sociedade democrática».
E quanto ao “membro do Governo competente em razão da matéria” não será difícil descortinar, face à composição em cada momento do mesmo Governo, qual será — à data o Ministro do Trabalho eda Solidariedade Social (comunicação essa que até foi dada como provada na providência cautelar, conforme fls. 71).
Por fim, refira-se que, em face do que se dispõe no n.° 2 do ar­tigo 1 8.° da CRP e a tudo o que se acabou de explanar, carece de razão a apelante quando afirma, na conclusão 25.ª do recurso, que a LLR não é uma lei restritiva de previsão constitucional.
Assim improcedendo as conclusões do recurso, nesta parte.
  a existência de infração disciplinar e a justa causa:
Atenta a data de ocorrência dos factos, encontra aqui aplicação o Código do Trabalho (CT) aprovado pela Lei n.° 7/2009, de 12/2.
A justa causa de despedimento está definida no artigo 351.°, n.° 1, do CT como o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
É necessário que haja um comportamento culposo do trabalhador; a justa causa tem a natureza de uma infração disciplinar, supondo uma ação ou omissão imputável ao trabalhador a título de culpa, violadora dos deveres a que o trabalhador, como tal, está sujeito, isto é, dos deveres emergentes do vínculo contratual.
Enuncia o legislador, no n.° 2 do mesmo preceito e a título mera­mente exemplificativo (nomeadamente), diversos comportamentos suscetíveis de constituírem justa causa do despedimento de um tra­balhador pela sua entidade patronal.
Não basta, porém, a demonstração de qualquer dos referidos com­portamentos, para que se possa ter por verificada a justa causa para despedimento. Com efeito e conforme decorre daquele conceito, a justa causa de despedimento exige a verificação cumulativa de três requisitos ou pressupostos:
  a existência de um comportamento culposo do trabalhador (re­quisito subjetivo);
  a verificação da impossibilidade de manutenção da relação laboral entre o trabalhador e o empregador (requisito objetivo);
  a existência de um nexo de causalidade entre aquele comporta­mento e esta impossibilidade.
A justa causa de despedimento, pressupõe, portanto, a existência de uma determinada ação ou omissão imputável ao trabalhador a título de culpa, violadora de deveres emergentes do vínculo contra­tual estabelecido entre si e o empregador e que pela sua gravidade e consequências torne imediata e praticamente impossível a manutenção desse vínculo.
Como tal, importa desde já averiguar da existência de infração disciplinar que possa ser assacada à Autora, tal como concluiu a Ré e a sentença recorrida confirmou.
Quanto a isto, e contrariamente ao que a Autora — apelante aflora, por diversas vezes, ao longo da sua alegação de recurso, é bom que se esclareça que nada indicia que o despedimento tenha ocorrido unicamente por motivos religiosos, em razão da crença religiosa adotada pela trabalhadora.
Fosse esse o caso, e quedar-nos-íamos por aqui, considerando, sem mais, o despedimento como ilícito.
O que a Ré imputou à Autora, e a sentença considerou como tal, foi a existência de faltas injustificadas da Autora — desde o pôr do sol até ao termo do turno de sexta-feira — e desobediência a ordens legítimas, que lhe impunham a prestação de trabalho suplementar ao sábado.
Ficou provado, com relevância para esta matéria:
  no setor de produção, ao qual se encontrava adstrita a Autora, a Ré tem instituído, desde 20 de agosto de 2007, um regime de trabalho por turnos rotativos;
  em 2009, até 31 de agosto, os turnos a que a Autora se encontrava adstrita eram os das 07h00 às 15h00, ou das 15h00 às 23h00;
  a partir de 1 de setembro de 2009, os turnos a que a Autora estava adstrita passaram a ser das 07h30 às 15h30 ou das 15h30 às 23h30;
  desde 01 de janeiro até 31 de agosto de 2009, quando se encon­trava adstrita ao turno das 15h00 às 23h.00 a Autora faltou ao serviço nos dias e horas discriminados no ponto H. e L, num total de 66h e 17 m, equivalendo a oito dias e mais 2h e 17 m;
  todas estas faltas, com exceção das dadas nos dias 26 de fevereiro (14 minutos) e 07 de maio (10 minutos), correspondem a períodos de trabalho às sextas-feiras;
  nessas sextas-feiras, encontrando-se escalada no segundo turno, assim que atingia a hora do pôr do sol, a Autora abandonava o seu posto de trabalho, bem sabendo que não estava autorizada para o fazer e consciente que o não podia fazer;
  o processo disciplinar que conduziu ao seu despedimento foi o quinto processo disciplinar instaurado à Autora com fundamento em faltas injustificadas, por abandonar o seu posto de trabalho no decurso do seu período normal de trabalho;
     na sequência dos anteriores processos disciplinares foram-lhe aplicadas, respetivamente, as sanções de repreensão registada de 2, 15 e 30 dias de suspensão do trabalho com perda de retribuição e de antiguidade.
  o último processo disciplinar, anterior a este que conduziu ao seu despedimento, já havia sido instaurado com intenção de despe­dimento, tendo tal sanção sido convolada numa sanção de 30 dias de suspensão e alertada a Autora que a empresa lhe estava a dar uma última oportunidade;
  a atividade da empresa está organizada por turnos, usando o sábado para trabalho suplementar, estando a empresa encerrada ao domingo;
  a Autora não pretende prestar trabalho aos sábados;
  a partir de 2007, por mais do que uma vez, a Autora foi chamada à atenção, nomeadamente pela responsável pelos recursos humanos da Ré e pela chefe de produção da Ré, suas superiores hierárquicas, de que não podia abandonar o seu posto de trabalho às sextas-feiras, antes do termo do período normal de trabalho;
  a falta da Autora no decurso do seu período normal de traba­lho, e na linha de montagem onde está colocada, afetava a execução do trabalho, interrompendo a sequência de tarefas, originando um decréscimo na produção;
  no mês de agosto do ano de 1995, a Autora converteu-se à fé cristã, tendo integrado a Igreja Adventista do Sétimo Dia;
  entre outras doutrinas adotadas pela Igreja Adventista do Sétimo Dia, e observadas pelos seus membros, o dia de guarda é ao sábado, considerando-se o período desde o pôr do sol de sexta-feira até ao pôr do sol de sábado;
  quando era solicitada para realizar trabalho em dia de sábado, a Autora informava a chefe de produção de que não estaria disponível para realizar trabalho nesse dia, por professar religião cujo período de descanso era desde o pôr do sol de sexta-feira até ao pôr do sol de sábado, o que a impedia de trabalhar naquele período;
  nas vezes em que foi chamada à atenção pela responsável de re­cursos humanos e pela chefe de produção, no sentido de que não podia abandonar o seu posto de trabalho às sextas-feiras, antes do termo do período normal de trabalho, a Autora invocava professar religião cujo período de descanso era desde o pôr do sol de sexta-feira até ao pôr do sol de sábado, o que a impedia de trabalhar naquele período.
O que está aqui em causa é se tal comportamento da Autora foi justificado, à luz do referido n.° 1 do artigo 14.° da LLR.
Já vimos que esta norma estabelece requisitos cumulativos, de modo a poder considerar-se suspenso o contrato de trabalho, desig­nadamente para a prática do culto inerente à religião professada pelo trabalhador.
Salientando, e bem, que tal ausência, permitida por essa norma, consubstancia um suspensão do contrato de trabalho, e não qualquer situação de faltas justificadas, a sentença recorrida enuncia, mais uma vez acertadamente, as condições cumulativas para o exercício pela Autora do direito consagrado no artigo 14.° da LLR:
a)   Ser a A. membro de igreja ou comunidade religiosa inscrita;
b)  Que esta tenha feito a comunicação a que se refere a al. b), do n.° 1, indicando os dias de festividade e períodos horários que sejam prescritos pela sua confissão, cuja observância colida com o horário definido para a prestação de trabalho;
c)   Que previamente apresente pedido junto da entidade empre­gadora para suspensão da prestação de trabalho, naqueles dias de festividade ou/e nos períodos horários que sejam prescritos pela sua confissão e cuja observância colida com o seu horário de trabalho;
d)  Que trabalhe em regime de flexibilidade de horário de trabalho; e) Que seja possível a compensação integral do respetivo período de trabalho e que a tal se disponha.
Estando verificada essa primeira condição, e não tendo a Ré levan­tado qualquer objeção quanto a uma eventual comunicação nos termos da al. b), que aliás, e como já dissemos, ficou provada na providência cautelar, temos que, pese embora não tivesse ficado provado que a Autora o tenha invocado sempre, para as suas ausências, dúvidas não há, face ao conjunto do circunstancialismo provado e ao próprio fun­damento dos processos disciplinares anteriormente movidos contra a Autora, e que resultaram, na sua totalidade, em sanções disciplinares, que a Ré tinha a perfeita noção de que as ausências da Autora à sexta­-feira e a recusa em prestar trabalho ao sábado estavam relacionadas com a observância, por parte da trabalhadora, como dia de guarda, do sábado, compreendendo-se o período desde o pôr do sol de sexta-feira até ao pôr do sol de sábado.
As dificuldades residem em saber o que quis o legislador da LLR dizer com a adoção do conceito de horário de trabalho flexível, aque se refere a alínea a) do n.° 1 do artigo 14.° de tal lei. É que este diploma legal nada diz a esse respeito.
Relembrando tudo quanto já se disse a propósito da alegada incons­titucionalidade daquela disposição legal, o que se pretendeu com esta foi harmonizar dois direitos potencialmente em conflito: o direito do trabalhador à liberdade religiosa e o direito do empregador à correta gestão dos meios humanos ao seu dispor. Sempre com a preocupação que o exercício do direito do trabalhador não acarrete, para um em­pregador, um prejuízo injustificado e desproporcionado.
Procurando a melhor interpretação para esse “regime de flexibi­lidade ”, em relação ao qual o CT de 2009 também nada define ex­pressamente, o Sr. Juiz socorre-se do que neste Código se estabelece quanto à duração e organização do tempo de trabalho, constante dos art.s 197.° a 231.°, e conclui que o legislador “não tinha em mente um determinado esquema preciso de distribuição das horas do período normal de trabalho, antes querendo deixar um conceito aberto, de modo a abranger qualquer regime de trabalho que se distancie dos esquemas em que a característica seja a fixidez. Essa solução im­pôs-se como uma necessidade para possibilitar a condição a que se refere a al. c), ou seja, a compensação integral do respetivo período de trabalho durante o qual ocorra a suspensão, para exercício do direito de liberdade religiosa. Na verdade, não se descortina a pos­sibilidade prática de assegurar a compensação por parte de alguém que trabalhe diariamente sujeito a um horário fixo”.
Concordamos em absoluto com tal asserção, tanto mais que ela vai de encontro ao que Monteiro Fernandes, in Direito do Trabalho, 12.ª edição, pago 336, define como “horário flexível”: em que estão delimitados períodos de presença obrigatória do trabalhador, mas podendo este, com respeito por esses períodos, escolher, dentro de certas margens, as horas de entrada e saída do trabalho, e modo a cumprir o PNT [...] a que está obrigado (ex: o PNT é de 40 horas semanais; o período de presença obrigatória diária é das 10 h às 12h.30 m. e das 15 h às 17h.30 m.; o trabalhador pode, em cada dia, entrar ao serviço entre as 8 e as 10h, interromper para almoço entre as 12h30 m e as 15h, e escolher a hora de saída entre as 17h 30 m. e as 19h. 30 m.; mas terá de cumprir as 40 horas de trabalho por semana)”.
E devendo compatibilizar-se esse regime de trabalho flexível com a possibilidade de compensação prevista na alínea c) do n.° 1 do artigo 14.°, facilmente se compreende que neste exemplo dado por aquele Ilustre Autor seja mais do que viável o trabalhador compensar o período de ausência para a prática do culto religioso.
Também a sentença recorrida dá dois exemplos felizes de situações de flexibilidade de horário (os assistentes de bordo e os delegados de propagando médica). E refere que “Assim, o trabalhador prestará a sua atividade em regime de flexibilidade de horário quando, no interesse da entidade empregadora — radicado na organização do seu funcionamento, porque desse modo proporciona a obtenção da utilidade da força de trabalho à disposição daquela — tenha sido estabelecido um esquema em que aquela prestação, contendo-se nos limites legais do período normal de trabalho, possa ter hora variável de entrada e saída, dependendo tal de determinadas circunstâncias ou condições ou sendo gerido pelo trabalhador, em qualquer caso tendo em vista uma melhor eficácia da sua prestação”.
Concluindo, temos que o trabalhador, em ordem a ver observado o direito consagrado no artigo 14.° da LLR, e assim poder professar, com toda a sua amplitude, a sua confissão religiosa, terá que estar sujeito a um regime de flexibilidade de horário [al. a)], exigindo-se, cumulativamente, que proceda à “compensação integral do respe­tivo período de trabalho” [al. b)] que deixou de prestar para poder comemorar as festividades ou observar o período de culto prescritos por aquela confissão.
No caso que nos ocupa, ficou provado que, a partir de 20 de agosto de 2007, a Ré organizou o funcionamento do setor de produção onde a Autora exercia funções em regime de turnos rotativos; até 31 de agosto de 2009, os turnos a que a Autora se encontrava adstrita eram das 07h00 às 15h00 ou das 15h00 às 23h00; e, a partir de 1 de setembro de 2009, passaram a ser das 07h30 às 15h30 ou das 15h30 às 23h30.
De acordo com a conceitualização que se considerou adequada do regime de trabalho flexível”, temos por certo que não era esse o caso da prestação do trabalho da Autora.
Com efeito, não é por trabalhar em regime de turnos que se verifica essa flexibilidade. As horas de início e termo do período normal diário estavam perfeitamente determinados e eram fixos, apenas alternando em função da rotação do turno. E esse caráter fixo é precisamente o oposto de flexibilidade de horário.
Por outro lado, não era de todo possível a “compensação”: es­tando o regime de trabalho organizado por turnos, utilizando-se o sábado — precisamente o dia em que a Autora estava “impedida” pela sua opção religiosa — para trabalho suplementar e não labo­rando a Ré ao domingo, não haveria qualquer hipótese de a Autora trabalhar em outro qualquer período. E a compensação, como adverte o Sr. Juiz, não pressupõe apenas que o trabalhador se disponibilize ou a ela fique obrigado, mas também que seja possível à entidade empregadora receber essa compensação, sem prejuízo da sua normal organização de recursos.
Não se verificam assim, esses requisitos das als. a) e c), por forma a conferir à Autora o direito, por virtude da sua confissão religiosa, de se ausentar do trabalho à sexta-feira, a partir do pôr do sol, e de se recusar a prestar trabalho suplementar ao sábado.
A conclusão idêntica se chegaria mesmo que se considerasse — e não é o caso, reafirma-se — que o regime de trabalho por turnos cabia dentro daquele conceito de flexibilidade de horário.
Segundo Júlio Gomes, ob. cit., pago 299, que não reporta este seu entendimento ao regime legal da LLR, a solução ideal de compati­bilizar os interesse em conflito, em situações como a que nos ocupa seria a seguinte:
“[...] a boa-fé pode impor ao empregador que faça um esforço razoável para adaptar o funcionamento da empresa às necessida­des religiosas dos seus trabalhadores, atendendo ao caso concreto e evitando fazer ao empregador exigências excessivas. Queremos, com isto, destacar que numa pequena empresa, com um número reduzido de trabalhadores, pode revelar-se muito difícil — e não exigível — garantir ao um trabalhador judeu ou adventista que não trabalhe ao sábado, mas o mesmo poderá não ser verdade numa empresa com centenas de trabalhadores”.
Ou seja, poder-se-ia equacionar, no caso concreto, a possibilidade de troca do segundo turno (que terminava às 23 horas e, a partir de se­tembro de 2009, às 23h30 horas) da sexta-feira, quando a Autora para ele estivesse escalada, com outro trabalhador, e a dispensa sistemática da Autora do trabalho suplementar ao sábado, para assim dar satisfação ao seu direito de observar o período de culto da sua religião.
Isso mesmo é defendido pela apelante quando invoca o disposto no artigo 570.° do Cod. Civil, para avaliação da responsabilidade disci­plinar da Autora, sustentando que a culpa da Ré existiria, concorrendo com a dela, já que a Ré sempre teve turnos que podia ter atribuído à Autora que não a impediriam de cumprir o período de guarda religio­samente ditado, ou seja, os turnos das 07h às 15h, entre 2007 e 2009 e os turnos das 07h30 às 15h30min, a partir de 2009.
Só que, nestas hipóteses, estaríamos perante um clara violação do princípio constitucional da igualdade: com efeito, a troca de tur­nos implicaria que fosse afetado um qualquer outro trabalhador, onerando -o com obrigatoriedade de prestar trabalho nesse período em que a Autora seria dispensada.
Como é sabido, existe uma especial penosidade no regime de tra­balho por turnos, que mais se acentua quando o turno coincide com período noturno. Daí que, no regime de turnos rotativos do género do que observava a Ré, a entidade empregadora proceda a uma alternância entre os seus trabalhadores, normalmente semanal, por forma a que, em cada semana, o trabalhador preste serviço num primeiro turno e na semana seguinte no outro turno. Atender a pretensão da Autora implicaria que um qualquer outro trabalhador que na sexta-feira anterior tivesse prestado trabalho no último turno tivesse que o fazer novamente na sexta-feira seguinte.
E conceder a dispensa do trabalho suplementar ao sábado à Autora implicaria que a Ré adotasse uma regra em contrário dos demais, que a ele estavam obrigados.
Estaríamos claramente perante uma discriminação negativa, em que o trabalhador que professasse religião diferente ou não professasse religião alguma era inequivocamente penalizado por confronto com a situação da Autora. E não é difícil descortinar, porque vulgares, situações em que o trabalhador, professando a religião católica, presta trabalho suplementar ao domingo, que é dia de culto de tal religião, já para não falar dos feriados de caráter religioso.
Também não tem razão a Autora quando invoca (nada dizendo em termos de o fundamentar juridicamente) que a Ré ignorou um” direito adquirido”, já que, e segundo ela, durante onze dos dezoito anos de relação laboral com a Ré, isto é, entre 1995 e 2007, a Autora nunca trabalhou ao serviço da Ré em horário de trabalho que entrasse em confronto com a observância do dia de guarda da sua religião, à qual se converteu em 1995, e, durante todo esse tempo, nunca foi levantada pela Ré qualquer questão de ordem técnica ou disciplinar que estivesse relacionada com a observação do dia de guarda da religião por si professada.
Esquece-se, todavia, a Autora que só a partir de 20 de agosto de 2007 é que a Ré instituiu, no setor de produção, ao qual se encon­trava adstrita a Autora, um regime de trabalho por turnos rotativos. Assim, mesmo que a Ré tivesse mostrado, antes dessa data, alguma tolerância em permitir que a Autora saísse mais cedo, antes do pôr do sol de sexta-feira, tal nunca poderia constitui uma expectativa juridicamente tutelada, precisamente porque as condições de traba­lho, no que respeito ao período de prestação do mesmo, se alteraram substancialmente.
Finalmente, e no que respeita à alegação do conflito de interesses, dando a lei civil preferência aos valores pessoais sobre os patrimoniais, estribando-se a Autora no disposto no artigo 335.° do Cód. Civil, li­mitamo-nos a remeter para o que já foi dito, a esse respeito, aquando da abordagem da inconstitucionalidade invocada.
Chegados aqui, não podem restar dúvidas da existência de infração disciplinar por banda da Autora.
Entre os deveres impostos ao trabalhador, e elencados no artigo 128.° do CT, estão os de “Comparecer ao serviço com assiduidade e pontua­lidade” [al. b) do n.° 1], de “Realizar o trabalho com zelo e diligência” [al. e) do n.° 1] e de “Cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes à execução ou disciplina do trabalho [...] que não sejam contrárias aos seus direitos e garantias” [al. e) do n.° 1].
Por outro lado, estabelece o artigo 227.°, n.° 3, que “o trabalhador é obrigado a realizar a prestação de trabalho suplementar, salvo quando, havendo motivos atendíveis, expressamente solicite dis­pensa”.
Como resultou provado, no período compreendido entre 1 de janeiro de 2009 e 31 de dezembro de 2009, quando o turno às sextas-feiras se iniciava à tarde e tinha o seu termo à noite, a Autora ausentava-se do trabalho, assim que atingia a hora do pôr do sol, perfazendo o somatório dos períodos de ausência de cada um desses dias o total de 65 horas e 53 minutos.
Sendo que, em relação à situação da Autora, está, como vimos, excluída a possibilidade de aplicação do regime previsto no artigo 14.° da lei de Liberdade Religiosa, essas ausências, não autorizada nem justificadas, constituem faltas injustificadas, com a inerente violação dos deveres de assiduidade e pontualidade.
E não tendo apresentado, nem existindo, motivo atendível para a recusa de prestação de trabalho suplementar, verifica-se a violação, por parte da Autora e reiteradamente, do dever de obediência, sendo que desde 2007 que vinha sendo chamada à atenção pelas suas su­periores hierárquicas por recusar prestar trabalho suplementar ao sábado — prestação a que estava obrigada — e que lhe foram movidos quatro processos disciplinares e aplicadas sanções sucessivamente mais graves.
Mas como se disse, não basta a singela existência de uma infração disciplinar por banda do trabalhador para que se possa concluir pela impossibilidade prática e imediata da subsistência do contrato, que consubstancia a justa causa de despedimento.
Sendo o despedimento a mais grave das sanções, para que a atuação do trabalhador integre justa causa é ainda necessário que seja grave em si mesma e nas suas consequências.
O comportamento culposo do trabalhador só integrará justa causa de despedimento quando determine a impossibilidade prática da subsistência da relação de trabalho, o que acontecerá sempre que a rutura seja irremediável, isto é, sempre que nenhuma outra sanção seja suscetível de sanar a crise contratual grave aberta com aquele comportamento.
Daí que não basta que o comportamento se integre numa das hipó­teses exemplificativas do n.° 2 desse artigo 351.°, não basta a prova da materialidade dos factos, sendo necessário que os mesmos, pela sua gravidade e consequências, tornem imediata e praticamente im­possível a relação de trabalho.
Quanto à impossibilidade prática de subsistência da relação labo­ral e citando, entre outros, o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 30/04/2003, Proc. n.° 02S568, disponível em www.dgsi.pt. a mesma verifica-se “quando ocorra uma situação de absoluta quebra de con­fiança entre a entidade patronal e o trabalhador, suscetível de criar no espírito da primeira a dúvida, sobre a idoneidade futura da conduta do último, deixando de existir o suporte psicológico mínimo para o desenvolvimento dessa relação laboral”.
Ainda de acordo com o mesmo aresto, citando, aliás, Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, 11a Edição, pago 540-541., “Não se trata, evidentemente, de uma impossibilidade material, mas de uma inexigibilidade, determinada mediante um balanço in con­creto dos interesses em presença — fundamentalmente o da urgência da desvinculação e o da conservação do vínculo [...]. Basicamente preenche-se a justa causa com situações que, em concreto (isto é, perante a realidade das relações de trabalho em que incidam e as cir­cunstâncias específicas que rodeiam tais situações), tornem inexigível ao contraente interessado na desvinculação o respeito pelas garantias de estabilidade do vínculo”.
Acresce ainda que, sendo o despedimento a sanção disciplinar mais grave, a mesma só deve ser aplicada nos casos de real gravidade, isto é, quando o comportamento culposo do trabalhador for de tal forma grave em si e pelas suas consequências que se revele inadequada para o caso a adoção de uma sanção corretiva ou conservatória da relação laboral.
E porque não basta um comportamento culposo, sendo também necessário que ele seja grave em si mesmo e nas suas consequências, gravidade que deverá ser apreciada em termos objetivos e concretos, no âmbito da organização e ambiente da empresa, e não com base naquilo que o empresário subjetivamente considere como tal, é que o n.° 3 do artigo 351.° do CT determina que: “Na apreciação dajusta causa deve atender-se, no quadro da gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao caráter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes”.
Para além desta ideia básica de justa causa, o artigo 351.° do CT consagra um elenco exemplificativo de justas causas típicas, no seu n.° 2, mas em que os diversos termos nele compreendidos devem, todavia, preencher os requisitos subjacentes à ideia básica de justa causa a que alude o seu n.° 1.
Entre os comportamentos do trabalhador suscetíveis de integrar o conceito de justa causa temos a “Desobediência ilegítima às ordens dadas por responsáveis hierarquicamente superiores”, o “Desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, de obrigações inerentes ao exercício do cargo ou do posto de trabalho a que está afeto” e as “Faltas não justificadas ao trabalho que determinem diretamente prejuízos ou riscos graves para a empresa” — als. a), d) e g) do n.° 2 do artigo 351.° Posto é, contudo, e como se disse, que tais práticas tornem imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, não bastando a verificação de um desses com­portamentos, pois esse n.° 2 apenas se reporta ao primeiro elemento (comportamento culposo), sendo necessário que se verifiquem os restantes pressupostos referidos no n.° 1 para que se conclua pela existência de justa causa de despedimento.
Não esquecendo que, como já se referiu, a justa causa postula sempre uma infração, ou seja, uma ação ou omissão, de deveres legais ou contratuais. Esse ato ilícito culposo, que pode assentar em ação ou omissão do prestador de trabalho, será necessariamente derivado da violação de deveres obrigacionais principais, secundários ou de deveres acessórios de conduta, relacionados com a boa fé no cumprimento do contrato.
E o que é certo é que, no caso concreto, e como se decidiu na sen­tença, a factualidade provada é no sentido de concluir que a conduta da Autora abriu tal crise contratual grave.
Como se disse, assumiu um comportamento reiterado de ausência ao trabalho, a partir do pôr do sol da sexta-feira em que teria de cumprir o turno que terminava às 23 ou às 23h30 horas, e de desobediência a ordens legítimas da entidade empregadora de prestar trabalho ao sábado, sendo que a justificação apresentada não tem acolhimento legal no citado artigo 14.°, n.° 1, da LLR.
A partir de 2007, por mais do que uma vez, a Autora foi chamada à atenção, nomeadamente pela responsável pelos recursos humanos e pela chefe de produção da Ré, suas superiores hierárquicas, de que não podia abandonar o seu posto de trabalho às sextas-feiras, antes do termo do período normal de trabalho.
A Autora estava inserida numa linha de montagem, na fase de embalagem, a qual funcionava de uma forma sequencial, e cujo nor­mal funcionamento depende do trabalho de todas as trabalhadoras que a integram.
A falta da Autora no decurso do seu período normal de trabalho e na linha de montagem onde estava colocada afetava a execução do trabalho, interrompendo a sequência de tarefas, originando um decréscimo na produção, causando, assim, um claro prejuízo à Ré, circunstâncias que a Autora bem conhecia.
Pelos mesmos motivos, havia já sido alvo de 4 anteriores processos disciplinares, que culminaram com sanções progressivamente mais gravosas. Apesar disso, não se coibiu de continuar esse seu compor­tamento de faltas injustificadas e de desobediência.
Não se tratou, pois, de uma conduta pontual, antes se repetindo, sendo certo que a Autora bem sabia que não estava autorizada a agir assim.
Sendo que o comportamento do trabalhador tem de ser analisado na perspetiva da sua projeção sobre o vínculo laboral, em atenção às funções que ele exerce e à possibilidade de estas subsistirem sem lesão irremediável dos deveres fundamentais inerentes, não era exigível à Ré, face ao passado disciplinar da Autora e às circunstâncias de facto, exatamente as mesmas em que fundou o despedimento, que estiveram na base dos procedimentos disciplinares anteriores, que optasse por sanção conservatória do vínculo laboral.
Improcedendo, assim e também nesta parte, as conclusões do re­curso.
Decisão:
Nesta conformidade, acorda-se em negar provimento à apelação, confirmando-se a douta sentença recorrida.»
4.3 — Deste acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa veio interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.° 1 do artigo 70.° da LTC, formulado nos seguintes termos (cf. fls. 446 a 452):
«Natália da Silva Alves e Silva, A. e Recorrente nos autos supra referidos em que é R. e Recorrida Codan Portugal — Instrumentos Médicos, S. A. , notificada a 19 de dezembro de 2011, na pessoa do seu Mandatário, do Acórdão proferido nos presentes autos, que negou provimento à apelação por si apresentada, confirmando a sentença do Tribunal do Trabalho de Loures, por si recorrida, vem, por com ela não se conformar, expor e requerer o seguinte:
1.° Têm os presentes autos origem na decisão de 1 . ª instância, tomada pelo Mmo. Juiz do Tribunal do Trabalho de Loures, que considerou existir justa causa para o despedimento da A. e Recorrente, promovido pela R. e Recorrida Codan;
2.° Dando como improcedentes as alegações feitas no processo, não acompanhando a posição da A. no que respeita à violação, por parte da entidade empregadora, do seu direito constitucional de liberdade religiosa, consagrado no artigo 41.° da Constituição da República Portuguesa (CRP) diretamente aplicável, e, naturalmente, do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.° da CRP, que prevê que a todo o cidadão é reconhecida, entre outras, a possibilidade de ter ou não religião, mudar de religião e praticá-la, devendo o seu exercício ser livre de qualquer pressão, coação ou impedimento;
3.° Sendo certo que com a alusão feita pela R. e Recorrida ao não preenchimento dos requisitos legais cumulativos previstos no artigo 14.° da Lei da Liberdade Religiosa (Lei n.° 16/2001 de 22 de junho, de ora em diante LLR), que é lei ordinária, para se negar à Recorrente o exercício da sua liberdade religiosa não se pode a mesma conformar, pois considera tal normativo legal inconstitucional;
4.° O que, desde logo, foi referido na contestação ao articulado de motivação apresentado pela antiga entidade empregadora, bem como nas alegações apresentadas a este Tribunal a quo.
5.° Com efeito, o artigo 14.° da LLR, ao prever requisitos cumula­tivos para o exercício de um direito fundamental constitucionalmente consagrado, restringe e condiciona — a nosso ver — de forma ilí­cita, à luz da CRP., cartilha essencial para a sua interpretação, o seu exercício pois:
6.° Atendendo a que a A. e Recorrente considera o n.° 1 do ar­tigo 14.° e as suas alíneas da LLR inconstitucionais, não pode deixar de concluir que a ordem dada pela sua antiga entidade empregadora de negar o exercício do seu período de guarda era uma ordem ilegí­tima e, logo, a sua desobediência era lícita e legítima, não havendo, portanto, a justa causa alegada pela R. e confirmada pelo Tribunal de 1.ª Instância e Tribunal da Relação de Lisboa.
7.° Exatamente por inconformada com o seu despedimento, recor­reu a A. do mesmo judicialmente, tendo desde logo sido levantada a questão, e referida, como fundamentação, a inconstitucionalidade material da citada norma 14.° da LLR, conforme contestação articulada ao articulado motivador da R. e Recorrida.
8.° No entanto, foi proferida sentença que deu como improcedente o seu pedido, sentença esta da qual a A. recorreu, tendo voltado a alegar a dita inconstitucionalidade do n.° 1 do artigo 14.° da LLR, por violação do princípio da igualdade e da liberdade religiosa, consti­tucionalmente consagrados 13.° e 41.° da CRP, conforme alegações apresentadas junto deste Tribunal, e condensadas nas conclusões, mormente, as numeradas de 15 a 46.
9.° Contudo, o Tribunal a quo decidiu manter a decisão do Mmo. Juiz de 1 . ª Instância, não reconhecendo a existência da invocada inconstitucionalidade.
10.° Pelo exposto, e face ao que dita o n.° 2 do artigo 70.° da lei do Tribunal Constitucional (de ora em diante, LTC, aprovada pela Lei n.° 28/82 de 15 de novembro, atualizada consecutivamente pelas Lei n.° 143/85, de 26/11, Lei n.° 85/89, de 07/09, Declaração de 3/11 de 1989, Lei n.° 88/95, de 01/09, Lei n.° 13-A/98, de 26/02, Retificação n.° 10/98, de 23/05 e Lei Orgânica n.° 1/2011, de 30/11;
11.° Encontra-se a Recorrente face a uma situação irremediável onde, nos presentes autos, já estão completamente esgotados todos os meios e recursos jurisdicionais ordinários, atentos às alterações impostas pelo Decreto-Lei n.° 303/2007, de 24 de agosto, que veio reformular a arquitetura do sistema de recursos cíveis, sendo que tal matéria, e respetivas alterações, são aplicáveis, ex vi artigo 11.° deste diploma, a todos os processos que não estivessem pendentes à data da sua entrada em vigor, 1 de janeiro de 2008, conforme artigo 12.° do mesmo decreto-lei — o que é, manifestamente, o caso do processo sub judice;
12.° Pelo que não pode a A. Recorrente apelar da decisão deste Tribunal da Relação, conforme artigo 691.° do C.P.C., de 2.ª instância, pois atualmente só são admitidos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça que sejam recursos de revista, nos termos do artigo 721.° do CPC;
13.° E, mesmo dentro deste âmbito, apenas são admitidos recur­sos em circunstâncias excecionais, não sendo admitidos recursos de acórdãos do Tribunal da Relação que confirmem a decisão proferida em 1.ª instância, sem votos de vencido — que é o caso — não se aplicando, sequer, qualquer uma das exceções admitidas por lei, e previstas no artigo 721.°-A do CPC.
14.° Não há, portanto, recurso ordinário que possibilite à A. Recor­rente, atendendo ao disposto no artigo 280.° da Constituição, reagir contra a decisão da aplicação da supra referida norma da LLR com a qual continua a não poder conformar-se;
15.° E de cuja inconstitucionalidade continua inabalavelmente persuadida, quer não só do ponto de vista material, mas também da que resulta da desconformidade com a intenção do legislador cons­titucional, bem como da própria LLR, artigo 1.°, onde estão estabe­lecidos os elementos interpretativos da dita lei da liberdade religiosa (primeiro, a CRP e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, bem como o direito internacional aplicável e a própria lei), fugindo ainda a interpretação que não a considere inconstitucional ao respeito pelo princípio constitucional da igualdade, já referido.
1 6.° Posto isto, e porque a Recorrente continua inconformada com a decisão proferida por este Tribunal da Relação de Lisboa, que de­cidiu julgar conforme com o texto constitucional — nomeadamente, artigos 13.° e 41.° da CRP — a norma constante do artigo 14.°, n.° 1 da LLR e suas alíneas cumulativas;
17.° Vem agora a mesma, porque em tempo, e porque para tal tem legitimidade, nos termos da alínea b) do n.° 1 do artigo 72.° da LTC, interpor recurso para o Tribunal Constitucional;
1 8.° Recurso este que deverá subir imediatamente e nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo, nos termos dos artigos 79.°, alínea a), 79.°-A, n.° 1 do C.P.T. ex vi n.° 4 do artigo 78.° da LTC.
19.° Nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 75.°-A da LTC, desde já se esclarece que, com o presente recurso, pretende a Recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade e a descon­formidade do n.° 1 do artigo 14.° da LLR e suas alíneas cumulativas:
Artigo 14.º
Dispensa do trabalho, de aulas e de provas por motivo religioso
1 — Os funcionários e agentes do Estado e demais entidades pú­blicas, bem como os trabalhadores em regime de contrato de traba­lho, têm o direito de, a seu pedido, suspender o trabalho no dia de descanso semanal, nos dias das festividades e nos períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam, nas seguintes condições:
a)   Trabalharem em regime de flexibilidade de horário;
b)   Serem membros de igreja ou comunidade religiosa inscrita que enviou no ano anterior ao membro do Governo competente em razão da matéria a indicação dos referidos dias e períodos horários no ano em curso;
c) Haver compensação integral do respetivo período de traba­lho.
20.° Com os mais básicos princípios constitucionais, nos termos do disposto nas alíneas b), e f) do n.° 1 do artigo 70.° da LTC, ao abrigo das quais o presente recurso é interposto;
21.° Nomeadamente, por manifesta violação do disposto no ar­tigo 13.°, n.° 1 da CRP, no que toca ao princípio da igualdade nele pre­visto estabelecido, especialmente no que respeita ao igual tratamento dos trabalhadores, no que toca a gozar do direito constitucional pre­visto no artigo 41.° da lei fundamental, ou seja, a liberdade religiosa, assim também ilicitamente debulhado pela previsão legal;
22.° Deparando-se a Recorrente com interpretação da antiga enti­dade empregadora e dos Tribunais de 1.ª e 2.ª Instância com interpreta­ções ao arrepio do mandato constitucional previsto no artigo 16.°, n.° 2 da CRP, que dita que os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais — como é o caso — devem ser do Homem.
23.° Ademais, considera-se também assim violado o disposto nos n.° 1 e n.° 3 do artigo 18.° da CRP, cuja previsão sobre a força jurídica dos preceitos constitucionais, obriga a que os cânones constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias sejam diretamente aplicáveis, mais referindo que vinculam igualmente as entidades públicas e privadas, sendo certo que as leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
24.° Finalmente, e em consequência do já exposto nas alegações nas instâncias anteriores, há na decisão da Codan, confirmada pelos Tribunais de 1.ª e 2.ª Instância, manifesta violação do disposto no artigo 26.° da Constituição, que estabelece no n.° 1, a garantia constitu­cional de que a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal e a proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.,
25.° Em suma, e porque a inconstitucionalidade material do n.° 1 do artigo 14.° da LLR é a génese do inconformismo da Recorrente com a decisão da sua antiga entidade empregadora e, depois, com as decisões jurisdicionais que se lhe seguiram;
26.° E porque foi, desde logo, suscitada quer na contestação apre­sentada no Tribunal do Trabalho de Loures, quer nas suas alegações do recurso interposto para este Tribunal da Relação de Lisboa, referindo a violação das normas constitucionais supra referidas, mormente, o princípio da liberdade religiosa e todas com ela e com o seu exercício conexas;
27.° Estão observados os formalismos legais previstos para o pre­sente recurso, tem a Recorrente legitimidade, estando em tempo e estando representada por Advogado, nos termos e para efeitos dos artigos 72.° n.° 1 alínea b), 75.°, n.° 1, 75.° A, n.° 1 e n.° 2 e 83.° da LTC;
Requer-se a V. Exas. que desde já considerem validamente in­terposto recurso da decisão deste Tribunal da Relação de Lisboa para o Tribunal Constitucional, seguindo-se os ulteriores termos, indo as respetivas alegações que o motivarão ser produzidas já no Tribunal ad quem, de acordo com o disposto no artigo 79.° da LTC e no prazo aí previsto, após notificação nos termos do artigo 78.°-A, n.° 5 do referido diploma legal. »
4.4 — Notificada para apresentar alegações, faculdade exercida pela recorrente, foram desenvolvidos os fundamentos do seu pedido de julga­mento de inconstitucionalidade da interpretação normativa do preceito invocado, ali se concluindo (cf. Alegações, Conclusões, fls. 498-507):
«Conclusões:
1 — O presente recurso tem por base a decisão de despedimento da Recorrente fundamentada na impossibilidade de a mesma poder exercer o seu direito de liberdade religiosa, na vertente de prestação de culto e respeitar o período de guarda da sua religião, com base numa leitura dos requisitos do n.° 1 do artigo 14.° da LLR que só se pode considerar violadora do princípio constitucional previsto no artigo 41.° da CRP (reforçado por via do n.° 1 do artigo 8.° da CRP e pela integração do mesmo direito fundamental do Homem no nosso ordenamento jurídico) e do princípio constitucional da igualdade, previsto no artigo 13.° da CRP.
2 — Considera a Recorrente que ao prever requisitos cumulativos para o exercício de um direito fundamental constitucionalmente con­sagrado, o artigo 14.° da LLR, restringe e condiciona — a se ver — de forma ilícita, à luz da CRP, cartilha essencial para a sua interpretação, o exercício do direito constitucional à liberdade religiosa e à igualdade entre trabalhadores, não podendo deixar de concluir que a ordem dada pela sua antiga entidade empregadora de negar o exercício do seu pe­ríodo de guarda era uma ordem ilegítima e, logo, a sua desobediência era lícita e legítima, não havendo, portanto, a justa causa alegada pela Recorrida e confirmada, a seu ver, mal, pelo Tribunal de 1.ª Instância e pelo Tribunal da Relação de Lisboa;
3 — Mormente, entende a Recorrente que as alíneas do n.° 1 do artigo 14.° da LLR, em especial, a alínea a), são contrárias ao disposto no artigo 41.°, no artigo 13.°, n.° 1, nos artigos 8.°, n.° 1 e n.° 2 2 e 16.°, n.° 2, nos n.° 1 a 3 do artigo 18.° e no n.° l do artigo 26.° da CRP.
4 — Com efeito, a Recorrente — que trabalhou por conta da Re­corrida desde o dia 11 de setembro de 1989 — converteu-se no ano de 1995 à fé cristã, tendo integrado a Igreja Adventista do Sétimo Dia, que, entre outras doutrinas adotadas e observadas pelos seus membros, tem como dia de guarda o Sábado, considerando-se este período o tempo entre o pôr do sol de Sexta-feira até ao pôr do sol de Sábado: é uma das 28 crenças basilares desta religião e a aceitação e cumprimento das mesmas é pré-requisito para integrar este credo.
5 — Ora, a partir de 20 de agosto de 2007, foi instituído na Recor­rente um regime de trabalho por turnos rotativos, um de manhã, outro à tarde, sendo que, quando a Recorrente era solicitada para realizar trabalho ao Sábado, definido nos termos supra expostos (mormente, o turno da tarde de Sexta-feira que se prolongasse após o pôr do sol), insistentemente, durante anos, informou a chefe de produção de que não estaria disponível para realizar trabalho após essa hora, por professar religião cujo período de guarda era desde o pôr do sol de Sexta-feira até ao pôr- do-sol de Sábado, impedindo-a de trabalhar naquele período.
6 — Não obstante, a Recorrida sempre negou à Recorrente o exer­cício do seu direito à liberdade religiosa, por alusão ao não preenchi­mento dos requisitos legais cumulativos previstos no artigo 14.° da Lei n.° 16/200 1 de 22 de junho, a LLR, e que é lei ordinária, tendo-se, enfim, por a Recorrente não trabalhar em regime de horário flexível negado à mesma o exercício da sua liberdade religiosa, despedindo-a após processo disciplinar, posição da entidade empregadora confir­mada, ao arrepio da CRP, pela primeira e segunda instância.
7 — Efetivamente, a Recorrente entende ser diretamente atingido, no seu âmago, e com atuação da entidade empregadora e com as de­cisões dos tribunais, o seu direito constitucionalmente tutelado, desde logo, no artigo 41.° da CRP, respeitante à liberdade de consciência, de religião e de culto, que é inviolável e que também está consagrado expressamente no artigo 9.° da Convenção para a Proteção dos Di­reitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, no artigo 18.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no artigo 1 8.° do Pacto internacional dos Direitos Civis e Políticos, preceitos por si só obrigatórios para o Estado Português, por via dos n.° 1 dos artigos 8.° e 16.° da mesma CRP.
8 — Este direito fundamental é de tal modo importante que a CRP lhe dá proteção reforçada, outorgando-lhe o cunho de inviolá­vel — apenas a par do que faz para o direito à vida — e não permi­tindo a sua restrição, nem sequer em situações de estado de exceção constitucional, conforme artigo 26, n.° 9 da CRP;
9 — É portanto inviolável a liberdade de consciência, a liberdade de religião e a liberdade de culto, encaradas tanto na vertente indivi­dual, como na vertente coletiva, e tanto dizendo respeito a condutas privadas, como a condutas públicas, n.° 1 do artigo 1 8.° da CRP, não sendo permitido qualquer constrangimento, tanto por entidades públicas (o legislador, os tribunais ordinários), como por entidades privadas (como a entidade empregadora) ao seu exercício, que inclui, naturalmente, a liberdade de observar dias de descanso e de celebrar as festas e cerimónias segundo os preceitos da própria religião em determinados dias.
10 — A proteção dada pela CRP a este direito tem tanto uma di­mensão positiva, como negativa, no sentido de, por um lado, o Estado dever, à luz da CRP, assegurar que ninguém, nem o próprio, impede alguém de professar a sua fé, como no sentido de, por outro lado, o Estado dever propiciar e permitir a quem é crente de determinada religião o cumprimento dos deveres que dela decorram em termos de rituais, de família e de ensino.
11 — Assim, se o Estado, apesar de reconhecer aos cidadãos o direito de professarem uma religião, os puser em condições que os impeçam de a praticar, aí não haverá liberdade de religião, o mesmo sucedendo se não tratar de forma igualitária (assegurando a sua neu­tralidade religiosa) todas as confissões religiosas.
12 — Exatamente para proteger e dar uma dimensão concreta à proteção constitucional consagrada no artigo 41.° da CRP, o legislador ordinário elaborou a LLR, pela Lei n.° 16/2001 de 22 de junho: só que esta falha em respeitar o artigo 41.° e 13.° da CRP, no campo da previsão da sua aplicação prática, nomeadamente, no artigo 14.° da LLR, respeitante às dispensas do trabalho, de aulas e de provas por motivo religioso.
13 — Na realidade, e antes da análise concreta, há que ter em aten­ção que a própria LLR pretende ser uma concretização do princípio prescrito na CRP, não se esquecendo sequer de repetir os princípios pelos quais se guia, mormente, liberdade de consciência, de religião e de culto — tanto em circunstâncias públicas como privadas, e de modo individual ou coletivo — o princípio da igualdade, o princípio da separação, o princípio da não confessionalidade do Estado e o princípio da tolerância, sublinhando a própria a não diminuição da proteção e validade e eficácia plena do direito à liberdade religiosa mesmo em estados constitucionais de sítio ou emergência.
14 — O problema surge quanto o n.° 1 do artigo 14.° da LLR prevê, para o exercício desse direito, três requisitos cumulativos cuja neces­sidade (e dificuldade) de preenchimento compromete seriamente os princípios constitucionais aqui em análise, por se entenderem postos em cheque por esta mesma norma ordinária.
15 — Na realidade, permitir apenas a funcionários e agentes do Estado e demais entidades públicas, bem como a trabalhadores em regime de contrato de trabalho o direito ao gozo de dias religiosos se e só quanto (a) trabalharem em regime de flexibilidade de horário, e quanto (b) a igreja ou comunidade religiosa inscrita tenha enviado no ano anterior ao membro do Governo competente em razão da matéria a indicação dos referidos dias e períodos horários no ano em curso e só quando (c) puder haver compensação integral do respetivo período de trabalho.
16 — Ora, tenha-se em mente que o dia de descanso semanal obri­gatório para a religião da Recorrente é o Sábado e não o Domingo, como acontece para a maioria religiosa de Portugal, católica: daí se aplaudir a previsão expressa da possibilidade de dispensa do trabalho para crentes doutras fés que outro dia que não o Domingo prevejam para o culto; o que já não se pode aplaudir é a restrição marcante, feita pela previsão legal, à possibilidade de gozar dessa dispensa, que, em termos práticos, fica vedada à maioria dos indivíduos trabalha­dores e crentes praticantes, que não pode deixar de ser considerada inconstitucional.
17 — Com efeito, a restrição feita pela lei ordinária em discussão é inadmissível à luz da CRP, e, mesmo que assim não fosse, seria uma solução francamente desproporcional, cuja qualificação de inconsti­tucional também adviria por meio dessa interpretação.
18 — O artigo 41.° da CRP não admite qualquer restrição, porque este direito não faz parte dos casos previstos constitucionalmente que admitam a criação de limites, conforme artigo 18.°, n.° 2 da CRP; pelo contrário, prevê-se expressamente o seu caráter inviolável, e a insusceptibilidade da sua suspensão em situação de estado de sítio ou emergência.
19 — Além disso, é diretamente aplicável e vincula imediatamente, tanto entidades públicas como privadas (n.° 1 do mesmo artigo 18.° da CRP), pelo que as alíneas do n.° 1 do artigo 14.° da LLR ao estabele­cerem a restrição do direito em causa, sem a necessária autorização constitucional, padecem, imediatamente, de inconstitucionalidade material.
20 — Para além disto, mesmo que se previsse lei restritiva, esta nunca poderia atingir o seu conteúdo essencial, nem tão pouco dimi­nuir a extensão e alcance do mesmo, pois tal equivaleria a negar-se a liberdade de religião; pelo contrário, ao Estado compete legislar para proteger com medidas concretas — e não para restringir — o direito previsto.
21 — Ora, o conteúdo essencial do direito à liberdade religiosa é atingido quando a limitação imposta não lhe deixa sentido útil, quando impede o seu exercício, que é exatamente a questão aqui em causa: a vedação à Recorrente de prestar culto no seu dia santo, tendo sido despedida por o fazer, com base no não preenchimento dos requisitos do n.° 1 do artigo 14.° da LLR.
22 — A questão foi, aliás, posta em torno do sacrifício do direito da entidade empregadora, mormente, o direito à autonomia privada e liberdade de empresa, também com assento constitucional, e é verdade é que qualquer lei restritiva só se justifica quanto serve para salvaguardar outros direitos ou interesses legalmente protegidos.
23 — Mas mesmo as restrições legais, nos termos do n.° 3 do artigo 1 8.° da CRP, e tanto mais em relação a um direito fundamen­talmente protegido, como o direito à liberdade religiosa, teriam que respeitar os requisitos constitucionais para a sua validade, e teriam de ser fruto de lei geral e abstrata, o que, atentos os requisitos do n.° 1 do artigo 14.° da LLR, patentemente não aconteceu aqui:
24 — O legislador ordinário ao tentar prever legalmente a regula­mentação de situações em que o exercício destes direitos implicasse prestações positivas ou negativas dos empregadores, deu ao exercício deste direito uma conotação subjetiva, no sentido de se estar a exercer um direito subjetivo no sentido restrito, regulado e concretizado por lei ordinária, no sentido de ser um direito a uma prestação, depen­dendo esse direito do reconhecimento da parte que tem cumprir a obrigação, o que não se pode admitir; a primazia e a aplicabilidade direta do direito à liberdade religiosa não se poderia ter olvidado no ato legislativo que coarta assim o exercício do núcleo essencial deste direito, pondo nas mãos de terceiros a possibilidade do seu gozo, se, por hipótese, for eventualmente reconhecido;
25 — Ignorou a sua substancialidade própria, delimitável inde­pendentemente de eventual colisão de direitos, verificada no caso concreto.
26 — Além disso, o requisito da alínea a) do n.° 1 do artigo 14.° da LLR exige que o candidato à dispensa seja trabalhador com horário fle­xível: ora, para além de este conceito ser indeterminado e francamente complicado de preencher, a dificuldade aumenta quando o mesmo foi decalcado de outro ordenamento jurídico — o italiano — onde os conceitos legais que podem ajudar à sua concretização subjazem em premissas totalmente diferentes; a incongruência, plurissigni­ficância e lapso legal subjacente a este preenchimento conceptual ditam, desde logo, a sua inconstitucionalidade quando é tentada uma interpretação conforme a CRP, não contrária ao texto e ao programa constitucional.
27 — De facto, há no ordenamento laboral português trabalho por turnos, trabalho com isenção de horário, trabalho suplementar, e, apenas em alguns casos — pais, para assistência a filhos — há horário flexível, o que, na prática, impede quase toda a população laboral de gozar o direito previsto na LLR com a restrição da alínea a) do n.° 1 do artigo 14.° da LLR, e torna a sua aplicação limitada, concreta e não generalizada, ao arrepio do n.° 3 do artigo 18.° da CRP, penalizando ainda a maioria dos trabalhadores, o que viola, só por si, o direito constitucional à igualdade.
28 — E, nem mesmo do ponto de vista da proporcionalidade é possível justificar o preceito infraconstitucional limitativo, pois a restrição a fazer ao princípio em causa teria de ser a menos agressiva e intensa possível, do ponto de vista material, espacial, temporal e pessoal, e não é:
29 — Em primeiro lugar, materialmente, está em jogo um interesse de relevância supraconstitucional e com primado sobre os outros direitos a proteger com a restrição legal: o contrabalanço valorativo daquele direito pessoal com o interesse social da autonomia privada e direito à empresa resulta na conclusão da sobrelevação do direito pessoal sobre o direito patrimonial, que, ao contrário daquele, até admite restrições legais autorizadas constitucionalmente (e não são poucas);
30 — Em segundo lugar, temporalmente, a lei também não respeita os ditames da proporcionalidade, que exigem que permita, de forma ampla e abrangente, o gozo do direito que restringe: o horário flexível tem limite temporal legal, que é o atingir dos 12 anos por parte do filho de quem o goza.
31 — Mesmo a nível pessoal, e como já se referiu, também sob esta análise da proporção, devendo preferir-se restrição que atinja um número reduzido de trabalhadores, o que aqui se verifica é uma restrição alargada, pois a janela de utilidade do preceito, o preenchi­mento da alínea a) é apenas possível a um número muito reduzido de trabalhadores.
32 — E, no caso concreto, convém também frisar a atuação da entidade empregadora, que, alegando-se lesada, culpa teve nessa lesão, pois sempre teve e deteve o poder de escalar a Recorrente para turnos da manhã, à Sexta-feira, quando o turno da tarde se prolongasse para lá do pôr do sol: da análise à luz do princípio da necessidade e da exigibilidade, da adequação, enfim, da proporcionalidade, não sobrevivem argumentos de valor para a posição da Recorrida.
33 — Pelo contrário, a Recorrida sempre insistiu, durante três anos, e após onze anos de paz social entre as partes, relativamente ao exercício desse direito religioso, em por a Recorrente a trabalhar em turnos à Sexta-feira à tarde, cujo término era após o pôr do sol, bem sabendo que esta iria abandonar o posto de trabalho, por motivos reli­giosos (constitucionalmente protegidos) e assim prejudicar a empresa a sua própria folha disciplinar e subsistência, colocando-a sempre perante um enorme confronto dilema moral e religioso, para além de pressão psicológica sobre optar pelas suas convicções religiosas e cumprimento das suas funções com assiduidade.
34 — O peso e sacrifício pedido à Recorrente, na ótica da propor­ção, na avaliação da necessidade, maior era do que o apresentado à Recorrida, pois a Recorrente é que viu os seus direitos laborais le­galmente consagrados, e adquiridos, serem gratuitamente violentados pela Recorrida, sem sequer ter necessidade de exigir à Recorrente esse sacrifício, por ser opção sua escalá-la para os turnos da tarde de Sexta-feira, em vez dos turnos da manhã, havendo meio mais adequado e menos penoso, aliás, sem penosidade para qualquer das partes, de respeitar o direito da Recorrente.
35 — Em suma, as faltas dadas pela Recorrente, dadas como prova­das nos autos, aconteceram no período das festividades e observância do período de guarda da sua convicção religiosa, exercendo a Recor­rente o legítimo direito protegido pela Lei Fundamental do nosso país, pelo que o processo disciplinar em mérito e as suas consequências, como o despedimento, só poderiam ter sido — porque são — julgados nulos e sem produção de efeitos, o mesmo se dizendo das decisões judiciais ordinárias que lhe reconheceram validade, por cercearem inconstitucionalmente um direito pessoal e fundamental, com proteção da Lei Fundamental, que é primária e que se impõe à LLR e quaisquer restrições por ela criadas ao exercício deste direito.
36 — Com efeito, a interpretação feita da redação da alínea a) do n.° 1 do artigo 14.° da LLR não é aceitável, pois nem sequer seria a solução possível capaz de garantir um justo equilíbrio de interesses em conflito com dignidade constitucional, até porque aquele que é mais prejudicado possui uma indiscutível supremacia hierárquica formal e material na ordem de valores da CRP.
37 — Foi portanto violada a CRP, nomeadamente, atendendo ao previsto nos artigos 41.°, 13.°, n.° 2, 18.° n.° 1 a 3 e 8.°, n.° 2, em con­creto, o direito à liberdade religiosa, o princípio da igualdade, o prin­cípio da proporcionalidade e o primado do Direito Internacional.
Termos em que a alusão feita pela Recorrida ao não preenchimento dos requisitos legais cumulativos previstos no n.° 1 do artigo 14.° da Lei da Liberdade Religiosa (Lei n.° 16/2001 de 22 de junho, de ora em diante LLR), que é lei ordinária, para negar à Recorrente o exercício da sua liberdade religiosa não se pode deixar de considerar inconstitucional — tal como as decisões dos tribunais de primeira e segunda instância, que confirmaram a posição daquela — pois restringe e condiciona de forma ilícita, à luz da CRP, o exercício do direito constitucionalmente consagrado e especialmente protegido pela CRP, só assim se fazendo Justiça».
4.5 — Por seu turno, a Recorrida apresentou contra-alegações, con­cluindo (cf. 547-556):
«A) Pretende a Recorrente com o presente recurso ver reconhecida a inconstitucionalidade do artigo 14.° da Lei da Liberdade Religiosa/ LLR (Lei n.° 16/200 1, de 22 de junho), na medida em que no seuentender, impede o exercício da sua liberdade religiosa, restringindo e condicionando de forma ilícita, à luz da CRP, o exercício de um direito constitucionalmente consagrado.
B)  Salvo o devido respeito e sempre salvo melhor opinião, não assiste razão à Recorrente, inexistindo qualquer inconstitucionalidade do preceito em questão.
C) O direito à liberdade religiosa encontra-se consagrado, como direito fundamental, na CRP de abril de 1976, nomeadamente no seu artigo 41.°, dele resultando que a todo o cidadão deverá ser reconhe­cida a faculdade de ter ou não ter religião, professar esta ou aquela, mudar de crença, praticá-la só ou acompanhado de outras pessoas, agrupar-se com outros crentes formando confissões ou associações de caráter religioso, sempre sem que tal possa ser objeto de qualquer tipo de coação injustificada, exercida por qualquer pessoa ou auto­ridade pública.
D)   O direito à liberdade religiosa, consagrado no artigo 41.° da CRP, diz respeito aos direitos, liberdades e garantias, pelo que é diretamente aplicável, vinculando as entidades públicas e privadas (n.° 1 do artigo 18.° da CRP), sendo que a sua restrição só pode ser feita através de lei, limitada ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, não podendo diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial daquele direito (n.os 2 e 3 do artigo 18.° da CRP).
E)  Conforme ensinam os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 4.ª Edição, pág. 382, o facto de ser diretamente aplicável não significa que as normas garantidoras de direitos, liberdades e garantias configurem, desde logo, direitos subjetivos absolutos e autónomos suscetíveis de poderem valer como alicerce jurídico necessário e suficiente para a demanda de posições jurídicas individuais.
F)  Por outro lado, ainda segundo ensinam os aludidos Professores, na citada obra, pág. 391, para além das restrições previstas na Consti­tuição, há que acrescentar as restrições não expressamente autorizadas pela Constituição para captar aquelas restrições que são criadas por lei sem habilitação constitucional, mas que não podem deixar de admitir-se para resolver problemas de ponderação de conflitos entre bens ou direitos constitucionais.
G) Ainda segundo o entendimento dos Professores Gomes Cano­tilho e Vital Moreira, consideração particular neste contexto exige o caso em que a lei pretende revelar limites que não se encontram previstos ou mencionados na Constituição, mas que hajam de en­tender-se implicitamente decorrentes do seu texto, designadamente por efeito de colisão de direitos: são as restrições não expressamente autorizadas pela Constituição, tradicionalmente conhecidas como limites imanentes”.
H) Quanto à questão da Liberdade Religiosa, também o Acórdão da Relação do Porto de 19 de fevereiro de 2008, concluiu que a liberdade religiosa e de culto terá necessariamente de ter limites impostos pela ordem jurídica e constitucional vigentes numa comunidade civiliza­cional e pelos valores fundamentais nela consagrados e defendidos, como sejam — na comunidade em que nos inserimos — a liberdade, os direitos alheios a ordem pública e a realização da justiça. Valo­res e objetivos estes que não podem ser violados ou impedidos por motivos de cariz humanista e racional em que a nossa comunidade de cidadãos se alicerça não podem ser postergados por princípios e práticas religioso/as, como sejam, vg., a admissão de certas mutilações físicas ou da poligamia — cf. António Leite, A Religião no Direito Constitucional Português in estudos sobre a Constituição, 1978, 2.°, pág. 265 e segs. Nesta vertente ao Estado já assiste o poder/dever de, através da função jurisdicional, garantir proteção jurídica a todo aquele que vir os seus direitos ou interesses juridicamente relevantes questionados ou violados por opções, atitudes ou cultos religiosos iní­quos e intoleráveis, de forma a preveni-los ou repará-los, constituindo este um direito fundamental com assento constitucional — artigo 20.°, n.° 1, da CRP.
I) A LLR, no seu artigo 6.° n.° 1, estabelece precisamente que a liberdade de consciência, de religião e de culto, só admite as restrições necessárias para salvaguardar direitos ou interesses constitucional­mente protegidos”.
J) O próprio Projeto de Lei n.° 27/VIII, do qual resultou a LRR, refere a necessidade desta lei face à existência de limites imanentes aos direitos fundamentais que resultam da possibilidade de conflitos entre eles ou deles com interesses constitucionalmente protegidos.
L) Destarte, contrariamente ao pretendido pela Recorrente, seguindo o ensinamento dos Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira e na esteira do entendimento vertido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19 de fevereiro de 2008, na medida em que se revela indispensável para resolver problemas de ponderação de conflitos entre bens ou direitos constitucionais, ter-se-á de concluir que a LRR consubstancia uma verdadeira lei restritiva de direitos, liberdades e garantias, conforme previsto na própria CRP.
M)  Não assumindo, portanto, o direito de liberdade de religião consagrado no artigo 41.° da CRP a natureza de um direito absoluto, admite as restrições necessárias para salvaguardar direitos ou inte­resses constitucionalmente protegidos.
N)   Com a LLR foi propósito do legislador, precisamente, o de encontrar o necessário equilíbrio entre o direito à liberdade religiosa e outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, nomea­damente, no que concerne ao seu artigo 14.°, os legítimos direitos das entidades empregadoras, não esquecendo, como não poderia deixar de ser, o princípio constitucional da igualdade.
O)   Conforme se disse, a LLR resultou do Projeto de Lei n.° 27/ VIII, no qual, com referência ao artigo 14.° da LLR, pode ler-se o seguinte:
“o direito de suspender o trabalho nos dias de descanso semanal, nos dias das festividades e nos períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam [...] deve compatibilizar-se com os direitos da entidade empregadora e com o princípio da igualdade”.
P)  Conforme bem refere o Acórdão recorrido, citando o entendi­mento vertido na douta sentença proferida em primeira instância, decorre claramente desta exposição de motivos, que ao procurar sal­vaguardar e assegurar o direito de liberdade de consciência, religião e de culto previsto no artigo 1.° da LRR (que, por sua vez, pretende dar concretização ao artigo 41.° da CRP), articulando-o com o princípio da igualdade consagrado no seu artigo 2.°, pretendeu o legislador al­cançar nesta matéria uma solução equilibrada, no sentido de conseguir compatibilizar os direitos potencialmente em conflito, de um lado, os direitos do trabalhador que professa determinada religião e pretende observar o “descanso semanal”, os dias de festividades e os períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam e, por outro lado, os direitos da entidade empregadora, desde logo, ao livre exercício da iniciativa económica privada nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral (n.° 1 do artigo 61.° da CRP), bem como de Liberdade de [...] de organização empresarial (artigo 80.° alínea d) da CRP).
Q) A que acrescem, como expressão destes, entre outros, os poderes que a lei ordinária confere à entidade empregadora, nessa qualidade, de estabelecer os termos em que o trabalho deve ser prestado, dentro dos limites decorrentes do contrato e das normas que o regem (ar­tigo 97.° do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.° 7/2009, de 12 de fevereiro) e, de determinar o horário de trabalho do trabalhador dentro dos limites da lei (cf. n.° 1 do artigo 212.° do CT).
R)    No que concerne ao artigo 14.° da LLR, com o regime aí estatuí do, pretendeu o legislador limitar o prejuízo resultante do exercício do direito do trabalhador para a atividade e utilização dos recursos humanos pela entidade empregadora, pretendendo, portanto, salvaguardar o direito de liberdade religiosa do trabalhador mas sem que tal imponha um prejuízo desproporcionado para a entidade em­pregadora, tentando, assim, compatibilizar os direitos em caso de conflito.
S)  Ora, ao usar na alínea a), do n.° 1, do artigo 14.° da LLR a ex­pressão “regime de flexibilidade de horário”, o legislador não tinha em mente um determinado esquema preciso de distribuição das horas do período normal de trabalho, antes querendo deixar um conceito aberto, de modo a abranger qualquer regime de trabalho que se distancie dos esquemas em que a característica seja a rigidez.
T)  E tal solução impôs-se como uma necessidade para possibilitar a condição a que se refere a alínea c), ou seja, a compensação integral do respetivo período de trabalho durante o qual ocorra a suspensão para o exercício do direito de liberdade religiosa.
U) Assim, a solução encontrada pelo legislador procurou, precisa­mente, compatibilizar de forma equilibrada, os direitos em confronto, nomeadamente atendendo ao princípio da igualdade consagrado na CRP e aos direitos constitucionalmente consagrados da entidade empregadora.
V)Pretendeu-se possibilitar que o trabalhador observe as práti­cas religiosas da sua convicção, não se distingue quanto à religião, permitindo a suspensão da obrigação do trabalhador prestar traba­lho, obrigação a que se vinculou com a celebração do contrato de trabalho, mas desde que tal não redunde em oneração injustificada para o direito do empregador em ver cumprida aquela obrigação de prestação de atividade.
X) De tudo o exposto decorre, de forma inequívoca, conforme bem concluiu o douto Acórdão da Relação de Lisboa, a inexistência de qualquer inconstitucionalidade do artigo 14.° da LLR.
Termos em que deverá improceder o recurso interposto pela Re­corrente, com o que se fará inteira justiça».
Cumpre pois apreciar e decidir.

II — Fundamentação
A) Do objeto do recurso
5 — Em face dos elementos trazidos aos autos, e a partir do reque­rimento de interposição de recurso (de fls. 442 a 456, cf. supra 4.3), verifica-se que a Recorrente pretende ver apreciada por este Tribunal a constitucionalidade das normas contidas no artigo 14.°, n.° 1, da Lei da Liberdade Religiosa «ao prever requisitos cumulativos para o exer­cício de um direito fundamental constitucionalmente consagrado», considerando, do mesmo passo, inconstitucionais as suas alíneas, na interpretação que lhes foi dada pelos Tribunais a quo, invocando o desrespeito pelos artigos 13.°, 18.° e 41.° da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Estabelece o artigo 14.°, n.° 1 da Lei da Liberdade Religiosa, o se­guinte:
«Artigo 14."
Dispensa do trabalho, de aulas e de provas por motivo religioso
1 — Os funcionários e agentes do Estado e demais entidades pú­blicas, bem como os trabalhadores em regime de contrato de traba­lho, têm o direito de, a seu pedido, suspender o trabalho no dia de descanso semanal, nos dias das festividades e nos períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam, nas seguintes condições:
a)   Trabalharem em regime de flexibilidade de horário;
b)  Serem membros de igreja ou comunidade religiosa inscrita que enviou no ano anterior ao membro do Governo competente em razão da matéria a indicação dos referidos dias e períodos horários no ano em curso; 
c) Haver compensação integral do respetivo período de trabalho.».
5.1 — Para a delimitação da questão de constitucionalidade objeto do presente processo, cumpre ter em conta que, no requerimento de interposição de recurso, a Recorrente sustenta a sua posição remetendo frequentemente para a suscitação das questões de constitucionalidade já feita perante o Tribunal que proferiu a decisão ora recorrida.
Ora decorre do teor das suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (a fls. 295-329) que a Recorrente entende que «o artigo 14. " da Lei da Liberdade Religiosa, ao tentar regulamentar a dis­pensa de trabalho em dia de descanso semanal, nos dias de festividades e nos períodos horários que sejam prescritos pela religião [...] contém uma série de condições e requisitos cumulativos que não podem deixar de ser vistos como violadores da Lei Fundamental [...]» (fls. 314), conside­rando «inegável o perigo da indeterminação dos conceitos apresentados como requisitos de execução nestas três alínea e «notória a violação dos princípios constitucionais da igualdade e proporcionalidade que a precipitada interpretação dos mesmos permite» (fls. 317).
A suscitação da questão de inconstitucionalidade das várias alíneas do n.° 1 do artigo 14.° da Lei da Liberdade Religiosa é reportada à sua interpretação, «na medida em que os requisitos previstos no artigo 14." da L.L.R. constituem restrições e condicionamentos para o exercício de um direito fundamental do cidadão, têm de ser interpretados de acordo com a C.R.P. [...].
Por isto mesmo, relativamente às alíneas a) e c) estas só podem ser interpretadas no sentido do funcionário prestar trabalho efetivo; de facto, a verdade é que a nossa lei laboral não fala em regime de flexibi­lidade de horário, senão aquando das disposições sobre a maternidade. Qualquer outra interpretação e conclusão [...] é inconstitucional por flagrantemente violar o princípio da igualdade entre trabalhadores re­ligios os praticantes, impondo a não aplicação, e penalizando, portanto, o direito à liberdade religiosa da maioria dos trabalhadores — que não trabalham em regime de flexibilidade de horário.
Do mesmo modo, a compensação deste trabalho poder ter uma duração e ou penosidade semelhantes, podendo mesmo traduzir-se numa soma pecuniária, é questão cuja aplicação não pode estar na dependência de um mero juízo da entidade empregadora, sob pena de esvaziamento completo da norma e da sua proteção e eficácia.
Quanto à alínea b), por falta de densificação, não se mostra possível qualquer interpretação que respeite a Constituição, por representar um limite em desrespeito pelo princípio da proporcionalidade, ao ser exces­siva, por o artigo 35." da L.L.R. já exigir uma comunicação a efetuar para o registo nacional de pessoas coletivas — o qual é público — não ser claro quanto ao membro do Governo competente [...] e por ser excessivo o envio de uma nova declaração que já foi enviada para o registo das pessoas coletivas religiosas.
[...] Assim, por a interpretação normativa das alíneas do n. " 1 do artigo 14." da L.L.R. não ser compatível com nenhuma das exigências do princípio da proporcionalidade e do princípio da igualdade, isto é necessidade, adequação ao fim e proibição do excesso, e da discrimi­nação, são inconstitucionais estas alíneas [...]. Mesmo que assim não se entendesse, e se considerasse alguma das alíneas livre desse juízo negativo do espartilho constitucional, por os requisitos do n." 1 do artigo 14." da L.L.R. serem cumulativos, todos são afetados pela inconstitucionalidade. (cf. fls. 318-319).
5.2 — A apreciação do Tribunal Constitucional, em sede de recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.° 1 do artigo 70.° da LTC, ou seja, enquanto órgão de recurso das decisões de tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, incide assim sobre a decisão de consti­tucionalidade adotada no tribunal a quo, de que relevam as seguintes passagens:
« a alegada inconstitucionalidade do artigo 14." da Lei n." 16/2001, de 22/6:
Entende a Autora — apelante que tal disposição legal é inconsti­tucional, por violação dos princípios constitucionais da proporcio­nalidade e da igualdade.
Estamos, como é natural, perante uma questão essencial para a apreciação da justa causa de despedimento, já que foi precisamente com base na não verificação dos pressupostos estabelecidos na mesma disposição legal que a Ré considerou as ausências ao serviço da Au­tora a partir do pôr do sol de sexta-feira como faltas injustificadas e como desobediência a ordens expressas a não prestação de trabalho ao sábado.
A Ré entendeu que não se verificavam os requisitos cumulativos previstos nesse citado artigo 14.° da Lei n.° 16/2011 (que passaremos a designar por LLR), já que a Autora não tinha flexibilidade de ho­rário nem era possível a compensação integral do respetivo período de ausência, pelo que não poderia haver dispensa de prestação de trabalho.
Ao que a Autora contrapôs, logo na contestação ao articulado de motivação, a inconstitucionalidade dessa norma legal, posição que continua a sustentar no presente recurso.
Vejamos:
O direito à liberdade religiosa está expressamente consagrado no artigo 41.° da Constituição:
[...]
Como muito bem se refere na sentença recorrida, sendo um preceito constitucional relativo a um direito fundamental, a sua interpretação e integração deve ser feita de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (n.° 2 do artigo 16.° da CRP).
[...]
A declaração da ONU de 25/11/1981, citada por Júlio Gomes, in Direito do Trabalho, vol. I, Relações Individuais de Trabalho, pag. 295, sobre a eliminação de todas as formas de discriminação e intolerância fundadas na religião e nas crenças, refere, no seu artigo 6.°, a liberdade de observar os dias de repouso e de celebrar as festas e cerimónias segundo os preceitos da própria religião ou culto.
E não esquecendo, porque também aqui deverá ser o mesmo cha­mado à liça, o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.° da CRP, segundo o qual “1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”.
Assim, a todo o cidadão deverá ser reconhecida a faculdade de ter ou não ter religião, professar esta ou aquela, mudar de crença, praticá-la só ou acompanhado de outras pessoas, agrupar-se com outros crentes formando confissões ou associações de caráter religioso, etc. Nessa sua faculdade deverá estar ausente todo o tipo de coação, injustificada, exercida por qualquer pessoa ou autoridade pública.
E se o culto pode ser meramente interno, quando se confina ao pensamento e à vontade de cada individuo — e que tornará mais difícil, para não dizer impossível, a sua restrição de ordem externa, precisamente por dizer respeito ao for intimo do ser humano —, o que nos interessa para aqui será o culto externo, aquele que se manifesta externamente pelas formas mais variadas. Culto esse que poderá ser particular ou privado, quando celebrado pelos indivíduos, sós ou acompanhados, em nome próprio, ou público ou oficial, quando realizado em nome da comunidade e por ela, geralmente com a in­tervenção de ministro autorizado.
Por esse artigo 41.° da CRP dizer respeito aos direitos, liberdades e garantias, ele é diretamente aplicável, vinculando as entidades públicas e privadas (n.° 1 do artigo 18.° da CRP), só podendo a sua restrição ser feita através de lei, limitada ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, não podendo diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial daquele preceito (n.os 2 e 3 do mesmo artigo 18.°).
Pese embora a consagração, logo em 1976, na nossa Constituição, só com a designada Lei da Liberdade Religiosa — Lei n.° 16/2001 de22 de junho — é que o legislador veio concretizar, em termos de lei ordinária, estes princípios de opção religiosa, bem como os critérios de organização e funcionamento.
Entre esses princípios encontra-se, como não poderia deixar de ser, o da liberdade de religião e de culto, o qual compreende, além do mais, o direito de adesão à igreja ou comunidade religiosa que se escolher e o direito de participar na vida interna e nos ritos religiosos.
Daí o artigo 10.° da LLR dispor o seguinte:
“Á liberdade de religião e de culto compreende o direito de, de acordo com os respetivos ministros do culto e segundo as normas da igreja ou comunidade religiosa escolhida:
a) Aderir à igreja ou comunidade religiosa que escolher, participar na vida interna e nos ritos religiosos praticados em comum e receber a assistência religiosa que pedir;
b)   Celebrar casamento e ser sepultado com os ritos da própria religião;
c) Comemorar publicamente as festividades religiosas da própria religião”.
Mas ainda que a Constituição o não refira expressamente, parece-nos manifesto e indiscutível, tal como se decidiu no Ac. da Relação do Porto de 19/2/2008, in www.dgsi.pt. que a liberdade religiosa e de culto terá necessariamente de ter limites impostos pela ordem jurídica e constitucional vigentes numa comunidade civilizacional e pelos va­lores fundamentais nela consagrados e defendidos, como sejam — na comunidade em que nos inserimos — a liberdade, os direitos alheios, a ordem pública e a realização da justiça. Valores e objetivos estes que não podem ser violados ou impedidos por motivos de cariz religioso. Na verdade, os fundamentos ético-jurídicos de cariz humanista e racio­nal em que a nossa comunidade de cidadãos se alicerça não podem ser postergados por princípios e práticas religioso/as, como sejam, vg., a admissão de certas mutilações físicas ou da poligamia — cf. António Leite, Á Religião no Direito Constitucional Português in Estudos so­bre a Constituição, 1978, 2.°, p. 265 e segs. Nesta vertente ao Estado já assiste o poder/dever de, através da função jurisdicional, garantir proteção jurídica a todo aquele que vir os seus direitos ou interesses juridicamente relevantes questionados ou violados por opções, atitudes ou cultos religiosos iníquos e intoleráveis, de forma a preveni-los ou repará-los, constituindo este um direito fundamental com assento constitucional — artigo 20.°, n.° 1, da CRP.
Ou seja, não estamos, contrariamente ao que acontece com o direito à vida, perante um direito absoluto, podendo e devendo, se for o caso e dentro dos limites constitucionais, ser objeto de restrições.
É o que decorre não só do n.° 2 do artigo 18.° da CRP, mas também do artigo 6.° da LLR, onde expressamente se salvaguardou que a liberdade de religião e de culto “[...] admite as restrições necessárias para salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente prote­gidos ”- n." 1 desse artigo 6."
No particular campo das relações laborais, e com vista a encontrar o necessário equilíbrio e proporcionalidade entre esse direito de liber­dade religiosa e outros com consagração constitucional, veio reger o artigo 14.° da LRR, nos seguintes termos e que para aqui relevam:
1 — Os funcionários e agentes do estado e demais entidades públicas, bem como os trabalhadores em regime de contrato de tra­balho, têm o direito de, a seu pedido, suspender o trabalho no dia de descanso semanal, nos dias de festividade e nos períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam, nas seguintes condições:
a)   Trabalharem em regime de flexibilidade de horário;
b)   Serem membros de igreja ou comunidade religiosa inscrita que enviou no ano anterior ao membro do Governo competente em razão da matéria a indicação dos referidos dias e períodos horários no ano em curso; 
c) Haver compensação integral do respetivo período de trabalho”
[...].
Por forma a justificar a inclusão desta norma, escreveu-se, a pro­pósito desta disposição, no Projeto de Lei n.° 27/VII (disponível em http://app.parlamento.pt), que veio a dar lugar à LRR, o seguinte:
“O direito de suspender o trabalho no dia de descanso semanal, nos dias das festividades e nos períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam [...] deve compatibilizar-se com os direitos da entidade empregadora e com o princípio da igual­dade. Seguiu-se o modelo de alguns acordos italianos [artigo 17. " da Lei n. o 516, de 22 de novembro de 1988 (adventistas), artigo 4. " da Lei n." 102, de março de 1989 (comunidades hebraicas)], aplicável em regime de flexibilidade de horário. É certo que o Estado francês concede aos seus funcionários e agentes autorização de ausência por ocasião das festas próprias das confissões ou comunidades arménia, israelita ou muçulmana a que pertençam, em três dias por ano em cada caso (circular de 9 de janeiro de 1991). Mas esta solução não resolve os problemas de igualdade referidos”.
Ou seja, foi nítido propósito do legislador encontrar aquele neces­sário equilíbrio entre o direito de liberdade religiosa e os legítimos direitos da entidade empregadora, não esquecendo, como não poderia deixar de ser, o princípio constitucional da igualdade.
Citando aqui a sentença (refira-se, por ser de elementar justiça, que a mesma se encontra doutamente elaborada) “como decorre desta exposição de motivos, ao procurar salvaguardar e assegurar o direito de liberdade de consciência, de religião e de culto, a que se refere o artigo 1.°, articulando-o com o princípio da igualdade, este consagrado no art. 2, o legislador procurou nesta matéria alcançar uma solução equilibrada, no sentido de conseguir compatibilizar os direitos potencialmente em conflito, ou seja, de um lado, os do trabalhador que professa determinada religião e pretende observar o “descanso semanal”, os “dias das festividades” e os “períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam”; e, de outro lado, os da entidade empregadora, desde logo, ao livre exercício da iniciativa económica privada “nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral” [n.° 1 do artigo 61.° CRP], bem como de “Liberdade de [...] organização empresarial” [artigo 80.° al. d), da CRP], a que acrescem, como ex­pressão daqueles, os poderes que a lei ordinária lhe confere, nessa qualidade de empregador, de “estabelecer os termos em que o trabalho deve ser prestado, dentro dos limites decorrentes do contrato e das normas que o regem” [artigo 97.° do CT], e, para além de outros, os de “determinar o horário de trabalho do trabalhador, dentro dos limites da lei” [n.° 1 do artigo 212.° do CT]”.
Como corolário do seu poder de direção, ínsito à celebração do contrato de trabalho, cabe à entidade empregadora, dentro dos limites legais e da regulamentação coletiva em vigor, estabelecer o horário de trabalho, como um dos instrumentos ao seu alcance com vista a uma correta organização técnico-produtiva. Objetivo este que só numa análise muito simplista pode ser encarado como sendo do interesse exclusivo da entidade empregadora: é que uma correta gestão terá como uma das facetas decisivas a manutenção do emprego dos seus trabalhadores e a otimização das suas condições de trabalho.
O próprio estabelecimento de um horário de trabalho acarreta ine­gáveis vantagens do ponto de vista do trabalhador: para além de tal determinação ser uma exigência da proteção da vida e da integridade física e psíquica do trabalhador, definindo os espaços de repouso e lazer necessários à salvaguarda da sua integração familiar e social, permite-lhe, conhecendo-o antecipadamente, orientar a sua própria vida pessoal e familiar de harmonia com o mesmo.
E chegados aqui a resposta à questão que nos ocupa terá de ser necessariamente negativa: não se verifica a inconstitucionalidade invocada- o direito à liberdade religiosa não é um direito absoluto, estando sujeito, com já vimos, “às restrições necessárias para salva­guardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (n.° 1 do artigo 6.° da CRP).
E um dos interesses constitucionalmente protegidos é a “liberdade de [...] organização empresarial”(artigo 80.°, al. d), da CRP], inte­resse esse que não se limita, como aflorámos, ao ponto de vista do empregador- o sucesso da empresa acarretará, em condições normais, a manutenção dos contratos de trabalho dos seus trabalhadores e das condições de laboração destes e contribuirá, certamente, para o desenvolvimento da economia de um país. Por isso se entende que na base desta consagração constitucional não esteve, exclusi­vamente, a preocupação da salvaguarda dos interesses económicos do empregador.
E não se deve perder de vista que o princípio constitucional da igualdade acarreta que se trate de forma igual o que é igual e de forma desigual aquilo que se apresenta como desigual: e que, por articula­ção com o artigo 41.° da CRP, se ninguém poder ser prejudicado em função exclusivamente da sua religião ou credo, também não poderá ser beneficiado por mor das mesmas convicções, nomeadamente em confronto com outros trabalhadores de outras religiões ou sem religião alguma.
É certo que nem sempre será fácil encontrar um ponto de equilíbrio entre o direito à liberdade religiosa e os interesses tutelados da entidade empregadora. Mas certamente que o critério não poderá residir, única e exclusivamente, na circunstância de o primeiro ser um direito de caráter pessoal, como defende a apelante.
E é nosso modesto entendimento o que o referido artigo 14.° da LLR não estabelece uma desproporção entre os interesses em po­tencial conflito.
Como refere Paula Meira Lourenço, in Os Deveres de Informação no Contrato de Trabalho, REDS 2003, Ano XLIV, n.os 1 e 2, págs. 29 e ss (citada, e relacionando esse ensinamento com o artigo 14.° da LLR,por Júlio Gomes, ob. cit., pago 299, nota 803) “a atuação dos dois direitos fundamentais no direito privado não pode legitimar situações de incumprimento de obrigações, necessitando de se compaginar com a autonomia privada”.
Tal disposição veio criar digamos uma solução de compromis­so — que se não nos afigura desequilibrada — entre o direito do trabalhador em obedecer às suas convicções religiosas e em praticar o respetivo culto e o interesse empresarial do empregador, estabele­cendo as 3 condições cumulativas para que se verifique a suspensão do contrato de trabalho.» (fls. 428-verso a 432).
E, mais à frente, o Acórdão recorrido retoma a questão da constitu­cionalidade das normas contidas nas alíneas do n.° 1 do artigo 14.° da lei aplicável, dedicando especial atenção às alíneas a) e c). Deste modo:
«As dificuldades residem em saber o que quis o legislador da LLR dizer com a adoção do conceito de horário de trabalho flexível, a que se refere a alínea a) do n.° 1 do artigo 14.° de tal lei. É que este diploma legal nada diz a esse respeito.
Relembrando tudo quanto já se disse a propósito da alegada incons­titucionalidade daquela disposição legal, o que se pretendeu com esta foi harmonizar dois direitos potencialmente em conflito: o direito do trabalhador à liberdade religiosa e o direito do empregador à correta gestão dos meios humanos ao seu dispor. Sempre com a preocupação que o exercício do direito do trabalhador não acarrete, para um em­pregador, um prejuízo injustificado e desproporcionado.
Procurando a melhor interpretação para esse “regime de flexibi­lidade ”, em relação ao qual o CT de 2009 também nada define ex­pressamente, o Sr. Juiz socorre-se do que neste Código se estabelece quanto à duração e organização do tempo de trabalho, constante dos art.s 197.° a 231.°, e conclui que o legislador “não tinha em mente um determinado esquema preciso de distribuição das horas do período normal de trabalho, antes querendo deixar um conceito aberto, de modo a abranger qualquer regime de trabalho que se distancie dos esquemas em que a característica seja a fixidez. Essa solução im­pôs-se como uma necessidade para possibilitar a condição a que se refere a al. c), ou seja, a compensação integral do respetivo período de trabalho durante o qual ocorra a suspensão, para exercício do direito de liberdade religiosa. Na verdade, não se descortina a pos­sibilidade prática de assegurar a compensação por parte de alguém que trabalhe diariamente sujeito a um horário fixo”.
Concordamos em absoluto com tal asserção, tanto mais que ela vai de encontro ao que Monteiro Fernandes, in Direito do Trabalho, 12.ª edição, pág. 336, define como “horário flexível”: em que estão delimitados períodos de presença obrigatória do trabalhador, mas podendo este, com respeito por esses períodos, escolher, dentro de certas margens, as horas de entrada e saída do trabalho, e modo a cumprir o PNT [...] a que está obrigado (ex: o PNT é de 40 horas semanais; o período de presença obrigatória diária é das 10 h às 12h.30 m. e das 15 h às 17h.30 m.; o trabalhador pode, em cada dia, entrar ao serviço entre as 8 e as 10h, interromper para almoço entre as 12h30 m e as 15h, e escolher a hora de saída entre as 17h 30 m. e as 19h. 30 m.; mas terá de cumprir as 40 horas de trabalho por semana)”.
E devendo compatibilizar-se esse regime de trabalho flexível com a possibilidade de compensação prevista na alínea c) do n.° 1 do artigo 14.°, facilmente se compreende que neste exemplo dado por aquele Ilustre Autor seja mais do que viável o trabalhador compensar o período de ausência para a prática do culto religioso.
Também a sentença recorrida dá dois exemplos felizes de situações de flexibilidade de horário (os assistentes de bordo e os delegados de propagando médica). E refere que “Assim, o trabalhador prestará a sua atividade em regime de flexibilidade de horário quando, no interesse da entidade empregadora — radicado na organização do seu funcionamento, porque desse modo proporciona a obtenção da utilidade da força de trabalho à disposição daquela — tenha sido estabelecido um esquema em que aquela prestação, contendo-se nos limites legais do período normal de trabalho, possa ter hora variável de entrada e saída, dependendo tal de determinadas circunstâncias ou condições ou sendo gerido pelo trabalhador, em qualquer caso tendo em vista uma melhor eficácia da sua prestação”.
Concluindo, temos que o trabalhador, em ordem a ver observado o direito consagrado no artigo 14.° da LLR, e assim poder professar, com toda a sua amplitude, a sua confissão religiosa, terá que estar sujeito a um regime de flexibilidade de horário [al. a)], exigindo-se, cumulativamente, que proceda à “compensação integral do respetivo período de trabalho” [al. b)] que deixou de prestar para poder come­morar as festividades ou observar o período de culto prescritos por aquela confissão. (Cfr. fls. 435 e ss).


Tendo sido a partir desta interpretação que o Tribunal a quo reitera a decisão de 1 .ª instância, considerando que a situação da ora recorrente (trabalho por turnos rotativos) não se enquadra na interpretação nor­mativa das alíneas a) e c) do n.° 1 do artigo 14.°, pelo que não teve por verificados os requisitos cumulativos dessa disposição legal com vista ao exercício do direito de suspensão dos deveres laborais da recorrente nos períodos horários ditados pela confissão professada. A dimensão normativa conferidas àquelas alíneas assenta no conceito de trabalho flexível (de horário flexível), reportado pelo Tribunal às situações em que que estão delimitados períodos de presença obrigatória do trabalhador, mas podendo este, com respeito por esses períodos, escolher, dentro de certas margens, as horas de entrada e saída do trabalho, de modo a cumprir o período normal de trabalho, socorrendo-se também da sentença de 1 .ª instância quando considera contempladas as situações em que «no interesse da entidade empregadora — radicado na organização do seu funcionamento, porque desse modo proporciona a obtenção da utilidade da força de trabalho à disposição daquela — tenha sido estabelecido um esquema em que aquela prestação, contendo-se nos limites legais do período normal de trabalho, possa ter hora variável de entrada e saída, dependendo tal de determinadas circunstâncias ou condições ou sendo gerido pelo trabalhador, em qualquer caso tendo em vista uma melhor eficácia da sua prestação», assim se possibilitando a compensação integral do respetivo período de trabalho, tal como previsto na alínea c) do preceito legal em causa.
5.3 — Afastado, pelo Tribunal recorrido, qualquer juízo de censura às normas (interpretações normativas) aplicadas, na medida em que, como se viu, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/12/2011 não sufraga o sustentado pela recorrente quanto à alegada violação da garantia de liberdade religiosa (artigo 41,°, CRP), do respetivo regime (artigo 18.°, n.° 1) e, bem assim, dos princípios da igualdade (artigo 13.°) e da proporcionalidade (artigo 1 8.°, n.° 2), cumpre apreciar as questões de constitucionalidade oportunamente suscitadas, tendo por parâmetro normativo as pertinentes disposições da Constituição.
Fica ainda clarificado que, em face da natureza do recurso interposto para este Tribunal, não pode relevar autonomamente a invocação do disposto no artigo 8.° (e 16.°), da CRP, cujo alegado desrespeito só poderia ser aferido de forma indireta, por via da alegada desconfor­midade das normas legais em causa com princípios e normas de fonte internacional — que não cabe aqui sindicar.
B) Do mérito
6 — Deste modo, atentemos primeiramente no direito fundamental cujo desrespeito motiva o presente recurso — a liberdade de religião, prevista no artigo 41.° da Constituição da República Portuguesa («Li­berdade de consciência, de religião e de culto»), no qual se dispõe:
«1A liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável.
2 — Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções ou prática religiosa.
3 — Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder.
4 — As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.
5 — É garantida a liberdade de ensino de qualquer religião pra­ticada no âmbito da respetiva confissão, bem como a utilização de meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas atividades.
6— É garantido o direito à objeção de consciência, no termos da lei.»
Para além da sua consagração constitucional, a liberdade de reli­gião não deixa de ter expressivo acolhimento no ordenamento jurídico internacional, universal e regional, enquanto direito do Homem, e no ordenamento jurídico da União Europeia no respetivo catálogo de direitos fundamentais — a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) —, hoje beneficiando da força vinculativa do direito originário da União Europeia (artigo 6.°/1 do Tratado da União Europeia).
Desde logo, a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ado­tada na Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948) estabelece, no seu artigo 18.°, que
«Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciên­cia e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.»
Também no seu artigo 18.°, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos expressamente tutela a liberdade religiosa, e fá-lo nos seguintes termos:
«1Toda e qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensa­mento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adotar uma religião ou uma convicção da sua escolha, bem como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convic­ção, individualmente ou conjuntamente com outros, tanto em público como em privado, pelo culto, cumprimento dos ritos, as práticas e o ensino.
2 — Ninguém será objeto de pressões que atentem à sua liberdade de ter ou de adotar uma religião ou uma convicção da sua escolha.
3 — A liberdade de manifestar a sua religião ou as suas convicções só pode ser objeto de restrições previstas na lei e que sejam neces­sárias à proteção de segurança, da ordem e da saúde públicas ou da moral e das liberdades e direitos fundamentais de outrem.
4 — Os Estados Partes no presente Pacto comprometem-se a res­peitar a liberdade dos pais e, em caso disso, dos tutores legais a fazerem assegurar a educação religiosa e moral dos seus filhos e pupilos, em conformidade com as suas próprias convicções.»
Em 1981, foi adotada na Assembleia Geral das Nações Unidas a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e de Discriminação Baseadas na Religião ou na Crença (Resolução n.° 36/55, de 25 de novembro de 1981), na qual se proclama:
«ARTIGO I
§1.  Toda pessoa tem o direito de liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Este direito inclui a liberdade de ter uma religião ou qualquer convicção a sua escolha, assim como a liber­dade de manifestar sua religião ou suas convicções individuais ou coletivamente, tanto em público como em privado, mediante o culto, a observância, a prática e o ensino.
§2.Ninguém será objeto de coação capaz de limitar a sua liberdade de ter uma religião ou convicções de sua escolha.
3. A liberdade de manifestar a própria religião ou as próprias convicções estará sujeita unicamente às limitações prescritas na lei e que sejam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral pública ou os direitos e liberdades fundamentais dos demais.
[...]
ARTIGO VI
Conforme o “artigo 1.º” da presente Declaração e sem prejuízo do disposto no “§3 do artigo 1.º”, o direito à liberdade de pensa­mento, de consciência, de religião ou de convicções compreenderá especialmente as seguintes liberdades:
a)   A de praticar o culto e o de celebrar reuniões sobre a religião ou as convicções, e de fundar e manter lugares para esses fins.
b)   A de fundar e manter instituições de beneficência ou humani­tárias adequadas.
c)   A de confecionar, adquirir e utilizar em quantidade suficiente os artigos e materiais necessários para os ritos e costumes de uma religião ou convicção.
d)   A de escrever, publicar e difundir publicações pertinentes a essas esferas.
e)      A de ensinar a religião ou as convicções em lugares aptos para esses fins.
f)       A de solicitar e receber contribuições voluntárias financeiras e de outro tipo de particulares e instituições;
g)   A de capacitar, nomear, eleger e designar por sucessão os di­rigentes que correspondam segundo as necessidades e normas de qualquer religião ou convicção.
h)  A de observar dias de descanso e de comemorar festividades e ce­rimónias de acordo com os preceitos de uma religião ou convicção.
i) A de estabelecer e manter comunicações com indivíduos e comu­nidades sobre questões de religião ou convicções no âmbito nacional ou internacional.»
Refira-se ainda a Declaração das Nações Unidas Sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas, aprovada pela Resolução 47/135 da Assembleia Geral, de 18 de dezembro de 1992, de que releva o artigo 2.°:
«Artigo 2.º
1 — As pessoas pertencentes a minorias nacionais ou étnicas, reli­giosas e linguísticas (doravante denominadas “pessoas pertencentes a minorias”) têm o direito de fruir a sua própria cultura, de professar e praticar a sua própria religião, e de utilizar a sua própria língua,
 em privado e em público, livremente e sem interferência ou qualquer forma de discriminação.
2 — As pessoas pertencentes a minorias têm o direito de parti­cipar efetivamente na vida cultural, religiosa, social, económica e pública.
3 — As pessoas pertencentes a minorias têm o direito de participar efetivamente nas decisões adotadas a nível nacional e, sendo caso disso, a nível regional, respeitantes às minorias a que pertencem ou às regiões em que vivem, de forma que não seja incompatível com a legislação nacional.
4 — As pessoas pertencentes a minorias têm o direito de criar e de manter as suas próprias associações.
5 — As pessoas pertencentes a minorias têm o direito de estabelecer e de manter, sem qualquer discriminação, contactos livres e pacíficos com os restantes membros do seu grupo e com pessoas pertencentes a outras minorias, bem como contactos transfronteiriços com cidadãos de outros Estados com os quais tenham vínculos nacionais ou étnicos, religiosos ou linguísticos.»
No seio do Conselho da Europa, prevê expressamente a Convenção Eu­ropeia dos Direitos do Homem (CEDH), de 4 de novembro (1950) que:
«Artigo 9.°
(Liberdade de pensamento, de consciência e de religião)
1 — Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de crença, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua crença, individual ou coletivamente, em pú­blico e em privado, por meio do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos.
2 — A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, in­dividual ou coletivamente, não pode ser objeto de outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à protecão da ordem, da saúde e moral públicas, ou à proteção dos direitos e li­berdades de outrem.»
Também no âmbito do Conselho da Europa prevê a Conven­ção — Quadro para a Proteção das Minorias Nacionais de 1 de fevereiro de 1995 que:
«Artigo 7.°
As Partes assegurarão o respeito pelos direitos de qualquer pessoa pertencente a uma minoria nacional à liberdade pacífica, liberdade de associação, liberdade de expressão e liberdade de pensamento, consciência e religião.
«Artigo 8.°
As partes comprometem-se a reconhecer a qualquer pessoa perten­cente a uma minoria nacional o direito de manifestar a sua religião ou convicção, bem como o direito de criar instituições religiosas, organizações e associações.»
Também a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia consagra a liberdade religiosa como direito fundamental de todas as pessoas (que não apenas os cidadãos europeus):
«Artigo 10.°
Liberdade de pensamento, de consciência e de religião
1 — Todas as pessoas têm direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, bem como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individual ou coletivamente, em público ou em privado, através do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos.
2 — O direito à objeção de consciência é reconhecido pelas legis­lações nacionais que regem o respetivo exercício
7 — Partamos do artigo 41.° da Constituição da República Portuguesa (sob a epígrafe «Liberdade de consciência, de religião e de culto»), o qual garante a liberdade de consciência, religião e culto, enquanto direito fundamental.
É que a invocação da ofensa à liberdade de religião — alegadamente operada neste caso pelo disposto no artigo 14.°, n.° 1, da Lei da Liber­dade Religiosa — coloca o juiz constitucional perante um dos núcleos mais relevantes dos direitos fundamentais, desde logo resultante da sua expressiva valoração constitucional no artigo 41.° da Lei Fundamental como direito inviolável (adjetivo que, como assinalam Jorge Miranda e Pedro Garcia Marques, na anotação ao artigo 41.° da Constituição, in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, Wolters Kluwer Portugal/Coimbra Editora, Coimbra, 2010,p. 893, «apenas se encontra também no artigo 24.° sobre o direito à vida e no artigo 25.° sobre a integridade física e moral»).
Colocada a par da liberdade de consciência e da liberdade de culto (cf. artigo 41.°, n.° 1, CRP), a liberdade de religião forma com a primeira um núcleo de direitos pessoais garantidos pela Constituição, mesmo em caso de estado de exceção constitucional (artigo 19.°, n.° 6). Para além dos elementos confluentes entre as três liberdades, pode autonomizar­-se a liberdade que nos ocupa. Escrevem Jorge Miranda e Pedro Garcia Marques (ainda na anotação ao artigo 41.° da Constituição, in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, cit., loc. cit.) que «conquanto seja direito ou complexo de direitos que possa, de certo prisma, configurar-se unitariamente, importa deslindar.
A liberdade de consciência — indissociável da liberdade de pensa­mento — é a liberdade de formar a consciência, de decidir em cons­ciência e de agir em consciência. E revela-se mais ampla do que a liberdade de religião, pois tem por objeto tanto as crenças religiosas como quaisquer convicções morais e filosóficas.
Em contrapartida, ela só diz respeito ao foro individual, ao passo que a liberdade de religião possui uma forte dimensão coletiva e insti­tucional, traduzida na liberdade das confissões religiosas.
Quanto à liberdade de culto, não é senão uma das componentes da liberdade de religião.».
De todo o modo, a invocação de imperativos religiosos para a deter­minação da conduta do crente nas suas obrigações laborais não deixa de convocar as várias liberdades tuteladas pelo artigo 41.°, da Constituição. Com efeito, estamos perante direitos conexos, como assinala a doutrina: «[...] este preceito reconhece não um mas três direitos distintos, embora conexos, já que o segundo é uma especificação do primeiro, sendo o terceiro uma especificação do segundo. » (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, cit., p. 609).
Assim, a jusante, a liberdade de culto, de participação individual ou coletiva em atos cultuais, como as liturgias, a oração ou a meditação, religiosamente motivada, no período temporal determinado pela religião professada. Corresponderá a final ao próprio exercício da liberdade religiosa, no sentido de «liberdade de praticar as cerimónias e ritos da religião, tanto em público como em privado» (Raquel Tavares dos Reis, Liberdade de Consciência e de Religião e Contrato de Trabalho do Tra­balhador de Tendência — que equilíbrio do ponto de vista das relações individuais de trabalho?, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 88).
A montante, a liberdade de consciência, não apenas tomada como liberdade de formação das próprias convicções (religiosas ou outras), mas também, e para o que aqui releva, como a «liberdade de agir, seja por ação, seja por omissão, de acordo com a consciência. Aqui o in­divíduo atua de determinado modo, por se considerar vinculado a um dever imposto por um imperativo de consciência» (Cfr. Jorge Miranda e Pedro Garcia Marques, in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, cit., p. 896), o que se reveste de especial acuidade «quando o indivíduo, ao atuar de acordo com a consciência assume uma posição de objeção ao cumprimento de imposi­ção constitucional ou legal por se entender vinculado a um impreterível imperativo imposto pela sua consciência» (idem).
A liberdade de consciência, enquanto liberdade forte (na expressão de José Lamego, Sociedade Aberta e Liberdade de Consciência — O Direito Fundamental de Liberdade de Consciência, Edição AAFDL, Lisboa, 1985, pp. 68-69), não significa apenas proteção do “fórum interno”, «significa também liberdade de agir segundo a consciência implicando a estruturação dos sistemas de decisão segundo um modelo de “socie­dade aberta”, não fundada em qualquer visão do mundo particular, mas onde as decisões sejam legitimadas numa perspetiva de universalismo e criticismo, que postulam como únicos conteúdos axiologicamente necessários ao sistema político a salvaguarda da liberdade e autonomia individuais» (Cfr. José Lamego, ob. cit., p. 71).
Pode aqui relevar-se que os fundamentos de um direito fundamental geral à objeção de consciência — não confinado à objeção de cons­ciência ao serviço militar (artigos 41.°, n.° 6 e 276.°, n.° 4, CRP) e, seguramente, não apenas ditado por convicções religiosas, mas também políticas, filosóficas ou ideológicas — derivam do reconhecimento e respeito pela dignidade da pessoa, na formação da sua integridade moral. Foi essa a perspetiva defendida por José de Sousa Brito (cf. voto de vencido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 681/95 — também no Acórdão n.° 5/96), e assim desenvolvida nos (votos de vencido nos) acórdãos agora citados:
«Ora, se o reconhecimento do direito à objeção de consciência na Constituição implica a distinção entre os casos em que o direito é reconhecido e aqueles em que não é, esse reconhecimento não se faz em função dos fundamentos invocados para a objeção, mas sim em função do caráter fundamental da mesma. Com efeito, o direito à objeção de consciência decorre da basilar dignidade da pessoa humana


24402                                      Diário da República, 2. ª série — N. º 183 — 23 de setembro de 2014


(artigo 1.° da Constituição) apenas quando o não reconhecimento do imperativo de consciência implica a violação da integridade moral da pessoa, que a Constituição considera inviolável (artigo 25.°, n.° 1). Não se trata, portanto, do conflito entre a vontade da minoria e a vontade da maioria, que é interno ao princípio democrático, e que se resolve, sem prejuízo do pluralismo de expressão e de organização política democráticas, pelo dever geral de obediência à lei, a que estão subordinadas as minorias. Trata-se do conflito entre os dois princípios basilares da Constituição, o da vontade popular e o da dignidade da pessoa humana, que se verifica quando a lei democrática entra em conflito com a norma estruturante da integridade moral da pessoa, que se considera ditada pela consciência individual.
Ora o caráter estruturante da integridade moral não depende da conformidade com o conteúdo da Constituição e das leis, mas da formação da personalidade individual. A Constituição reconhece o direito de objeção de consciência ao “fundamentalista”, religioso ou outro, não por causa da compatibilidade constitucional das normas que ele invoca, mas por considerar estas estruturantes da sua inte­gridade moral. Este fundamento do direito à objeção de consciência não impede que esteja sujeito às restrições aos direitos fundamentais permitidas pela Constituição (artigo 18.°).»
Há, pois, pontos de contacto entre esta vertente externa da liberdade de consciência (liberdade de agir em consciência) e a invocação da liberdade de religião manifestada no direito de guarda (por exemplo, ao sábado) em respeito pelos ditames religiosos aqui entendidos como imperativos de consciência.
Deste contacto parecem sair reforçadas as posições tuteladas pela liberdade religiosa, aqui traduzida no direito de observância dos dias de culto ou de guarda determinados pela religião professada, pese embora a tutela da liberdade de consciência não se confinar às convicções do foro religioso. Escreve Jónatas Machado («A Jurisprudência Constitucional Portuguesa Diante das Ameaças à Liberdade Religiosa», cit., nota 110, pp. 108-109):
«Em nosso entender, a construção da liberdade de consciência a partir da ideia de integridade moral do indivíduo tem o mérito de estender a proteção da consciência à objeção de caráter não religioso. No entanto, a mesma pode suscitar questões difíceis, como no caso de duas pessoas que objetam ao trabalho ao sábado, sendo porque uma o faz porque em consciência acredita que o fim de semana deve ser inteiramente dedicado à família, ao passo que outra o faz porque considera que o sábado é um dia sagrado reservado ao culto. A avaliar pela jurisprudência constitucional nacional, nem razões autónomas, nem razões teónomas podem legitimar um direito absoluto à objeção de consciência insuscetível de ponderação com outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.».
8 — Cumpre agora, e sem prejuízo do que fica exposto, enquadrar o direito invocado na liberdade de religião — cuja alegada violação motiva o presente recurso de constitucionalidade.
8.1 — Numa aproximação à tutela conferida pela Constituição por­tuguesa à liberdade de religião podem assinalar-se as várias dimensões associadas a este direito, negativas e positivas, individuais, coletivas e institucionais, subjetivas e objetivas. Comecemos pela dupla vertente negativa e positiva da liberdade religiosa.
8.1.1 — Sobressai do artigo 41.° da Constituição a vertente garan­tística deste direito fundamental, colocado, como já se disse, a par da liberdade de consciência e da liberdade de culto, protegido de ingerências que o possam afetar — sendo pois vedado ao Estado impor ou proibir o professar de uma crença —, e estendendo-se a proteção constitucional da liberdade religiosa ao dever de o Estado garantir as condições para que a liberdade seja exercida, permitindo ou propiciando «a quem seguir uma determinada religião o cumprimento dos deveres que dela decorrem» (Jorge Miranda e Pedro Garcia Marques, ob. cit., p. 909).
Esta dupla dimensão — negativa e positiva — da liberdade de religião mereceu entre nós desenvolvimento jurisprudencial, socorrendo-nos das seguintes passagens do Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 423/87, pese embora centrado em questão diversa da que nos ocupa — o ensino da religião e moral católicas na escola pública:
«[...] A liberdade de religião traduz-se na liberdade de adotar ou não uma religião, de escolher uma determinada religião, de fazer proselitismo num sentido ou noutro, de não prejudicado por qualquer posição ou atitude religiosa ou antirreligiosa.
[...]
Para além de um esquema de separação aparentemente rígido, a Constituição consagra também a garantia da igualdade da capacidade jurídica, civil e política, independentemente das convicções ou prática religiosas (artigo 13.°, n.° 2, e 41.°, n.° 2).
Como corolário do regime de separação apresentam-se os princípios da não confessionalidade do Estado e da liberdade de organização eindependência das igrejas e confissões religiosas. E em matéria de ensino, aquela que especialmente importa ter presente, afirma-se a não confessionalidade do ensino público.
[...]
[...] a conceção da liberdade religiosa com um mero conteúdo formal, entendida como esfera de autonomia frente ao Estado e re­duzida ao livre jogo da espontaneidade social, parece não satisfazer, por insuficiência, as consciências dos nossos dias.
Porque a dimensão real da liberdade, de todas as liberdades, e por isso também da liberdade religiosa, depende fundamentalmente das situações sociais que permitem ou impedem o seu desfrute existencial como opções reais, a questão deve centrar-se na transformação do conceito de liberdade autonomia em liberdade situação, isto é, no significado positivo de liberdade enquanto poder concreto de realizar determinados fins que constituem o seu objeto, não só pela remoção dos entraves que impedem o seu exercício como também pela presta­ção positiva das condições e meios indispensáveis à realização (cf. A. Fernandez-Miranda Campoamor, «Estado laico y libertad religiosa», Revista de Estúdios Políticos, n.° 6, p. 68).
Contudo, se a liberdade religiosa deve entender-se não como uma mera independência, mas como uma autêntica situação social, a se­paração e a não confessionalidade implicam a neutralidade religiosa do Estado, mas não já o seu desconhecimento do facto religioso enquanto facto social. O Estado não é um ente alheio aos valores e interesses da sociedade, antes constitui um instrumento ao seu serviço, assumindo a obrigação de garantir a formação e o desenvolvimento livre das consciências (católicas ou ateias) e assume esta obrigação em função da procura social.
[...]
Não se trata de proteger ou privilegiar uma qualquer confissão re­ligiosa, mas sim de garantir o efetivo exercício da liberdade religiosa, como consequência de uma situação e de uma exigência social.»
A mesma linha de argumentação foi retomada no Acórdão 174/93, aí se defendendo que:
«[...] O artigo 41.°, n.° 1, da Constituição consagra a liberdade de religião como um direito fundamental do cidadão, a qual se caracteriza como a liberdade de ter uma religião, de escolher uma determinada religião e de a praticar só ou acompanhado por outras pessoas, de mudar de religião e de não aderir a religião alguma (cf. J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1984, p. 250; António Leite, A Religião no Direito Constitucional Português, in Estudos sobre a Constituição, Vol. II, Lisboa, Petrony, 1978, p. 265 ss.; José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 9.ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 1992, p. 226; e Luis Vicente Cantín, Naturaleza, Contenido y Extensión del Derecho de Libertad Reli­giosa, Madrid, Civitas, 1990, p. 18).
A liberdade de religião comporta simultaneamente uma dimen­são negativa e uma dimensão positiva (cf. Jorge Miranda, Direitos Fundamentais — Liberdade Religiosa e Liberdade de Aprender e Ensinar, in Direito e Justiça, Vol. III, 1987-198 8, p. 50).
Na primeira dimensão, a liberdade de religião implica uma su­peração do poder que o príncipe detinha de definir a religião dos súbditos, de acordo com a máxima “cuius regio eius religio ”, a qual constituía uma característica do Estado absolutista dos séculos XVII e XVIII (cf. Reinhold Zippelius, Teoria Geral do Estado, trad. por­tuguesa, Lisboa, 1974, p. 136), e caracteriza-se, acima de tudo, por uma “imunidade de coação”, no sentido de que nenhuma entidade pública ou privada pode impor a outrem a adesão e a prática de uma qualquer religião.
Na sua componente negativa, a liberdade religiosa garante ao ci­dadão uma “esfera de autonomia frente ao “Estado” e implica que este não pode arrogar-se o direito de impor ou de impedir a profissão e a prática em público da religião de uma pessoa ou de uma comu­nidade.
Da garantia constitucional da liberdade de religião decorre que o Estado deve assumir-se, em matéria religiosa, como um Estado neu­tral (princípio da separação entre as igrejas e o Estado — artigo 41.°, n.° 4, da Constituição). Aquele não pode arvorar-se em Estado dou­trinal, nem atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura de acordo com diretrizes religiosas (artigo 43.°, n.° 2, da Lei Fun­damental) ou de organizar e manter um ensino público confessional (princípio da não confessionalidade do ensino público — artigo 43.°, n.° 3, da Constituição). Com efeito, qualquer forma de dirigismo cultural fere o bem comum e mina os alicerces do Estado de direito. O Estado não pode, pois, impor aos cidadãos quaisquer formas de conceção do homem, do mundo e da vida.
O facto, porém, de o Estado dever observar quanto às igrejas uma regra de separação e, quanto ao ensino público, uma postura de a — confessionalidade não significa que ele não possa — e de­va — colaborar com as igrejas na ministração de ensino religioso nas escolas públicas.
A circunstância de o Estado ser um Estado não confessional (prin­cípio da laicidade) não implica que este, sob pena de vestir a roupa­gem de um Estado doutrinal, haja de ser um Estado agnóstico ou de professar o ateísmo ou o laicismo. O Estado não confessional deve respeitar a liberdade religiosa dos cidadãos. Mas ele só respeita esta liberdade se criar as condições para que os cidadãos crentes possam observar os seus deveres religiosos — permitindo-lhes o exercício do direito de viverem na realidade temporal segundo a própria fé e de regularem as relações sociais de acordo com a sua visão da vida e em conformidade com a escala de valores que para eles resulta da fé professada (cf. Guiseppe Dalla Torre, La Questione Scolastica nei Rapportifra Stato e Chiesa, 2.ª ed., Bologna, Pàtron Editore, 1989, p. 79) — e as confissões religiosas possam cumprir a sua missão.
Significa isto que a liberdade religiosa, enquanto dimensão da liberdade de consciência (artigo 41.°, n.° 1, da Constituição), assume também, como já foi referido, um valor positivo, requerendo do Estado não uma pura atitude omissiva, uma abstenção, um non facere, mas um facere, traduzido num dever de assegurar ou propiciar o exercício da religião. Como vincou este Tribunal no seu Acórdão n.° 423/87, “... a conceção da liberdade religiosa com um mero conteúdo formal, entendida como esfera de autonomia frente ao Estado e reduzida ao livre jogo da espontaneidade social, parece não satisfazer, por insu­ficiência, as consciências dos nossos dias. Porque a dimensão real da liberdade, de todas as liberdades e por isso também da liberdade religiosa, depende fundamentalmente das situações sociais que per­mitem ou impedem o seu desfrute existencial como opções reais, a questão deve centrar-se na transformação do conceito de liberdade autonomia em liberdade situação, isto é, no significado positivo de liberdade enquanto poder concreto de realizar determinados fins que constituem o seu objeto, não só pela remoção dos entraves que impedem o seu exercício, como também pela prestação positiva das condições e meios indispensáveis à sua realização [cf. A. Fernan­dez — Miranda Campoamor, Estado Laico y Libertad Religiosa, in Revista de Estudios Politicos, 6 (1978), p. 68]”.»
Como refere Jónatas Machado a este propósito, «o Tribunal Constitu­cional sublinhou a noção de que, do ponto de vista estrutural, o direito à liberdade religiosa comporta uma dimensão negativa, de abstenção e defesa perante o Estado, a par de uma dimensão positiva, de natu­reza prestacional e regulatória» (Cfr. «A Jurisprudência Constitucional Portuguesa Diante das Ameaças à Liberdade Religiosa», in Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXXXXII, Coimbra, 2006, p. 110).
8.1.2 — Para além destas dimensões, é ainda de assinalar as dimensões individual, coletiva e institucional da liberdade religiosa, relevando, neste caso, a primeira. Daqui decorre, fundamentalmente, que a tutela constitucional desta liberdade comporta não apenas o seu exercício individual como coletivo, aqui se compreendendo a dimensão institu­cional dos direitos das igrejas e confissões religiosas. Acompanha-se Gomes Canotilho e Vital Moreira na análise destas dimensões à luz da Constituição portuguesa (anotação ao artigo 41.° da CRP, Constitui­ção da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 611), quando, detalhadamente, consideram que «a liberdade religiosa engloba, no seu âmbito normativo, direitos individuais e direitos coletivos de liberdade religiosa [...]. Os direitos individuais relacionam-se com as dimensões negativas (ter, não ter, deixar de ter religião, escolher, manter ou abandonar a religião). Mas, o leque de direitos integradores da liberdade religiosa individual é mais amplo pois inclui o direito de informar e ser informado sobre a religião, o direito de transmitir a religião a outras pessoas, o direito de produzir obras científicas, literárias e artísticas em matéria de reli­gião, o direito de proceder ou não em conformidade com as normas da respetiva religião sem proibições nem imposições oficiais, o direito de escolher para os filhos nomes com referência à religião professada, o direito de expressar externamente as crenças religiosas [...], o direito de educar os filhos de acordo com a sua religião, o direito de se casar segundo os ritos religiosos [...].
Por sua vez, os direitos coletivos de liberdade religiosa, cujos titu­lares são as igrejas e outras confissões religiosas (e ainda as pessoas coletivas por elas criadas) incluem o direito à auto-organização (...), o direito à autodeterminação [...] e o direito à organização do culto e à assistência religiosa dos crentes [...]. Como direito coletivo, aponta­-se ainda o direito ao ensino religioso escolar pelas várias religiões, mesmo em espaços escolares públicos, e o direito à utilização dos meios de comunicação próprios nos serviços públicos de televisão e de radiodifusão [...].»
8.1.3 — Podemos, por fim, distinguir uma dimensão objetiva e uma dimensão subjetiva da liberdade religiosa, relevando nesta última as dimensões internas e externas do próprio direito.
Em termos objetivos, por um lado, a Constituição exige dos poderes públicos a neutralidade em matéria religiosa, num Estado laico e não confessional, com expressão no princípio da separação entre as igrejas e outras comunidades religiosas e o Estado (artigo 41.°, n.° 4), sendo que, por outro lado, uma leitura não rígida desse princípio pode «proteger uma robusta presença do fenómeno religioso na esfera pública, sem oficializar qualquer confissão religiosa nem pôr em causa os princípios básicos do Estado Constitucional» (Jónatas Machado, «a Jurisprudência Constitucional Portuguesa Diante das Ameaças à Liberdade Religiosa», cit. p. 133). Aqui se compreende o reconhecimento da religião — das religiões — e da sua importância social., como sublinhado na seguinte passagem do Acórdão n.° 174/93:
«Com efeito, o Estado não pode fechar os olhos à dimensão social do fenómeno religioso (cf. Juan Calvo Otero, La Mencion Especifica de la Iglesia Catolica en la Constitucion Española, in E. Garcia de Enterria/L. Sanchez Agesta e outros, El Desarollo de la Constitucion Española de 1978, Zaragoza, Pórtico, 1982, p. 152). Ultrapassada, no nosso país, a fase em que a separação entre o Estado e a Igreja significou um viver de costas voltadas e reconhecida que foi a neces­sidade de cooperação entre aquelas duas entidades, já que o crente é, simultaneamente, um cidadão, as necessidades religiosas converte­ram-se num bem jurídico que ao Estado cabe garantir e a liberdade religiosa, em critério básico orientador da ação dos poderes públicos face ao fenómeno religioso.»
Na sua vertente subjetiva, a liberdade de religião é consagrada como direito fundamental, na parte dedicada no texto constitucional aos di­reitos, liberdades e garantias, precisamente no artigo 41.°, da Consti­tuição.
Beneficia, enquanto liberdade forte, do regime material dos direitos, liberdades e garantias, previsto no artigo 18.° da Constituição, daqui resultando a aplicabilidade direta do artigo 41.° e a vinculação das entida­des públicas e privadas à liberdade religiosa (artigo 18.°/1), e, bem assim, a observância de um regime restritivo e garantístico quanto às restrições eventualmente operadas pelo legislador — e a este, em qualquer caso, reservadas (artigo 1 8.°/2 e 3). Especialmente forte, sublinhamos nós, pois insuscetível de afetação (vg. suspensão) em caso de declaração do estado de sítio ou de emergência (artigo 19.°/6, também da CRP).
Nesta vertente subjetiva releva a dupla dimensão do direito fundamen­tal à liberdade religiosa: interna e externa. A primeira garante um es­paço de autonomia individual — reservado, íntimo, pessoalíssimo — de crenças, decorrente da dignidade da pessoa humana (artigo 1.°) e ainda associado à liberdade de pensamento e ao desenvolvimento da personali­dade, livre das ingerências dos poderes públicos e da coação de terceiros, inviolável na terminologia constitucional. A segunda faculta às pessoas o direito de agir em função dessas convicções e crenças, em liberdade, perante os poderes públicos e os outros e a possibilidade de exercício, também em liberdade, das atividades que correspondam a manifestações e expressões da religião professada, como o direito de culto, a reunião e manifestação pública com fins religiosos, o ensino confessional ou a divulgação da religião, mesmo com finalidades prosélitas.
Assim, na síntese feita por Manuel Pires («Liberdade Religiosa e Benefícios Fiscais», in Liberdade Religiosa — Realidades e Perspe­tivas, Centro de Estudos de Direito Canónico, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 1999, pp. 119-147, p. 123): «a liberdade religiosa traduz-se “no direito de toda a pessoa humana ao livre exercício da religião, segundo as exigências da sua consciência” (maneira positiva) ou “é a ausência de qualquer coação externa nas relações pessoais com Deus, que a consciência reivindica” (maneira negativa). E, por último, a liberdade religiosa implica [...] a autonomia do indivíduo não ad intra — “o Homem não está livre de obrigações no domínio das questões religiosas” — mas ad extra — “a sua liberdade é lesada quando ele não pode obedecer às exigências da sua consciência em matéria religiosa”».
8.2 — A questão de constitucionalidade objeto do presente recurso prende-se essencialmente com a última dimensão assinalada do direito fundamental à liberdade religiosa. Com efeito, é invocado o direito de exercício do culto e o direito de guarda imposto pela religião professada pela Recorrente, in casu, desde o pôr do sol de sexta-feira até ao pôr do sol de sábado, de modo a justificar a não permanência no local de trabalho nesse período. A decisão recorrida expressamente afirma que «como resultou provado, no período compreendido entre 1 de janeiro de 2009 e 31 de dezembro de 2009, quando o turno às sextas-feiras se iniciava à tarde e tinha o seu termo à noite, a Autora ausentava-se do trabalho, assim que atingia a hora do pôr do sol, perfazendo o somatório dos períodos de ausência de cada um desses dias o total de 65 horas e 53 minutos.».
Nesta dimensão externa, no exercício do direito de agir em conformi­dade com as convicções religiosas, a liberdade religiosa conflitua com os deveres decorrentes da situação laboral da Recorrente, temporalmente os períodos de observância dos deveres de assiduidade e prestação do trabalho com os períodos de guarda para o exercício da religião.
Em face da invocação da liberdade de religião e de crenças — e dos imperativos por estas ditados — conflituantes com outras obrigações, em especial as contratualmente assumidas no domínio laboral, pronun­ciaram-se já a Comissão e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Considerando a jurisprudência produzida por estas instâncias internacio­nais, a partir de situações diversas mas que resultaram na demissão ou despedimento de trabalhadores que invocaram o seu direito à liberdade de religião para justificar a ausência do local de trabalho em dias ou períodos reservados pela religião professada ao seu culto, resulta que a proteção conferida pelo artigo 9.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem tem sido essencialmente entendida como a proibição de despedimentos ou demissões fundados em razões religiosas.
Com efeito, para a Comissão Europeia dos Direitos do Homem, a proteção conferida pelo artigo 9.° da Convenção não é de molde a excluir a responsabilidade contratual — no domínio laboral — do tra­balhador que justifica o incumprimento das suas obrigações com base no exercício do direito à liberdade religiosa. No caso Tuomo Konttinen v. Finlândia (n.° 24949/94), um funcionário dos Caminhos de Ferro Estatais finlandeses (Finnish State Railways) que passou a professar a religião Adventista do Sétimo Dia foi demitido por se ter recusado a prestar trabalho às sextas-feiras a partir do pôr do sol, invocando um conflito com as obrigações decorrentes da religião professada que deter­mina a guarda do Sabbath (o sábado, entendido como o período desde o pôr do sol de sexta-feira até ao pôr do sol de sábado) para os crentes. A Comissão decidiu, em 3/12/1996, que a alegação do exercício do direito de liberdade religiosa não habilitava a justificação do incumprimento das obrigações laborais, sublinhando que o âmbito de proteção do artigo 9.° da CEDH primariamente se dirige à esfera das convicções pessoais e crenças religiosas, só adicionalmente protegendo os atos intimamente ligados com essas atitudes, como, por exemplo, os atos de culto ou devoção que respeitem à prática de uma religião ou crença nas formas habitualmente reconhecidas. Nas particulares circunstâncias do caso, a Comissão entendeu que a demissão não tinha sido determinada pelas convicções religiosas do apelante mas por se ter recusado a respeitar o seu horário de trabalho, também não havendo qualquer indicação de ter sido pressionado para mudar as suas crenças religiosas ou impedido de as manifestar. Deste modo, a pretensão do apelante, para a Comissão, não era tutelada pela proteção da liberdade religiosa conferida pelo ar­tigo 9.° da CEDH. Na medida em que o recorrente, em face do conflito entre o horário de trabalho e as suas convicções religiosas, era livre de se demitir, concluiu a Comissão que o mesmo tinha ainda esta última garantia do exercício do seu direito à liberdade religiosa, pelo que a sua demissão não interferiu com o direito invocado. Daí concluir pela não violação do artigo 9.° da Convenção.
Já anteriormente, a Comissão havia desatendido a pretensão de um professor do ensino básico britânico, muçulmano, que invocara o des­respeito do artigo 9.° da Convenção em face da recusa da escola em que lecionava de organização de um horário letivo que lhe permitisse cumprir a obrigação de se deslocar a uma mesquita para fazer as suas orações em conjunto com outros crentes, todas as sextas-feiras, por um período de quarenta e cinco minutos (caso X v. Reino Unido, n.° 8 160/78, Decisão sobre a admissibilidade da petição de 12/03/1981). O recorrente alegou ter sido assim forçado a apresentar a sua demissão (tendo aceitado mais tarde trabalhar em regime de tempo parcial, mas com prejuízo da sua situação remuneratória, progressão na carreira e benefícios sociais), o que seria equivalente a um despedimento. Não obstante a Comissão ter considerado que o direito a manifestar a religião em comunidade (e não apenas individualmente) se incluía na proteção da liberdade religiosa, foi determinante para o juízo de não violação (naquele caso) do artigo 9.° o facto de o recorrente ter aceitado exercer as suas funções em tempo integral, e tê-las desempenhado por um período de seis anos, sem ter informado atempadamente o empregador da necessidade de se ausentar num determinado período do dia, aceitando as condições contratuais em regime de tempo integral. Numa passagem da decisão, a Comissão observara já que o recorrente era livre de se demitir a partir do momento em que achasse que as suas obrigações letivas conflituavam com os seus deveres religiosos e que, aliás, o recorrente exercera essa liberdade ao resignar a um regime de trabalho de cinco dias por semana para aceitar um trabalho de quatro dias por semana, assim deixando as sextas-feiras para cumprir os seus deveres como muçulmano. Em face da complexidade de organização do sistema de educação britânico, con­cluiu a Comissão não ter ocorrido o desrespeito do direito do recorrente à liberdade de religião sob o artigo 9.° da Convenção, pela recusa de alteração do seu horário de trabalho com vista à prática da religião, se previamente aceitou exercer as funções de professor em tempo integral sem fazer qualquer reserva a esse respeito.
Pode ainda referir-se o caso que opôs uma cidadã britânica ao Reino Unido, invocando que o exercício da sua fé cristã, manifestado na suarecusa em trabalhar aos domingos, resultou na cessação do seu contrato de trabalho, por determinação da empresa onde trabalhava (caso Louise Stedman v Reino Unido, n. 29 107/95, decisão da Comissão Europeia dos Direitos do Homem de 9/04/1997). Citando o caso Tuomo Konttinen v. Finlândia, e para ele remetendo, a Comissão considerou que também na situação da recorrente o despedimento não se ficara a dever às suas convicções religiosas mas ao facto de se ter recusado a respeitar o seu horário de trabalho, pelo que não estaria tutelada pelo artigo 9.° da CEDH. A invocação feita pela recorrente que a imposição de trabalho aos domingos afetava ainda o seu direito a uma vida familiar (artigo 8.°, da Convenção) também não foi atendida pela Comissão, que entendeu não ser este direito desrespeitado com a fixação de um horário de cinco dias incluindo o domingo de forma rotativa, como era o caso.
Mais recentemente, no julgamento do caso Francesco Sessa v. Itália (n.° 28790/08), o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em acór­dão datado de 3/12/20 12, apreciou uma questão diversa — estranha às obrigações derivadas de uma relação laboral — mas ainda próxima da jurisprudência anteriormente citada. Estava em causa a marcação por um juiz de um ato processual incidental no âmbito de um processo criminal em data coincidente com um feriado religioso judaico. O advo­gado dos queixosos (assistentes), professando a religião judaica, havia informado o tribunal sobre a coincidência com dois feriados religiosos judaicos (o Yom Kippur e o Sukkot) em face das datas alternativas (13 e 18 de outubro de 2005) propostas pelo juiz para a realização daquele ato, requerendo a marcação noutra data, de modo a poder cumprir as suas obrigações religiosas. Marcado o ato para um dos dias referidos, foi indeferido pelo juiz de instrução o pedido de adiamento formulado pelo advogado, sendo a causa presente ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem como uma situação de violação da liberdade de religião do recorrente. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem atendeu às razões que tinham determinado a recusa do adiamento — ditadas designadamente pelos interesses de celeridade processual e pelo facto de se tratar do advogado dos assistentes e não dos arguidos, pelo que não estaria expressamente previsto o adiamento na lei processual penal italiana — e considerou que não tinha ocorrido qualquer ingerência no direito de liberdade religiosa do recorrente, até porquanto podia ter-se feito substituir na comparência ao ato processual em causa. Neste aresto, houve ainda a oportunidade para o Tribunal recordar a jurisprudência anterior, considerando que nos casos Konttinen v. Finlândia e Stedman v. Reino Unido as medidas tomadas pelas autoridades não se basearam nas convicções religiosas dos então recorrentes, mas foram antes jus­tificadas pelas específicas obrigações contratuais assumidas entre as pessoas implicadas e os respetivos empregadores.
8.3 — Não obstante o âmbito de proteção conferido ao direito de liberdade religiosa pela citada jurisprudência da Comissão Europeia dos Direitos do Homem e do Tribunal Europeu dos Direitos do Ho­mem — que apontaria apenas para a dimensão (negativa) de não discri­minação a observar na cessação das relações laborais em causa — não pode deixar de ser tido em consideração que a proteção da liberdade religiosa tem hoje um enquadramento multinível, nacional, regional e universal, no qual deve prevalecer a proteção mais elevada. Assim, por um lado, alguns dos catálogos e respetivos sistemas de garantia trans­nacionais configuram-se como subsidiários relativamente à proteção do direito fundamental pelas ordens jurídicas nacionais — como é o caso do sistema de proteção da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; por outro lado, tais sistemas de proteção transnacionais, em especial regionais, realizam os direitos tutelados enquanto standards mínimos, com vista à sua máxima efetividade, prevendo inclusivamente (e é o caso do sistema de proteção da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia) que não é prejudicada uma tutela mais ampla que possa ser conferida ao direito em causa no plano interno de cada Estado, no nível mais alto de proteção que decorra das respetivas Constituições (cf. artigo 53.° da CDFUE).
Por isso, o entendimento conferido ao âmbito da tutela internacional regional da liberdade religiosa em face da sua invocação para a obser­vância de períodos de guarda do trabalhador, por aplicação do artigo 9.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, não prejudica a tutela constitucional que agora é requerida da liberdade religiosa prevista no artigo 41.° da Constituição.
Ilustrativo é o exemplo que se recolhe, também em matéria de liber­dade religiosa, das diferentes soluções jurisprudenciais encontradas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e pelo Tribunal Constitucional alemão em face da pretensão, fundada em convicções religiosas muçul­manas e judaicas, de serem exercidos rituais de abate e corte de carne de animais sem observância das regras gerais que regem a atividade dos talhantes de carne para consumo humano. O Tribunal Constitucional alemão, em decisão datada de 15 de janeiro de 2002, considerou que ao abrigo da liberdade religiosa e da liberdade de profissão, um talhante muçulmano (à semelhança do já permitido nos talhos judeus) poderia beneficiar da exceção às regras gerais, de modo a seguir os ritos islâ­micos de corte da carne de animais, seguindo a ideia da necessidade de acomodação das práticas religiosas compaginadas com os objetivos de proteção dos animais. Esta decisão afasta-se do sentido do acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem proferido no âmbito do caso Associação Litúrgica Judaica Cha` are Shalom ve Tsedek v. França (n.° 274 17/95). Aqui, não obstante o Tribunal ter considerado que o ritual de corte de carne correspondia a uma das manifestações da liberdade religiosa tutelada pelo artigo 9.° da CEDH, considerou que a recusa de autorização àquela associação religiosa para o exercício desse ritual não desrespeitava o artigo 9.° (isoladamente ou em conjunto com a proibição de discriminação prevista no artigo 14.°, também da Convenção), já que não ficavam os membros daquela associação privados do direito de con­sumir carne tratada segundo os rituais da religião por outras associações religiosas a quem fora concedida a respetiva autorização, adotando uma posição mais restritiva do que a seguida pela justiça constitucional alemã (cf. Christine Langerfeld, Developments — Germany, in International Journal of Constitutional Law, Vol. I, n.° 1, janeiro, 2003, pp. 141 e ss., pp. 143-145).
Ora, da jurisprudência internacional regional relevante para a questão que nos ocupa importa sublinhar que, para a Comissão Europeia dos Direitos do Homem e para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o despedimento de um trabalhador que se ausenta do seu local de trabalho para respeitar o Sabbath ou para ir à mesquita rezar em conjunto com outros crentes, em determinados períodos do dia, não corresponde a uma violação do direito de liberdade religiosa nem consequentemente uma discriminação baseada nas crenças ou na religião do trabalhador, já que se entendeu não ser aquele despedimento motivado pelas convicções religiosas do trabalhador, mas sim pelo incumprimento de obrigações contratuais, por este voluntariamente assumidas, podendo, a todo o tempo, demitir-se ou fazer cessar a relação laboral e assim retomar de pleno o exercício da liberdade religiosa.
Contudo, à luz da Constituição portuguesa, a tutela do trabalhador que exerce a sua liberdade religiosa afigura-se mais ampla do que a mera proteção contra as discriminações infundadas ou, se se quiser, fundadas em razões religiosas, e assim proibidas como causas de despedimento, cabendo ao legislador assegurar não apenas a igualdade dos trabalhadores (crentes e não crentes) contra ingerências discriminatórias, mas também o exercício da liberdade religiosa de que não podem nem devem abdicar simplesmente enquanto trabalhadores ou, mais precisamente, enquanto trabalhadores subordinados. Com efeito, sendo a dimensão religiosa do indivíduo uma das mais importantes dimensões da sua autonomia e personalidade, não é expectável que se possa exigir o apagamento ou neutralização sem mais dessa faceta da pessoa só e enquanto trabalha (acrescente-se, para outrem), tomando-se sempre e em qualquer caso prevalecentes os deveres resultantes das obrigações contratuais.
Considera-se que o direito em presença — o direito de o trabalhador reservar períodos de guarda impostos pela religião professada — decorre da proteção normativa da liberdade de religião (na sua dimensão ex­terna) consagrada no artigo 41.° da Constituição portuguesa. Assim, em face da tutela conferida pelo Direito interno português — ao nível constitucional — o que cumpre ponderar é se das normas contidas no artigo 14.°, n.° 1, da Lei da Liberdade Religiosa resulta um nível ade­quado de proteção do direito em presença.
Esta preocupação tanto mais se justifica quanto se entenda que uma tu­tela jurídica adequada da liberdade religiosa não pode deixar de contem­plar a proteção da sua dimensão externa. Como escreve Jónatas Machado (Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva — Dos direitos de verdade aos direitos dos cidadãos, Coimbra Editora, Coimbra, 1996, pp. 222-223), esclarecendo o sentido da unidade essencial entre crença e conduta, «[...] a liberdade religiosa não seria adequadamente tutelada se admitisse uma tão estrita como simplificadora bipolaridade entre crença (belief) e conduta (action), que resultasse numa generosa proteção da primeira e na desvalorização da segunda. [...]
Compreende-se que as condutas coloquem mais problemas jurídicos do que as crenças em si. No entanto, a construção dogmática de uma teoria das restrições à liberdade religiosa com base na distinção entre umas e outras teria como consequência a descaracterização do fenómeno religioso e a subversão completa, ou o esvaziamento, do programa nor­mativo que a Constituição lhe faz corresponder. Este encara a religião como uma unidade incindível entre convicções e práticas religiosas (cf. 41.°-2). [...]
As convicções religiosas, como também as convicções de outra na­tureza, encerram, frequentemente, a assunção íntima e vital de um compromisso existencial e ético, com significativas repercussões com­portamentais nos planos político, social, cultural, económico, etc.. Se assim é, tais convicções não podem ser artificialmente desligadas da ação humana em que se concretizam e manifestam, juntamente com a qual se subsumem a uma realidade incindível: o fenómeno religioso. Daqui deriva, em boa parte, o relevo jurídico-constitucional que este apresenta. Compreensivelmente, em nome da proteção do indivíduo, da unidade e integridade da sua personalidade moral, a liberdade religiosa deve proteger a conduta religiosa, a liberdade de atuação e autoconformaçãocom as próprias convicções, numa medida tão ampla quanto o permita uma ponderação de bens constitucionalmente saudável.».
Por quanto fica exposto, não pode deixar de se conferir relevo ao papel do Estado na efetivação das liberdades protegidas pelo artigo 41.°, da Lei Fundamental, em especial da liberdade de religião. Tendo o mesmo por referência, considera-se que cabe primacialmente ao Estado proteger as condutas ditadas por crenças, não apenas no cumprimento de um dever de abstenção (não ingerência), mas também por via da remoção dos obstáculos e da criação das condições — no plano social — mais favoráveis ao exercício da liberdade religiosa. Retomando o Acórdão n.° 174/93, «[...] o Estado não confessional deve respeitar a liberdade religiosa dos cidadãos. Mas ele só respeita esta liberdade se criar as condições para que os cidadãos crentes possam observar os seus deveres religiosos — permitindo-lhes o exercício do direito de viverem na reali­dade temporal segundo a própria fé e de regularem as relações sociais de acordo com a sua visão da vida e em conformidade com a escala de valores que para eles resulta da fé professada.». Assim também o Acórdão 423/87: «[...] a dimensão real da liberdade religiosa depende fundamentalmente das situações sociais que permitem ou impedem o seu desfrute existencial como opções reais, competindo ao Estado, enquanto instrumento ao serviço dos valores e interesses da sociedade, assumir a obrigação de garantir a formação e o desenvolvimento livre das cons­ciências, nomeadamente no plano da sua vivência religiosa
Na dimensão externa da liberdade de religião — o direito de agir em conformidade com as próprias convicções religiosas — o fenómeno religioso não deixa de ter impacto no âmbito social, não se confinando à relação estabelecida entre o indivíduo e os poderes públicos e assim a tutela constitucional da liberdade religiosa não fica confinada à proteção do crente relativamente a ingerências ou ameaças dos poderes públicos. Uma tutela constitucional ampla dos direitos liberdades e garantias — e da liberdade de religião em especial — seria coartada de uma signifi­cativa parte da proteção conferida pela Constituição se compreendida apenas na vertente da defesa dos titulares do direito de liberdade religiosa contra o Estado. Enquanto valor constitucionalmente consagrado, com eficácia irradiante, a liberdade de religião informa também as relações sociais. Nesta sequência, é frequente a invocação do regime específico dos direitos liberdades e garantias previsto no artigo 18.°, n.° 1, da Constituição, ao estabelecer a vinculação das entidades públicas e pri­vadas a estes direitos fundamentais. Nem sempre é necessário, quando, neste domínio das relações laborais, há opções normativas tendo por destinatários entidades privadas (ou também entidades privadas) que decorrem diretamente da Constituição, seja a proibição de discriminação do trabalhador em função da religião (artigo 59.°, n.° 1, CRP), seja a proteção relativa a perguntas sobre as convicções religiosas, mormente aquando da seleção e contratação dos futuros trabalhadores (artigo 41.°, n.° 3, CRP, com as necessárias adaptações), o que não deixa de estar relacionado com a proibição da discriminação por motivos religiosos, também especificada no n.° 2 do artigo 41.° da Constituição. A proibição de discriminação abrange não apenas a fase da contratação dos traba­lhadores, mas está presente na relação laboral até à sua cessação, aqui se tendo por constitucionalmente ilícitos os despedimentos fundados em razões religiosas (o que também decorre da proibição constitucional plasmada no artigo 53.°, CRP).
A presente situação — em que está em causa o enquadramento nor­mativo, infraconstitucional, das relações laborais em face do exercício da liberdade religiosa dos trabalhadores — não convoca autonomamente o regime de vinculação das entidades privadas aos direitos, liberdades e garantias. Com efeito, o legislador previu um regime de suspensão da atividade laboral justificado pelo exercício da liberdade de reli­gião, assim criando um dever específico de respeito para as entidades empregadoras, sejam públicas (nas quais se inclui o próprio Estado empregador) ou privadas, plasmado esse regime nos requisitos fixados nas três alíneas do n.° 1 do artigo 14.° da Lei da Liberdade Religiosa cuja inconstitucionalidade foi suscitada nos autos e sendo esse o objeto do presente recurso de constitucionalidade.
De todo o modo, a eficácia irradiante do direito fundamental de liberdade religiosa não pode deixar de ser tida em conta na apreciação da intervenção do legislador. Isto, porquanto, por um lado, a liberdade de religião por parte do seu titular convoca, mesmo na sua dimensão menos exigente, um dever geral de respeito (que, neste domínio, podemos concretizar como uma obrigação de tolerância nas palavras de Jóna­tas Machado, Liberdade Religiosa Numa Comunidade Constitucional Inclusiva — Dos Direitos de Verdade aos Direitos dos Cidadãos, cit., p. 255), assim se dirigindo a todos, pelo que sempre caberia ao legislador criar as condições para o efeito e, por outro lado, relevando a invocação do direito no plano social (laboral), a atividade do legislador não po­derá deixar de ponderar também os direitos e interesses eventualmente colidentes que assistam aos empregadores.
É que já foi assinalado não se tratar a liberdade religiosa — sobretudo na sua vertente externa — de um direito absoluto, que habilite a so­breposição a todos os demais, não obstante a sua inegável relevância jurídico-constitucional. Nesse sentido, a ponderação de outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos não pode deixar de pesar na análise das normas legais agora postas em crise. Contudo, poderá desde já antecipar-se não se retirar dessa ponderação in casu as mesmas conclusões já alcançadas pelos Tribunais a quo.
Vejamos, porquê.
8.4 — O artigo 14.° da Lei da Liberdade Religiosa veio prever o di­reito de dispensa do trabalho, de aulas e de provas por motivo religioso, estabelecendo, no seu n.° 1, que os funcionários e agentes do Estado e demais entidades públicas, bem como os trabalhadores em regime de contrato de trabalho, têm direito, a seu pedido, de suspender o trabalho no dia de descanso semanal, nos dias das festividades e nos períodos horários que lhes sejam prescritos pela confissão que professam, nas seguintes condições:
a)  trabalharem em regime de flexibilidade de horário;
b)  serem membros de igreja ou comunidade religiosa inscrita que enviou no ano anterior ao membro do Governo competente em razão da matéria a indicação dos referidos dias e períodos horários no ano em curso; 
c) haver compensação integral do respetivo período de trabalho.
Não obstante configurar o direito em causa como um direito que assiste a todos os crentes, independentemente da religião professada, o regime legal em causa não pode deixar de corresponder a uma preocupação de tratamento de organizações religiosas minoritárias no que respeita à organização do tempo. Dado relevante, embora não determinante, é o facto de o dia de descanso semanal dos trabalhadores em Portugal — não obstante a sua evidente secularização — corresponder ao domingo, dia de culto para a religião católica.
Foi aliás por considerar que se mostrava acautelado o direito ao descanso nos domingos e que esta escolha do legislador não consubs­tanciava um tratamento desigualitário das várias confissões religiosas que o Tribunal Constitucional espanhol decidiu desfavoravelmente um recurso de amparo interposto por uma cidadã espanhola, membro da Igreja Adventista do Sétimo Dia, para as práticas sabatistas no âmbito de uma relação laboral. Entendeu aquele Tribunal («Sentencia 19/19 85», de 13 de fevereiro de 1985, in BOE núm. 55, de 5 de março de 1985, disponível em www. tribunalconstitucional. es) que o descanso semanal correspondia, em Espanha, «como nos povos de civilização cristã», ao domingo, sendo a escolha desse dia decorrente de mandato religioso e da tradição. Contudo, sublinhou o Tribunal não se poder daí retirar que se trata da manutenção de una «instituição com origem causal única religiosa», sendo inequívoco, no seu acolhimento na legislação laboral, tratar-se de uma instituição «secular e laboral», que, «se compreende o domingo como regra geral de descanso, é porque é este o dia da semana consagrado pela tradição». Acentuando a secularização da escolha desse dia, até pela «aconfessionalidade» proclamada no artigo 16.° da Cons­tituição espanhola de 1978, e o facto de se tratar de regra dispositiva, podendo ser outro o dia de descanso dos trabalhadores, a estabelecer em acordo individual ou coletivo de trabalho, entendeu o Tribunal ser essa escolha indiferente para o legislador. Negando o recurso, concluiu o Tribunal Constitucional espanhol que «a tese da demandante con­duz a configurar o descanso semanal como instituição marcadamente religiosa — que não é, [...] o que obviamente, não é possível, por muito respeitáveis que sejam — e são — as suas convicções religiosas».
Todavia, esta perspetiva não se afigura adequada para resolver as questões de constitucionalidade colocadas.
É que a escolha do domingo não será determinante, por se diri­gir à realização de outros direitos constitucionalmente consagrados, como in casu, o direito ao descanso (artigo 59.°, n.° 1, alínea d), da Constituição) — o que não é o caso que nos ocupa, aliás prevendo-se mesmo a compensação do tempo de ausência do trabalhador para o cumprimento dos seus deveres religiosos —, mas será relevante por coincidir com um dia de culto religioso. Bem assim, os feriados religiosos em Portugal correspondem também aos dias como tal entendidos pela religião maioritáia. A este respeito, e por não se dirigirem os feriados à realização de um direito subjetivo do trabalhador ao descanso (fundado no citado artigo 59.°, n.° 1, alínea d), CRP), mas sim à realização de interesses coletivos em articulação com os direitos subjetivos do traba­lhador de participar nessas festividades (em sentido mais próximo da realidade que nos ocupa), vale a pena mencionar a seguinte passagem do Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 602/13:
«Os dias de feriado obrigatório relevam no âmbito das relações labo­rais, na medida em que, em tais dias, é obrigatório o encerramento ou suspensão da laboração de todas as atividades que não sejam permitidas aos domingos (cf. o artigo 236.° do Código do Trabalho). A paragem da prestação de trabalho é, assim, uma consequência da suspensão da laboração e destina-se a possibilitar a celebração coletiva de datas ou eventos considerados relevantes no plano político, religioso ou cultu­ral. Ou seja, neste âmbito, não há um direito do trabalhador perante oempregador (direito ao descanso ou ao repouso), mas sim um dever das entidades empregadoras perante o Estado que se articula com um direito subjetivo público dos trabalhadores, traduzido num direito a tempo livre para participar na comemoração (neste sentido, António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, cit., pp. 345 e 346). Ou seja, os feriados “não visam propriamente conceder repouso ao trabalhador, mas antes permitir-lhe participar nas festividades organizadas nesses dias” (assim, Luís Menezes Leitão, Direito do Trabalho, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, p. 275; v. no mesmo sentido, Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho. Parte II..., cit., p. 508), ainda que indiretamente possa haver uma relação entre os feriados e o repouso do trabalhador, uma vez que este está eximido de prestar atividade no dia feriado (Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 6.ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, pp. 525 e 526).»
Neste enquadramento, melhor se compreende o escopo do regime normativo em causa, cuja importância mais se verifica na realização da liberdade religiosa numa comunidade plural. Nas palavras de Jónatas Machado, «a liberdade religiosa constitui um mecanismo de proteção do pluralismo religioso, com base no reconhecimento de que numa ordem constitucional livre e democrática os cidadãos tenderão, na­turalmente, a adotar diferentes convicções religiosas e a reunir-se em múltiplas confissões religiosas. O Tribunal Constitucional sublinhou que o dever estadual de proteção negativa e positiva da liberdade religiosa abrange as diferentes confissões religiosas, sem prejuízo da tomada de consideração, em termos razoáveis, das diferenças fácticas existentes entre elas e do modo como as mesmas podem justificar diferenciações normativas constitucionalmente adequadas» (Cfr. «A Jurisprudência Constitucional Portuguesa Diante das Ameaças à Liberdade Religiosa», cit., p. 111).
Questionada a constitucionalidade da aplicação cumulativa das três alíneas do n.° 1 do artigo 14.° da Lei da Liberdade Religiosa, como requisitos para o exercício do direito de o trabalhador, a seu pedido, suspender o trabalho no dia de descanso semanal, nos dias das festivi­dades e nos períodos horários que lhe sejam prescritos pela confissão que professam, a partir da interpretação que lhes foi conferida na decisão recorrida, importa centrar a análise na ratio dessa decisão, para a qual foi determinante a aplicação das alíneas a) e c) do n.° 1 do preceito legal citado, de sentido desfavorável à recorrente. Com efeito, o requisito estabelecido na alínea b) desse preceito legal não se revelou determi­nante para a decisão, sendo que, em qualquer caso, da sua aplicação não derivaria uma decisão desfavorável à recorrente.
Para o efeito, o Tribunal da Relação do Porto (secundando o entendi­mento do Tribunal de 1.ª instância) considerou que o exercício daquele direito só poderia ser invocado por trabalhadores a que fosse aplicável um regime de horário flexível (alínea a), do n.° 1, do artigo 14.°, da Lei), considerado indispensável para a observância do requisito de compen­sação integral por parte do trabalhador do respetivo período de trabalho no qual ocorra a suspensão (alínea c), do n.° 1 do artigo 14.°, da Lei). Na aplicação do requisito da flexibilidade de horário, como qualquer regime de trabalho que se distancie dos esquemas em que a característica seja a fixidez, o Tribunal perfilha uma interpretação segundo a qual o horário flexível se verifica apenas nos regimes de organização do tempo do trabalho em que estão delimitados períodos de presença obrigatória do trabalhador e a possibilidade de escolha por este, dentro de certas margens, das horas de entrada e de saída, socorrendo-se da interpretação formulada pelo Tribunal de 1.ª instância: “o trabalhador prestará a sua atividade em regime de flexibilidade de horário quando, no interesse da entidade empregadora — radicado na organização do seu funcio­namento, porque desse modo proporciona a obtenção da utilidade da força de trabalho à disposição daquela — tenha sido estabelecido um esquema em que aquela prestação, contendo-se nos limites legais do período normal de trabalho, possa ter hora variável de entrada e saída, dependendo tal de determinadas circunstâncias ou condições ou sendo gerido pelo trabalhador, em qualquer caso tendo em vista uma melhor eficácia da sua prestação”. Assim, considerou excluída da previsão da norma o regime de horário por turnos rotativos.
A interpretação normativa conferida pelo Tribunal a quo aos re­quisitos estabelecidos na Lei da Liberdade Religiosa para o exercício da liberdade religiosa do trabalhador assenta na ideia de que o direito de guarda de períodos reservados para o culto impostos pela religião professada pode ser exercido se, na organização do funcionamento da unidade empresarial — no interesse da entidade empregadora e com vista à melhor eficácia da prestação do trabalho —, for estabelecido um regime que contemple a possibilidade de variação da hora de entrada e de saída dos trabalhadores. A partir desta interpretação, verifica-se que os requisitos legalmente estabelecidos para o exercício do direito, na parte em que respeitam ao tempo da prestação do trabalho (e à com­pensação da ausência do trabalhador, pois, segundo aquele Tribunal, apenas possível num regime de flexibilidade de horário), são entendidos como alheios a qualquer conformação que pudesse decorrer da situação dos trabalhadores que invocam o direito em causa, correspondendo tão só a um regime de organização do tempo de trabalho (previamente) estabelecido pela entidade empregadora, de que possa eventualmente usufruir o trabalhador crente (e os demais).
O Tribunal justifica esta asserção, ao considerar, a propósito da in­tenção do legislador, que «o que se pretendeu [...] foi harmonizar dois direitos potencialmente em conflito: o direito do trabalhador à liber­dade religiosa e o direito do empregador à correta gestão dos meios humanos ao seu dispor. Sempre com a preocupação que o exercício do direito do trabalhador não acarrete, para um empregador, um prejuízo injustificado e desproporcionado».
O juízo de concordância dos direitos e interesses em presença — de um lado, a liberdade religiosa do trabalhador, de outro lado, o direito de iniciativa económica do empregador, aqui incluído o direito de organi­zação do tempo de trabalho (também contido no princípio da liberdade de organização empresarial previsto no artigo 80.°, alínea c), da CRP) e, bem assim, do estabelecimento de um horário de trabalho — não pode deixar de ser feito pelo legislador. Com efeito, já o dissemos, a liberdade religiosa (na sua vertente externa) não é um direito absoluto e irrestrito, mesmo que, acrescente-se agora, da letra do n.° 1 do artigo 41.° nada re­sulte a esse respeito. Quando exercida no âmbito de uma relação laboral, a liberdade religiosa do trabalhador poderá sofrer alguma compressão justificada pelos direitos e interesses em presença.
Contudo, a partir do momento em que se entende que o direito à liber­dade religiosa do trabalhador não se mostra confinado à sua dimensão interna e que a proteção constitucional é mais ampla do que a mera garantia contra tratamentos discriminatórios, a ponderação in casu da estrita configuração do exercício daquela faculdade contida no direito de liberdade religiosa do trabalhador em face dos outros direitos e interesses constitucionalmente relevantes revela-se desconforme com o programa constitucional de proteção da liberdade de religião.
Desde logo, o juízo de ponderação feito pelo Tribunal recorrido entre os direitos e interesses em presença — previstos, respetivamente, nos artigos 41.° e 61.° (e 80.°, alínea c)) da Constituição — aponta para a prevalência do direito de livre iniciativa económica (e da liberdade de organização empresarial) sobre o direito de liberdade religiosa, com o claro sacrifício desta, sem que se vislumbre de que modo possa ser afetada a organização empresarial do tempo de trabalho e a liberdade do empregador sempre e em qualquer caso em que essa organização não tenha contemplado a possibilidade de os trabalhadores terem um horário variável na entrada e saída. Depois, sendo esta a interpretação confe­rida ao requisito da flexibilidade de horário, conclui-se que só nestas circunstâncias possa ser exercida a liberdade religiosa do trabalhador nos termos do artigo 14.° da Lei da Liberdade Religiosa, o que reduz o universo dos trabalhadores abrangidos a uma ínfima parte do universo dos trabalhadores subordinados a um horário de trabalho (sendo este um elemento determinante da própria relação laboral subordinada). Ainda, e na medida em que a organização do tempo de trabalho e a fixação de um horário se compreendem nos direitos gestionários da entidade em­pregadora, esta configuração em concreto dos requisitos para o exercício do direito em causa apenas contempla o exercício daqueles direitos da entidade empregadora, naturalmente estranhos e não dirigidos à liber­dade religiosa dos trabalhadores — pois determinados pelos objetivos de produtividade e eficácia na prestação do trabalho.
Assim interpretados os requisitos previstos nas alíneas a) e c) do n.° 1 do artigo 14.° da Lei da Liberdade Religiosa, revelam-se de limitadíssima aplicação, abrangendo apenas as situações em que o trabalhador exerce a sua atividade numa organização em que haja sido estabelecido um regime flexível para o horário de trabalho (isto é, com variação na hora de entrada e de saída) por razões estritamente gestionárias, de acordo com os direitos e interesses (desta forma entendidos como prevalecentes) da entidade empregadora.
Com efeito, o caminho formulado pelo legislador, ao configurar (como fez) os requisitos cumulativos do n.° 1 do artigo 14.° da Lei da Liberdade Religiosa para o trabalhador poder exercer o seu direito de observância do tempo ditado pela sua confissão religiosa no âmbito das relações laborais, não se compadece com os restritíssimos termos da interpretação normativa que foi dada às alíneas a) e c) daquele preceito.
Ora, a proteção constitucional do direito à liberdade religiosa procura realizar-se na possibilidade real — e não apenas virtual — de o exer­cício desse direito ter lugar também perante entidades empregadoras (aqui se incluindo o Estado, na posição de Estado empregador e as entidades privadas), não podendo ignorar-se que desse exercício possa resultar a colisão com outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos — como é o caso. A ponderação do legislador na criação das condições para a realização do direito de liberdade religiosa em face desses outros direitos não poderá contudo consubstanciar a prevalência destes nas situações de possível conflito que daquela resultem. Isto, sem que observe o princípio da proporcionalidade nas restrições que se entendam necessárias e justificadas ao direito de liberdade religiosa dos trabalhadores para a realização desses outros direitos, aqui traduzidos na liberdade de iniciativa económica privada.
Do quadro constitucional de tutela da liberdade de religião decorrem os princípios de tolerância e de acomodação dos direitos derivados do exercício da religião no âmbito social como vetores do próprio pro­grama normativo constitucional, que não se limita à afirmação de que o reconhecimento da liberdade religiosa no mundo laboral se efetua tão só através do princípio da igualdade e não discriminação. Como escreve Jónatas Machado, «a eficácia externa da liberdade religiosa implica mais do que a observância do princípio da igualdade, vinculando positivamente a entidade empregadora a proceder a uma medida deter­minada de acomodação da religião» (Cfr. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva, cit. p. 265; no mesmo sentido, Susana Sousa Machado, «Liberdade Religiosa e Contrato de Trabalho», in Questões Laborais, Ano XIX, n.° 39, janeiro-junho 2012, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pp. 79 e ss., pp. 9 1-93).
A ideia de acomodação da liberdade religiosa numa comunidade plural, com amplo desenvolvimento na jurisprudência norte-americana, encontra eco no voto de vencido dos juízes do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Tulkens, Popovic e Keller (caso Sessa v. Itália, supra referido), ao considerarem violado o direito de liberdade religiosa no caso, entre outras razões, pelo facto de considerarem que a medida adotada se revelou desproporcionada, não acolhendo as razões da necessidade de manutenção da data fixada e coincidente com um feriado judaico para a realização de interesses de celeridade processual e de organização dos trabalhos como determinantes para a restrição operada ao direito de liberdade reli­giosa. Isto, porquanto, para estes juízes teria sido possível encontrar uma «acomodação razoável» (reasonable accommodation) da situação, sem comprometer o interesse de uma adequada administração da justiça.
E Jónatas Machado, na esteira da jurisprudência constitucional norte-americana dedicada ao tema da religião no seio das relações laborais, defende mesmo que do programa constitucional português de tutela dos direitos religiosos resulta um dever, para as entidades empregadoras, de acomodar a liberdade religiosa dos trabalhadores. Sobre a Constituição portuguesa, escreve o Autor que «aqui, a ideia de acomodação razoável da religião assume as vestes de uma concordância prática entre direitos e interesses em colisão, atenta à especial centralidade que o fator religioso assume como elemento constitutivo da identidade e autocompreensão do indivíduo. O direito à liberdade religiosa do trabalhador deverá ser equacionado, de acordo com critérios de razoabilidade e proporcionali­dade, com os direitos de propriedade e iniciativa económica privada do empregador, no sentido que garanta a sua máxima efetividade, isto é, que possibilite a obtenção do equilíbrio menos restritivo entre os bens em colisão. Deve notar-se, todavia, que o aparente tratamento preferencial do trabalhador por causa das suas convicções religiosas, não é realmente mais do que a única solução logicamente possível para o problema da acomodação da religião» (Cfr. Liberdade Religiosa Numa Comunidade Constitucional Inclusiva, cit., p. 269).
Nesta linha, o comando constitucional dirigido ao legislador na regu­lação do direito em causa é o de conferir a máxima efetividade ao direito decorrente da liberdade religiosa, sem prejuízo da devida ponderação dos direitos e bens constitucionalmente protegidos pelo artigo 61.° (e 80.°) da Constituição. Estes não poderão deixar de ser pesados, segundo juízos de razoabilidade e proporcionalidade.
Ora, uma interpretação do requisito da flexibilidade do horário de trabalho (de que dependeria também o requisito da compensação do pe­ríodo de trabalho não prestado) inteiramente reportada a uma modalidade de determinação de horário (com variação na hora de entrada e saída), inteiramente na disponibilidade da entidade empregadora e sem qualquer relação com a possibilidade de o trabalhador crente observar os ditames da sua religião que possam de algum modo conflituar com o esquema de organização do tempo de trabalho a que se subordina, descaracteriza a ampla proteção conferida pela Constituição à liberdade religiosa, em várias das dimensões assinaladas, para mais quando reforçada por imperativos de consciência, também eles protegidos ao nível constitucional.
Deste modo, na interpretação conferida às alíneas a) e c) (e na medida em que o requisito da compensação do tempo de trabalho apenas se verificará em regime de flexibilidade de horário), o pendor redutor da dimensão normativa a que o Tribunal as confina torna-se evidente.
Com efeito, a dificuldade de preenchimento do primeiro requisito resulta desde logo da escassa abrangência conferida ao conceito de flexibilidade de horário laboral que, ao contrário do que poderia resultar de uma leitura apressada, não se revela flexível, mas dotado de uma enorme rigidez. Ao aplicar-se apenas aos trabalhadores que desenvolvam a sua atividade num esquema de estabelecimento de um período de presença obrigatória, com uma consentida margem de variação das horas de entrada e saída, não será de ignorar que, em face dos elementos do direito positivo infraconstitucional, tal regime apenas se mostra expressamente consagrado no regime aplicável aos trabalhadores da Administração Pública consagrado no Decreto-Lei n.° 259/98, de 18 de agosto (cf. sobre os «horários flexíveis» os artigos 15.°, n.° 1, a) e 16.°) ou, ainda mais limitadamente no domínio das relações laborais privadas, e para as específicas situações de trabalhadores com res­ponsabilidades familiares, a que possa ser autorizado um horário de trabalho flexível, no qual o trabalhador pode escolher, dentro de certos limites, as horas de início e termo do período normal de trabalho diário (cf. artigo 56.°, do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.° 7/2009, de 12 de fevereiro, com a última alteração operada pela Lei n.° 27/20 14, de 8 de maio). No demais, resultará eventualmente da conformação das relações de trabalho no âmbito da autonomia privada das partes a exercer contratualmente. Deste modo, se compreende a advertência feita por Susana Sousa Machado quanto à «tímida abertura da Lei da Liberdade Religiosa» ao fenómeno da religião no seio das relações laborais, escrevendo, a propósito da interpretação do disposto no artigo 14.°, n.° 1, alínea a) dessa lei que «[...]parece-nos que o regime em análise apenas se aplica a trabalhadores cujo empregador seja uma entidade de natureza pública, ou seja, apesar de restrito, terá ainda um âmbito de aplicação subjetivo muito limitado» («Liberdade religiosa e contrato de trabalho», cit., p. 98).
Nesta limitação do âmbito de aplicação subjetivo da norma, ficam os trabalhadores não abrangidos por um regime de «horário flexível» (tal como definido no aresto recorrido) — e com isto se quer dizer: a grande generalidade das situações — perante o dilema de opção entre o cumprimento dos deveres laborais e o cumprimento dos deveres religiosos, caindo-se a final na solução apresentada pelo Tribunal de Estrasburgo, quando propõe como opção do trabalhador a cessação, por sua iniciativa, da relação laboral, para assim exercer livremente os deveres religiosos com esta conflituantes. Ora, reconheça-se que essa opção não existe — ou muito dificilmente existirá — nem de facto nem de direito. Isto, não apenas tendo presente o atual estado do mercado laboral, relevando a conjuntura de subemprego, como, sobretudo, e mesmo na eventualidade de vir o trabalhador a encontrar outro posto de trabalho, não se afigurar de que forma seria então livremente exercida a sua religião se ainda no âmbito do mesmo enquadramento normativo e sob o mesmo nível de tutela do direito.
Sublinhe-se ainda que o requisito assim interpretado representaria a clara prevalência dos interesses empresariais e gestionários, a quem se comete desde logo a própria definição do horário (estranho à pon­deração da situação do trabalhador crente), sem que seja necessário sobrevir prejuízo ou encargo indevido ou excessivo para a entidade empregadora que pudesse legitimamente justificar a restrição do direito de liberdade religiosa do trabalhador. Pelo que a ponderação dos valo­res em presença revela-se fortemente restritiva do direito à liberdade religiosa, sacrificando-a em face da tutela de interesses e direitos que permanecem intocados.
Deste modo, a interpretação conferida aos requisitos cumulativos pre­vistos no n.° 1 do artigo 14.°, n.° 1, da Lei da Liberdade Religiosa, contidos nas alíneas a) e c), que estabelecem os requisitos da flexibilidade do horário de trabalho e da compensação integral do período de suspensão, aquele reportado às situações em que seja estabelecido pela entidade empregadora um regime com variação da hora de entrada e saída dos trabalhadores, este só possível se verificado o primeiro, determinaria uma compressão desrazoável e excessiva da liberdade de religião (prevista e tutelada pelo artigo 41.°, n.° 1 da Constituição), em moldes não consentidos pelo prin­cípio da proporcionalidade, também da Constituição.
Nesta sequência, é de ponderar, no âmbito do programa constitucional amplo de proteção da liberdade religiosa, que não pode decorrer da interpre­tação da alínea a) do artigo 14.° da Lei da Liberdade Religiosa, ao referir-se a «flexibilidade de horário», a consideração tão só de uma modalidade de «horário flexível» (como previsto no Decreto-Lei n.° 259/98, de 18 de agosto ou, muito limitadamente, no artigo 56.° do Código do Trabalho), que, ao permitir uma variação nas horas de entrada e saída do trabalhador, se toma por paradigma de um regime com flexibilidade de horário, não se compaginando o valor constitucional que informa o direito previsto no artigo 14.° da Lei da Liberdade Religiosa com as definições ou regimes estabelecidos no plano infraconstitucional pelo legislador ordinário — de aplicação limitada ou circunscrita -, para mais prosseguindo estes, as mais das vezes, direitos e interesses diversos (como, designadamente, a materni­dade, as responsabilidades familiares, a educação e formação do trabalhador) dos protegidos no artigo 41.° da Constituição portuguesa.
É que uma interpretação da lei consentânea com a Constituição — que protege, nos termos expostos, a liberdade religiosa dos indivíduos — não pode deixar de considerar incluídas no conceito de flexibilidade de horário (salvaguardada a possibilidade de compensação do trabalho não prestado em certo período) todas as situações em que seja possível compatibilizar a duração do trabalho com a dispensa do trabalhador para fins religiosos, operando-se, assim, a acomodação dos direitos fundamentais do trabalhador.
Nesta abertura da leitura da norma legal em causa, em linha com a ampla proteção conferida pelo legislador constitucional ao direito de liberdade religiosa, não pode deixar de se compreender a organização do trabalho em turnos, que, pela sua configuração rotativa e variável designadamente quanto à afetação de trabalhadores a cada turno, possi­bilitaria, in casu, a acomodação das práticas religiosas dos trabalhadores para efeitos da dispensa do trabalho em certos períodos ou dias ditados pelas crenças professadas, sem prejuízo da compensação devida (porvia da prestação efetiva do trabalho). É que a configuração rotativa e variável do regime de horário por turnos (e, assim, «flexível») habilita soluções que vão ao encontro da letra e do espírito da lei, com vista à criação, sempre que possível, das condições favoráveis ao exercício da liberdade religiosa dos trabalhadores, pelo que, diversamente dos limitados termos da interpretação normativa feita no aresto recorrido, não se considera aquele regime excluído da previsão da norma.
Outros regimes poder-se-iam considerar abrangidos por aquela pre­visão legal, designadamente, os regimes de horários desfasados, de tempo parcial, de jornada contínua ou de isenção de horário, previstos no Decreto-Lei n.° 259/98, de 18 de agosto, para a Administração Pú­blica, ou, no âmbito das relações jurídico-laborais privadas, o trabalho a tempo parcial para os trabalhadores com responsabilidades familiares (artigo 55.°, do Código do Trabalho) ou o regime de isenção de horário previsto no artigo 218.° (também do Código do Trabalho), não se es­gotando nestes exemplos.
Uma interpretação constitucionalmente conforme da Lei da Liberdade Religiosa, quanto ao seu artigo 14.°, para mais propiciada pela falta de uma definição rígida e fechada do conceito de flexibilidade de horário, em face da liberdade fundamental prevista no artigo 41.° da Constitui­ção, não pode deixar de apontar para uma mais elevada proteção deste direito fundamental, irradiando o seu efeito para as relações laborais, de modo a entender-se caber também aos empregadores a procura de soluções gestionárias de organização laboral que acautelem o exercício de direitos fundamentais pelos trabalhadores, neste caso, o direito à liberdade religiosa.
Aliás, também noutras situações previu o legislador o dever de a entidade empregadora proceder à acomodação de outros direitos fun­damentais dos trabalhadores, como ilustrado com a previsão específica de obrigação de ajustamento do horário dos trabalhadores-estudantes (artigo 90.° do Código do Trabalho), ou com a formulação mais genérica por via da obrigação de ponderação de direitos dos trabalhadores e de circunstâncias relevantes aquando da fixação dos horários de trabalho, nos termos cometidos ao empregador pelo artigo 212.°, n.° 2, do Código do Trabalho ou aos dirigentes (da Administração Pública) pelo artigo 22.° do citado Decreto-Lei n.° 259/98.
Entende-se decorrer da ampla proteção constitucional da liberdade de religião que, no presente caso, o «regime de horário flexível» não deixe de incluir os horários por turnos, habilitando a compatibilização do horário de trabalho (e da sua compensação devida) com o exercício da liberdade religiosa do trabalhador, sendo essa interpretação — e não a interpretação restritiva seguida pelo Tribunal a quo quanto às alíneas a) e c) do n.° 1, do artigo 14.° da Lei da Liberdade Religiosa (a primeira interpretada no sentido de o regime de flexibilidade de horário se reportar apenas a regimes de organização do tempo do trabalho em que estão delimitados períodos de presença obrigatória do trabalhador e a possibilidade de escolha por este, dentro de certas margens, das horas de entrada e de saída, e a segunda interpretada no sentido de a compensação do período de trabalho apenas se verificar em regime de flexibilidade de horário com aquele sentido) — a que se mostra adequada a fazer respeitar a nossa Constituição.
Assim, por que não seria constitucionalmente admissível a interpretação normativa conferida às alíneas a) e c) do n.° 1 do artigo 14.° da Lei da Liberdade Religiosa, ao consubstanciar uma compressão desproporcio­nada da liberdade de religião consagrada no artigo 41.° da Constituição da República Portuguesa, justifica-se proferir uma decisão interpretativa, ao abrigo do disposto no artigo 80.°, n.° 3, da lei do Tribunal Consti­tucional, devendo o Tribunal recorrido adotar a interpretação que se julgou conforme à Constituição e, assim, reformular em conformidade a solução encontrada para o caso concreto ali em julgamento nos termos da legislação aplicável.
III — Decisão 9 — Pelo exposto, decide-se:
a)  Interpretar, ao abrigo do disposto no artigo 80.°, n.° 3, da LTC as normas do artigo 14.°, n.° 1, alíneas a) e c), da Lei da Liberdade Religiosa, no sentido de que incluem também o trabalho prestado em regime de turnos;
b)  Conceder provimento ao recurso, e, em consequência, revogar o acórdão recorrido para que seja reformado de modo a aplicar as referidas normas com aquele sentido interpretativo.
Sem custas.
Lisboa, 15 de julho de 2014. — Maria José Rangel de Mesqui­ta — Carlos Fernandes Cadilha — Catarina Sarmento e Castro — Ma­ria Lúcia Amaral — Tem voto de conformidade do Conselheiro Lino Ribeiro, que não assina por não poder estar presente. Maria José Rangel de Mesquita.