sexta-feira, 26 de outubro de 2012

PROCESSO DISCIPLINAR - JUSTA CAUSA - DIREITO DE CORRECÇÃO - PERDA DE CONFIANÇA - ANTIGUIDADE



Proc. Nº 979/11.7TTLSB.L1-4    TRL   10.10.2012

I - O direito de correcção, como causa de justificação do facto, coloca-se hoje praticamente e apenas – e cada vez de forma mais restritiva - relativamente aos pais e tutores nem sequer sendo permitido aos professores.
II - Tal justificação só ocorre dentro de três condições: que o agente actue com finalidade educativa e não para dar voz à sua irritação, para descarregar a tensão nervosa ou ainda menos pelo prazer de inflingir sofrimento ao dependente; que o castigo seja criterioso e portanto proporcional, no sentido de que deve ser o mais leve possível; e que ele seja sempre e em todos os casos moderado.
III - O comportamento da autora, que, no exercício das suas funções de Educadora de Infância, porque uma criança menor de quatro anos estava a fazer barulho, desferiu um golpe com a sua mão naquele que lhe tocou na zona boca/nariz e lhe provocou sangramento, não teve uma finalidade educativa (tratava-se apenas da irrequietude de um criança de 4 anos que podia ser debelada sem recurso ao castigo corporal) e, por outro lado, foi levada a cabo por pessoa a quem os pais não haviam delegado tais poderes, consubstancia um comportamento ilícito.
IV - Deste comportamento resultou a perda de confiança da entidade patronal naquela sua trabalhadora como irreversível, comprometendo, desde logo e sem mais, o futuro do contrato.
V - Efectivamente, importa ter presente que a autora tinha como funções cuidar e zelar pelo bem estar de crianças de tenra idade (4 anos, como era o caso da criança em causa), seres indefesos e que, por essa razão, exige-se que sejam cuidadas por pessoas merecedoras de total confiança.
VI - O facto de a autora ter mais de 20 anos de antiguidade ao serviço da ré sem antecedentes disciplinares funciona também contra a autora, visto que lhe acarreta um acréscimo de responsabilidade, na medida em que o seu comportamento devia servir de modelo para as demais educadoras da instituição.

Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório:

AA, educadora, (…), apresentou o formulário a que alude o artigo 98.º-C e 98.º-D do Código de Trabalho opondo-se ao despedimento promovido por Santa Casa da Misericórdia de ..., NIPC/NIF…, com sede na Rua…, n.º …, 0000-000 ....
Foi realizada a audiência de partes, em que se não logrou a conciliação das partes.
Devidamente notificada a entidade patronal apresentou a sua motivação de despedimento, alegando, em síntese que:
- a trabalhadora foi admitida, por contrato individual de trabalho em 1987, para exercer as funções de educadora de infância, e após a instauração de um processo disciplinar cessou o seu vínculo e, 2 de Março de 2011, por aplicação de uma sanção de despedimento com justa causa;
- no dia 9 de Novembro de 2010, a trabalhadora enquanto bateu na boca/nariz de um menor que estava ao seu cuidado dentro da sala de aulas, e não informou quer o pais da criança quer a sua superiora hierárquica;
- com este comportamento a trabalhadora violou os deveres de zelo e diligência, e obediência que afectou a relação de confiança que subjaz à relação laboral, pelo que é proporcional à gravidade do facto e à culpa da trabalhadora a aplicação da sanção de despedimento.
Pugnou pela confirmação da licitude do despedimento da trabalhadora.
Juntou aos autos o processo disciplinar.
Notificado a trabalhadora, a mesma contestou, alegando, em síntese, que:
- a trabalhadora admite que no dia indicado e num gesto irreflectido deu uma palmada na face do menor que o fez sangrar, após este ter dado um grito para perturbar a sesta dos colegas;
- não escondeu essa situação e tentou falar com os pais da criança, e partindo do pressuposto que após falar com as mesmas a situação ficaria sanada, não comunicou à sua coordenadora;
- falou com o pai do menor e não falou com a mãe por um desencontro;
- a actuação da trabalhadora insere-se no seu direito de correcção, sendo de considerar como um castigo moderado, pelo que e sendo uma situação isolado, não demonstrando qualquer crueldade, insensibilidade ou vingança, pelo que a sanção aplicada se revela desproporcionada.
Mais, apresentou pedido reconvencional, alegando que:
- auferia, à data do despedimento, a retribuição de 1.908,17 euros acrescido de alimentação no montante mensal de 93,72 euros;
- o seu despedimento é ilícito, pelo que tem direito a ser reintegrada no seu posto de trabalho, sem prejuízo de optar pela cessação do contrato de trabalho e lhe serem pagas as retribuições vencidas de Março de 2011 até à data em que for proferida a decisão nestes autos;
- aquando do seu despedimento foi-lhe paga a quantia de 5.457,97 euros, que deverá ser deduzida na quantia em que a entidade empregadora for condenada.
Assim, pugnou a trabalhadora que deverá ser considerada improcedente a motivação do despedimento e declarada a ilicitude do despedimento, e ser a entidade empregadora condenada a reintegrar a trabalhadora no seu posto de trabalho, sem prejuízo da opção pela cessação do contrato de trabalho. Mais deverá a entidade empregadora ser condenada a pagar-lhe as quantias já vencidas e vincendas na parte que exceda o montante de 5.457,97 euros já paga, acrescida das retribuições que se vencerem após dedução da quantia referida até decisão final e juros.
Caso a trabalhadora vier a declarar que pretende a cessação do contrato deverá, ainda, ser a entidade empregadora ser condenada no pagamento da indemnização por antiguidade, nos termos do artigo 391.º do Código de Trabalho, bem como nas férias, subsídio de férias e de Natal que se vencerem em consequências da cessação do contrato.
A entidade empregadora pugnou pela licitude do despedimento e pela improcedência do pedido reconvencional.
Foi proferido despacho saneador, sem que se tenha procedido à organização da matéria de facto assente e da base instrutória.
Teve lugar a Audiência de Discussão e Julgamento, com observância do legal formalismo.
A trabalhadora optou pela cessação do contrato de trabalho e pela consequente indemnização a que alude o artigo 391.º do Código de Trabalho.
Seguidamente foi prolatada a sentença, onde foi exarada a seguinte

Decisão:
Por tudo quanto se deixa exposto, julga-se:
a) Lícito o despedimento efectuado pela entidade patronal;
b) Absolve-se a entidade empregadora do pedido reconvencional.
c) Custas pela trabalhadora – artigo 446.º, n.º 1, do Código de
Processo Civil.
*
Valor da acção: € 24.806,21 (vinte e quatro mil oitocentos e seis euros e vinte e
um euros) – artigo 98.º P do Código de Processo de Trabalho e 12.º do RCP, por
referência à tabela I-B.
*
Registe e notifique.

Inconformada, interpôs a Autora o presente recurso, onde formulou as seguintes conclusões:
(…)

II – FUNDAMENTOS DE FACTO
A 1ª Instância deu como provados os seguintes factos:

A) A trabalhadora AA foi admitida para exercer funções de Educadora de Infância sob “autoridade e direcção” da entidade empregadora em 1 de Outubro de 1987, mediante “contrato individual de trabalho”;
B) Em 2 de Março de 2011, na sequência da instauração de um processo disciplinar, a entidade empregadora procedeu à rescisão do CIT, alegando justa causa;
C) A trabalhadora exercia funções no Jardim de Infância "BB";
D) É expressamente proibido pela Ré bater (sob qualquer forma) e independentemente do seu comportamento, nas crianças entregues aos cuidados desta Instituição;
E) A trabalhadora, no dia 9 de Novembro de 2010, quando se encontrava ao serviço, por o menino CC estava a fazer barulho, desferiu um golpe com a sua mão naquele que lhe tocou na zona boca/nariz e lhe provocou sangramento;
F) A trabalhadora não deu conhecimento, no dia, à sua superiora hierárquica nem aos pais da criança;
G) O pai da criança, DD, na mesma data, verificando ao fim do dia quando o foi buscar, que a criança não estava a usar a mesma camisola que tinha levado de manhã, deparou com a mesma ensanguentada e, nessa sequência questionou a auxiliar EE sobre o sucedido. A qual o informou que teria que falar com a Sra. Educadora;
H) No dia seguinte, 10/10, quando a criança foi entregue na sala, pela manhã, a trabalhadora, falou com o pai do menino;
I) A mãe da criança telefonou para a trabalhadora e disse que nesse dia iria ao estabelecimento para falar com ela, no entanto, quando lá chegou, pelas 18.05 horas a trabalhadora já lá não se encontrava;
J) Os pais da criança procuraram a Sra. Coordenadora, a fim de manifestarem a sua preocupação e desaprovação acerca da agressão a que o filho foi sujeito;
K) Em virtude do que foi solicitada pelos pais, uma reunião, que ocorreu no dia 11/11/2010, com a Coordenadora, Dra. FF;
L) A entidade empregadora, como Instituição que recebe aos seus cuidados crianças (no caso com apenas 4 anos), em si mesmos seres indefesos, não admite qualquer tipo de violência física contra as mesmas;
M) A trabalhadora auferia à data do despedimento a retribuição de € 1.908,17, acrescida de subsídio de alimentação no montante mensal de € 93,72, perfazendo o
valor total mensal de € 2.002,44
N) O assunto foi falado entre os funcionários e os pais das crianças que frequentavam o estabelecimento de ensino.
Não tendo sido impugnada, nem havendo motivo legal para procedera à sua alteração , aceita-se a matéria dada como assente pelo Tribunal “a quo”.

III – FUNDAMENTOS DE DIREITO

Cabe agora responder à questão nuclear de saber se o despedimento da A. ocorreu sem verificação de justa causa como defende a recorrente, questão que deverá ser analisada à luz do regime jurídico constante do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, que procedeu à revisão do Código do Trabalho, revogando a Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto [cfr. os artigos 12º, nº 1, a) e 7.º, n.º 1 daquela Lei].
Em conformidade com o imperativo constitucional contido no artigo 53º da Lei Fundamental, o artigo 351.º, n.º 1 do Código do Trabalho de 2009 define o conceito de justa causa de despedimento como “o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho”, estabelecendo-se depois um quadro exemplificativo de comportamentos justificativos desse despedimento.
Esta noção decompõe-se em dois elementos: a) um comportamento culposo do trabalhador - violador de deveres de conduta ou de valores inerentes à disciplina laboral - grave em si mesmo e nas suas consequências; b) que torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
Com algumas diferenças de forma (que não de conteúdo) a jurisprudência tem definido nestes termos o conceito de justa causa, considerando ainda:
– que a ilicitude consiste na violação dos deveres a que o trabalhador está contratualmente vinculado, seja por acção, seja por omissão, relativamente a deveres contratuais principais ou secundários, ou ainda a deveres acessórios de conduta, derivados da boa fé no cumprimento do contrato, o que afasta os factos sobre os quais não se pode fazer juízo de censura e aqueles que não constituam violação de deveres do trabalhador enquanto tal;
– que na apreciação da gravidade da culpa e das suas consequências deve recorrer-se ao entendimento de um "bonus pater familias", de um "empregador razoável", segundo critérios de objectividade e razoabilidade (artigo 487.º n.º 2 do Código Civil) em face do condicionalismo de cada caso concreto; e
– que a impossibilidade prática e imediata da relação de trabalho é o elemento que constitui o critério básico de "justa causa", sendo necessário um prognóstico sobre a viabilidade das relações contratuais para se concluir pela idoneidade ou inidoneidade da relação para prosseguir a sua função típica (vide, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2007.04.18, Processo n.º 2842/06 e de 2006.03.08, Processo n.º 3222/05, ambos da 4.ª Secção e sumariados em www.stj.pt.
A metodologia utilizada pelo legislador da LCCT (Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho e da Celebração e Caducidade do Contrato de Trabalho a Termo aprovado pelo DL n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro) para regular o despedimento por motivo imputável ao trabalhador foi retomada nos Códigos do Trabalho de 2003 e de 2009. Com a referência este último, a lei começa por apresentar uma cláusula geral de justa causa que integra com recurso a diversos critérios (art. 351.º, n.º 1); depois enumera um conjunto de situações típicas de justa causa para despedimento (art. 351.º, n.º 2); e por fim apresenta alguns critérios de apreciação das situações de justa causa no quadro da empresa (art. 351.º, n.º 3) – vide M. do Rosário Palma Ramalho in Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, Coimbra, 2006, p. 806, no que diz respeito ao Código do Trabalho de 2003.
Pese embora não exista, no Código do Trabalho, norma idêntica à da parte final do n.º 4 do artigo 12.º, da revogada LCCT, segundo a qual cabia à entidade empregadora, na acção de impugnação judicial do despedimento, a prova dos factos integradores da justa causa constantes da decisão de despedimento, é de manter o mesmo entendimento, face à estrutura e princípios que regem os termos do processo disciplinar e a acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento constantes do Código do Trabalho e do Código de Processo do Trabalho e face aos princípios gerais do ónus da prova, constantes do Código Civil.
Na verdade, de acordo com os artigos 353.º, n.º 1 e 357.º, nºs. 4 e 5 do Código do Trabalho de 2009, cabe ao empregador a imputação dos factos integrantes da justa causa de despedimento, a descrever na nota de culpa e a dar como assentes na decisão final do processo disciplinar e, nos termos do n.º 3 do artigo 387.º, o empregador apenas pode invocar factos e fundamentos constantes da decisão de despedimento comunicada ao trabalhador na acção que aprecia judicialmente o despedimento. É o empregador que invoca a justa causa para o despedimento, sendo de seu interesse ver reconhecido pelo tribunal que o comportamento do trabalhador se subsume à cláusula geral descrita no artigo 351º, nº 1 do CT, a fim de impedir que o trabalhador veja judicialmente reconhecidos os direitos indemnizatórios e retributivos emergentes da ilicitude do despedimento. Por seu turno na lei adjectiva encontra-se especificamente previsto um articulado do empregador que se destina a motivar o despedimento, onde apenas pode invocar factos e fundamentos constantes da decisão de despedimento (artigos 98.º-I, n.º 4 e 98.º-J), iniciando-se a prova a produzir em julgamento com a oferecida pelo empregador (artigo 98.º-M).
Assim, é de considerar que os factos integradores da justa causa são constitutivos do direito do empregador ao despedimento do trabalhador e, como tal, a provar pelo empregador – vide, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2010.09.15, Recurso n.º 2754/06.1TTLSB.L1.S1 e de 2009.04.22, Recurso n.º 153/09 - 4.ª Secção, ambos sumariados in www.stj.pt.
Tecidas estas questões gerais, cabe reverter ao caso concreto.
Refere a Apelante no ponto 9 das conclusões, citando um Acórdão do STJ, de 5.4.06, que 2 castigos moderados aplicados a menor por quem de direito, com fim exclusivamente educacional e adequados à situação, não são ilícitos”, pretendendo daí extrair ou pôr em causa a (i)licitude da sua actuação.
Vejamos.
A trabalhadora foi acusada - e despedida – por, no dia 9.11.10, quando se encontrava ao serviço, exercendo as funções de educadora de infância, desferir um golpe com a mão numa criança, que lhe tocou na zona da boca/nariz e lhe provocou sangramento, sem que do facto, nesse dia, tenha dado conhecimento à sua superior hierárquica, nem aos pais da criança.Com tal conduta desrespeitou ordens internas da Ré que proibiam expressamente bater nas crianças entregues aos cuidados do Jardim de Infância (no caso com apenas 4 anos de idade).
Só no dia seguinte falou com o pai da criança e, tendo combinado falar com a mãe, já não se encontrava na Instituição quando esta lá chegou.
O assunto foi falado entre os funcionários e aos pais das crianças que frequentam o estabelecimento de ensino.
Dispõe o art. 69, nº1 da CRP que “As crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições.
Assim, por força deste normativo constitucional, as crianças têm, actualmente, que ser consideradas como autênticos sujeitos de direitos.
Importa ainda ter presente o art. 19, nº1 da Convenção sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova Iorque, em 26.01.1999, aprovada e ratificada por Portugal, que preconiza que: ”Os Estados Partes tomam todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educativas adequadas à protecção da criança contra todas as formas de violência física ou mental, exploração, incluindo a violência sexual, enquanto se encontrar sob a guarda dos seus pais ou de um deles, dos representantes legais ou de qualquer outra pessoa a cuja guarda haja sido confiada”.
Entendemos que, perante estas normas, não ocorre um caso de exclusão, que apenas se verifica se um agente pratica um facto que reflecte o exercício de um direito, seja ele de que natureza for.
A Recorrente faz apelo ao direito de correcção.
Sobre este direito, escreve Figueiredo Dias (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, pág 467): “O direito de correcção, como justificação do facto, coloca-se hoje praticamente e apenas – e cada vez de forma mais restritiva - relativamente aos pais e tutores (arts. 1878, 1885,nº1 e 1935, todos do CC). O círculo de factos relativamente aos quais o exercício de um tal direito pode actuar tem que ver predominantemente – e para alguns até de exclusivamente – com as ofensas à integridade física, os chamados “castigos corporais”.
É desde logo relevante que, para este autor, tal direito apenas existe para os pais e tutores (estes últimos, dentro do conceito legal das suas atribuições), por aí se ficando a causa de justificação do facto (que nem sequer é permitido aos professores)
E acrescente este autor (pág. 468) que tal justificação só ocorre dentro de três condições: que o agente actue com finalidade educativa (sublinhado nosso).e não para dar voz à sua irritação, para descarregar a tensão nervosa ou ainda menos pelo prazer de inflingir sofrimento ao dependente; que o castigo seja criterioso e portanto proporcional, no sentido de que deve ser o mais leve possível; e que ele seja sempre e em todos os casos moderado.
Finalmente, Figueiredo Dias afasta, decidida e simultaneamente, o poder de castigo “in loco parentium”, ou seja, o direito de correcção relativa a filhos alheios (ob. e local citados).
No caso concreto, e desde logo, o castigo aplicado não teve uma finalidade educativa (tratava-se apenas da irrequietude de um criança de 4 anos que podia ser debelada sem recurso ao castigo corporal) e, por outro lado, foi levada a cabo por uma educadora infantil a quem os pais não haviam delegado tais poderes, consubstanciando um comportamento ilícito.
Resta-nos analisar o último requisito que, segundo a Recorrente, não se mostra preenchido: a impossibilidade prática e imediata da subsistência da relação laboral.
A sentença recorrida – e bem – acentuou a perda de confiança da entidade patronal nesta sua trabalhadora como irreversível, comprometendo, desde logo e sem mais, o futuro do contrato.
E não podemos deixar de concordar com esta afirmação.
Importa ter presente as funções da Autora – Educadora de Infância – que tinha como funções cuidar e zelar pelo bem estar de crianças de tenra idade (4 anos, como era o caso da criança em causa), seres indefesos e que, por essa razão, exige-se que sejam cuidadas por pessoas merecedoras de total confiança.
Ora foi essa confiança que se perdeu com o grave comportamento da Autora, não só por parte da empregadora como dos demais pais das crianças (o assunto foi falado entre eles), que quando deixam os filhos à guarda do Jardim de Infância em causa têm que ter a garantia e tranquilidade que ficam em “boas mãos” e que, no mínimo, não serão alvo de agressões físicas.
A Autora chama à colação o facto de ter mais de 20 anos de antiguidade ao serviço da Ré sem antecedentes disciplinares. Esta antiguidade, porém, funciona também contra a Autora, na medida em que lhe acarreta um acréscimo de responsabilidade, na medida em que o seu comportamento devia servir de modelo para as demais educadoras da instituição.
Por fim importa recordar que a conduta da trabalhadora foi falada entre os funcionários e os pais das crianças, sendo indubitavelmente susceptível de afectar a imagem do Jardim de Infância e causar intranquilidade nos pais cujos filhos estavam à guarda da Autora, sendo susceptível de motivar a sua saída.
Embora tal não se tenha provado, certamente que a tal não foi alheia a actuação da Ré que instaurou o processo disciplinar e promoveu o seu despedimento por se mostrar inviável a manutenção da relação laboral.
Não merece pois, censura a decisão recorrida, que é de manter.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Apelante

Lisboa, 10 de Outubro de 2012

Filomena de Carvalho
Isabel Tapadinhas
Leopoldo Soares

DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO – OMISSÃO - HORÁRIO DE TRABALHO - TRABALHO SUPLEMENTAR - PROVA - DOCUMENTO IDÓNEO - LIQUIDAÇÃO EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA



Proc. 241/08.2TTLSB.L1-4    TRL   10.10.2012 


I – Quando se verifiquem relevantes insuficiências de facto nos articulados das partes, que reclamem do juiz laboral o exercício do poder/dever traduzido no convite ao aperfeiçoamento, conforme estabelecido pelo artigo 27.º, alínea b) do Código do Processo do Trabalho, a sua omissão constitui uma nulidade processual secundária (artigos 201.º e 205.º do Código de Processo Civil), a ser arguida, em regra, pelo litigante interessado através de requerimento apresentado no tribunal da 1.ª instância.
II – A meia hora que, diariamente, era destinada ao jantar do Autor (chefe de cozinha), por se inserir no período normal de trabalho do mesmo, é considerado tempo de trabalho e não tempo de descanso, face às cláusulas aplicáveis do CCT para o setor da restauração (cf. ainda, artigos 2.º, número 2, alínea d) da Lei n.º 73/98, de 10/11 e 156.º, alínea d) do Código do Trabalho de 2003).
III – Implicando o horário e o período normais de trabalho do Autor a prestação semanal de 45 horas de trabalho efetivo ou equiparado (7,5 horas x 6 dias por semana), sendo de 40 horas o limite do período normal de trabalho semanal estabelecido pela lei e regulamentação coletiva, tal significa que o mesmo executava 5 horas semanais para além desse limite temporal, que, face às normas legais e convencionas aplicáveis, tem de ser encarado como trabalho suplementar.
IV – O horário de trabalho não existe nem é definido no vazio ou só por si, tendo-o que ser em função dos limites temporais impostos pelo legislador (nem que seja, em última linha, o constitucional), de onde emergem, desde logo, aqueles fixados para os diversos períodos normais de trabalho juridicamente admitidos, bem como para a duração máxima do próprio trabalho suplementar em si.
V – Sendo o registo diário efetuado pelo próprio trabalhador o único sistema instituído pela entidade empregadora como forma de controlar e fiscalizar o trabalho normal e suplementar executado por aquele, sendo com base nele que processa a correspondente retribuição, tem o mesmo de ser encarado como documento idóneo para os efeitos previstos no número 2 do artigo 381.º de 2003.
VI – Atenta a circunstância de não se possuir todos os elementos de facto necessários à quantificação, com exatidão e rigor, da remuneração devida ao Autor em virtude da execução do trabalho suplementar, deve relegar-se a mesma para liquidação de sentença, nos termos dos artigos 661.º, número 1 e 385.º e seguintes do Código de Processo Civil.

ACORDAM NESTE TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – RELATÓRIO

AA, (…), veio em 14/01/2008, propor a presente ação declarativa de condenação com processo comum laboral contra BB, LDA., (…), pedindo, em síntese, o seguinte:
«Nestes termos e nos demais de direito, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e, em consequência:
a) Ser declarada a ilicitude do despedimento do Autor.
b) Ser a Ré condenada a pagar-lhe a legal indemnização pela antiguidade, nos termos do art.º 439.º do Código do Trabalho, em montante não inferior a um vencimento por cada ano de duração do contrato.
c) Bem como as retribuições que se vencerem desde os trinta dias anteriores a propositura da presente ação e até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal.
d) E, ainda, o montante de 46.080,21€ relativo ao pagamento das férias, subsídio de férias, feriado de 1 de Novembro de 2007, cinco dias de férias de 2007, bem como pelo trabalho suplementar realizado.
e) Quantias estas acrescidas dos juros de mora à taxa legal, contados desde a data da citação e até integral pagamento.»
*
Para tanto, o Autor alega, em síntese, o seguinte:
- Foi admitido ao serviço da Ré em 1 de Julho de 2002 mediante contrato de trabalho, exercendo ultimamente as funções inerentes à categoria profissional de Chefe de Cozinha;
- Em Dezembro de 2007 foi-lhe aplicada a sanção disciplinar de despedimento com justa causa em consequência de processo disciplinar intentado contra si pela Ré;
- Os factos constantes do processo disciplinar e que motivaram o seu despedimento são, na sua maioria, falsos e nunca poderão integrar justa causa de despedimento;
- Prestou trabalho suplementar que não lhe foi pago, tendo, para o efeito, articulado os seguintes factos:
«45.º - Por outro lado o Autor tinha o horário de trabalho entre as 17.30 e a 1 hora, perfazendo 45 horas semanais.
46.º - Assim, fazia semanalmente 5 horas de trabalho suplementar, que se contabilizam no montante de 165,00€.
47.º - Desde 2002 e até à data ao final do ano de 2007, em cada ano, o Autor trabalhou 48 semanas. Logo, 165,00€ x 48 = 7.920,00€ x 5 = 39.600€. (…)
49.º - Assim, título de prestações em dívida, e trabalho suplementar, tem o Autor a receber a quantia total de 46.080,21€, acrescidas dos juros de mora à taxa legal, contados desde a data da citação e ate integral pagamento
*
Foi agendada data para a realização da Audiência de Partes (despacho de fls. 48), tendo a Ré sido citada para o efeito, por carta registada com Aviso de Receção, como resulta de fls. 49 e 52.
*
Veio entretanto o Autor, a fls. 53, reduzir o seu pedido, dado a Ré lhe ter pago a quantia de Euros 3.660,12, a título de subsídio de férias e proporcionais do subsídio de férias e férias, bem como féria não gozadas, redução essa que foi admitida por despacho de fls. 57.
*
Mostrando-se inviável a conciliação das partes no quadro da Audiência de Partes, foi a Ré notificada para, no prazo e sob a cominação legal contestar (fls. 65 e 66), o que a Ré fez, em tempo devido, e nos seguintes termos, conforme ressalta de fls. 67 e seguintes, onde, em síntese, alegou o seguinte:
- O processo disciplinar foi regularmente instruído, inexistindo irregularidades ou nulidades que o afetem, sendo verdadeiros os factos nele descritos e tendo a sanção de despedimento perfeito cabimento face à gravidade dos mesmos;
- É falso que o Autor tenha prestado suplementar que esteja por remunerar, tendo para este efeito a Ré articulado os seguintes factos:
«68.º - Igualmente quanto ao art.º 45.º o Autor não tinha 45 horas semanais, pois tem uma hora para jantar, mas sim 39 horas, sendo que, quando as excedia, fazia a respetiva compensação.
69.º - Quanto ao art.º 46.º, é falso que, por um lado as horas suplementares não se encontrem integralmente pagas, e por outro, que mesmo que não lhe tivessem sido, o montante em dívida fosse de € 165,00.
70.º - Para além de ser o Autor a gerir as faltas e recuperações quando elas existiam, saindo com frequência às 23 horas, deve alegar-se que a remuneração por hora é de €13.20, do que resulta um cálculo que nunca excederia pelas cinco horas, a não ter sido liquidado, o que é falso, de € 82.55
71.º - Quanto ao art.º 47.º nada é devido ao Autor pois tudo lhe foi sendo liquidado à medida das contas por ele próprio elaboradas e apresentadas à Ré, isto apesar de o Autor não considerar que somam dez meses e três dias os períodos de baixa desde Julho de 2002 até Dezembro de 2007, e que não contabilizou. (…)
73.º - O Autor nada tem a receber da Ré, que aliás liquidou com este tudo o que lhe era legalmente devido, sendo pura chicana vir reclamar o que sabe de consciência ter-lhe sido já liquidado a tempo e horas.»
*
O Autor não respondeu à contestação da Ré, apesar de notificado para o efeito (fls. 121).
*
Foi proferido, a fls. 132, despacho saneador, no qual se dispensou a realização de Audiência Preliminar, se declarou regularizada a instância, não tendo sido fixada a matéria de facto assente e elaborada a base instrutória, vindo finalmente a ser admitidos os róis de testemunhas de fls. 10, 85 e 127.
Procedeu-se à realização da Audiência de Discussão e Julgamento com observância do legal formalismo, tendo a prova aí produzida sido objeto de registo-áudio (fls. 290 a 295).
A Decisão sobre a Matéria de Facto foi proferida a fls. 304 a 306, não se encontrando nenhuma das partes presente na sessão da sua leitura (fls. 307 e 308).
*
Foi então proferida a fls. 309 a 316 e com data de 07/10/2011, sentença que, em síntese, decidiu o litígio nos termos seguintes:
«Face ao exposto, julgamos a presente ação improcedente por não provada, e em consequência absolvemos a Ré do pedido.
Custas pelo Autor – artigo 446.º do Código de Processo Civil.
Fixamos em € 63.449,40 o valor da ação.
Registe e notifique.»
*
Tal decisão judicial, no que respeita à improcedência do pedido de pagamento do trabalho suplementar formulado pelo Autor, argumentou nos seguintes moldes:  
«Diz o Autor que efetuou para a Ré trabalho suplementar, trabalho esse que não lhe foi pago. E para tal alega genericamente ter trabalhado 1 hora para além do seu horário de trabalho por dia, num total de 5h vezes 48 semanas em cada ano que trabalhou para a Ré.
Como é sabido, entende-se por trabalho suplementar todo aquele que é prestado fora do horário de trabalho – artigo 197.º do Código do Trabalho.
A realização de trabalho suplementar implica o seu pagamento, com determinados acréscimos (artigos 258.º, n.ºs 1 e 2 e 259.º, ambos do Código do Trabalho), mas este só é exigível se a sua prestação tiver sido «prévia e expressamente determinada, ou realizada de modo a não ser previsível a oposição o empregador» – artigo 258.º, n.º 5 do Código do Trabalho.
Recorrendo à regra do onus probandi, seguindo a jurisprudência que, neste domínio, é pacífica, transcrevemos um lapidar sumário de aresto do Tribunal da Relação de Lisboa:
«I - Compete ao trabalhador o ónus de provar a execução do trabalho suplementar, que deve ser exposto de forma discriminada na petição inicial de acordo com a regra contida no n.º 1, do art.º 342.º do Código Civil, segundo o qual àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado;
II - O Autor devia alegar e provar as horas de trabalho prestado fora dos horários de trabalho estabelecidos, o que não fez.»[1]
Como é bom de ver, soçobrou a Autor em provar o trabalho suplementar que alegadamente tinha executado.[2] Aliás, antes se provou que o Autor esteve diversos períodos sem trabalhar por motivo de baixa médica, o que desde logo abala decisivamente a forma que usou para peticionar este invocado direito.
Para além disto, não alegou o Autor que aquele trabalho suplementar lhe foi prévia e expressamente determinado pela sua entidade empregadora, a aqui Ré. É jurisprudência unânime que tal alegação é essencial à constituição do correspetivo direito a perceber compensação por trabalho suplementar prestado. Assim, acompanhando outra decisão da segunda instância, que sintetiza este entendimento:
«I - O Autor indica determinadas importâncias de que é credor, devidas por trabalho suplementar nos meses de Setembro de 1997 a Outubro de 1998, porém, não alegou que tal trabalho suplementar tenha sido expressa e antecipadamente ordenado pelo empregador, ou pelo menos que tenha sido por ele previsto e consentido.
II - A omissão desta alegação torna inexigível o respetivo pagamento.»[3]
*
O Autor AA, inconformado com tal sentença, veio, a fls. 322 e seguintes, interpor recurso da mesma, que foi admitido a fls. 347 dos autos, como de Apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
*
O Apelante apresentou, a fls. 325 e seguintes, alegações de recurso e formulou as seguintes conclusões:
(…)
*
A Ré apresentou contra-alegações dentro do prazo legal, na sequência da respetiva notificação, tendo formulado as seguintes conclusões (fls. 332 e seguintes): 
(…)
*
O ilustre magistrado do Ministério Público deu parecer no sentido da improcedência do recurso de Apelação (fls. 352 e 353), não tendo as partes se pronunciado no prazo de 10 dias acerca do seu teor, apesar de notificadas para esse efeito.
*
Tendo os autos ido aos vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – OS FACTOS

O tribunal da 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
 
1. O Autor trabalhou ao serviço da Ré, sob suas ordens e direção, desde 1 de Julho de 2002 até 6 de Dezembro de 2007.
2. Desempenhando as funções de Chefe de Cozinha, mediante a retribuição mensal de € 2.861,33.
3. À relação de trabalho aplica-se o CCT publicado no BTE, n.º 28, de 29/07/2004.
4. Por carta de 9 de Novembro de 2007, foi o Autor notificado do processo disciplinar que lhe foi movido pela Ré que culminou na decisão do seu despedimento, dando-se aqui o mesmo por integralmente reproduzido (fls. 87 a 114).
5. Entretanto, foi pela Ré paga ao Autor a quantia de € 3.660,12 a título de subsídio de férias, proporcionais de férias e subsídio de férias e férias não gozadas.
6. O Autor tinha um horário de trabalho com entrada às 17h30 e saída às 01h, com meia hora de intervalo para jantar.
7. O tamboril sempre fez parte da sopa de peixe.
8. Já anteriormente o Autor havia sido advertido pela Ré para se abster de práticas e comportamentos conflituosos com os colegas de trabalho.
9. Em Novembro de 2007, na presença de dois colegas, numa reunião para a qual tinha sido convocado, o Autor dirigiu-se à gerente da Ré chamando-lhe «ladra», dizendo que era uma «merda» e «incompetente», acusando-a ainda de «já uma vez o ter roubado mas que não o voltava a fazer».
10. Ao mesmo tempo que proferia estas expressões, avançou para a secretária atrás da qual a gerente se encontrava sentada, desferindo pelo menos um murro no tampo.
11. O Autor apresentou-se a trabalhar em dia não apurado mas posterior à ocorrência dos factos acima descritos, tendo sido impedido de o fazer por funcionários da Ré.
12. O Autor por vezes saía antes da hora de saída e, outras, para além desta.
13. Ao longo do contrato de trabalho, o Autor esteve diversos períodos sem trabalhar por motivo de baixa por doença.
14. Era o Autor quem registava os períodos de trabalho que efetuava e os entregava à Ré, bem como as horas extra e as compensações das folgas, liquidando a Ré a respetiva remuneração de acordo com aquele registo.

Factos não provados:

Pode ler-se, a fls. 305 da Decisão sobre a Matéria de Facto o seguinte:

«Ficaram por provar todos os demais factos constantes dos articulados das partes, nomeadamente e com especial relevância para a causa, que a gerência da Ré desse ordens ao cozinheiro sem conhecimento do Autor, que o Autor não tivesse intervalo para refeição ou que este fosse de 1 hora, bem como qualquer trabalho suplementar que tivesse sido prestado».

*
III – OS FACTOS E O DIREITO

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 685.º-A e 684.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660.º n.º 2 do Código de Processo Civil).
*
A – REGIME ADJECTIVO E SUBSTANTIVO APLICÁVEIS

Importa, antes de mais, definir o regime processual aplicável aos presentes autos, atendendo à circunstância da presente ação ter dado entrada em tribunal em 14/01/2008, ou seja, antes da entrada em vigor das alterações introduzidas no Código do Processo do Trabalho pelo Decreto-Lei n.º 295/2009, de 13/10, que segundo o seu artigo 6.º, só se aplicam às ações que se iniciem após a sua entrada em vigor, tendo tal acontecido, de acordo com o artigo 9.º do mesmo diploma legal, somente em 1/01/2010.
Esta ação, para efeitos de aplicação supletiva do regime adjetivo comum, foi instaurada depois da entrada em vigor (que ocorreu no dia 1/1/2008) das alterações introduzidas no Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/08, e que só se aplicaram aos processos instaurados a partir de 01/1/2008 (artigos 12.º e 11.º do aludido diploma legal) mas antes da produção de efeitos das mais recentes alterações trazidas a público pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20/11 e parcialmente em vigor desde 31/03/2009, com algumas exceções que não tem relevância na economia dos presentes autos (artigos 22.º e 23.º desse texto legal), mas esse regime, centrado, essencialmente, na ação executiva, pouca ou nenhuma relevância teria, de qualquer maneira, para a economia deste processo judicial.        
Será, portanto, de acordo com o regime legal decorrente do anterior Código do Processo do Trabalho e da reforma do processo civil de 2007 e dos diplomas entretanto publicados e com produção de efeitos até ao dia da instauração dos presentes autos, que iremos apreciar as diversas questões suscitadas neste recurso de apelação.
Também se irá considerar, em termos de custas devidas no processo, o Código das Custas Judiciais de 1996 e alterações subsequentes, pois o Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26/02 e retificado pela Declaração de Retificação n.º 22/2008, de 24 de Abril somente entrou em vigor no dia 20 de Abril de 2009 e aplica-se a processos instaurados após essa data.  
Importa, finalmente, atentar na circunstância de os factos que se discutem no quadro destes autos terem ocorrido, quer na vigência da LCT e legislação complementar, quer na do Código do Trabalho de 2003 (o atual Código do Trabalho de 2009, entrou em vigor em 17/02/2009), sendo, portanto, em função da factualidade analisada e do regime aplicável à mesma que iremos abordar juridicamente as questões suscitadas neste recurso de Apelação.  

B – DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

Realce-se que o Recorrente não impugnou a decisão sobre a matéria de facto, nos termos e para os efeitos dos artigos 80.º do Código do Processo do Trabalho e 685.º-B e 712.º do Código de Processo Civil, não tendo, por seu turno, a recorrida requerido a ampliação subordinada do recurso nos termos dos artigos 81.º do Código do Processo do Trabalho e 684.º-A do segundo diploma legal referenciado, o que implica que, sem prejuízo dos poderes oficiosos que são conferidos a este Tribunal da Relação pelo artigo 712.º do Código de Processo Civil, temos de encarar a atitude processual das partes como de aceitação e conformação com os factos dados como assentes pelo tribunal da 1.ª instância.

C – REGULAMENTAÇÃO COLECTIVA APLICÁVEL

Às relações profissionais entre Autor e Ré é aplicável, segundo as próprias partes e atendendo ao setor de atividade em que a Apelada se integra (restauração) e à categoria profissional do Apelante (Chefe de Cozinha), a seguinte regulamentação coletiva de trabalho publicada nas seguintes datas e Boletins de Trabalho e Emprego:

· BTE n.º 23 - 1.ª Série, de 22/06/2001 (CCT entre a ARESP — Associação da Restauração e Similares de Portugal e a FESAHT — Federação dos Sindicatos da Agricultura, Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo de Portugal);
· BTE n.º 11 - 1.ª Série, de 22/03/2002 (Portaria de Extensão - e. v. em 26/03/2002, com exceção das Tabelas Salariais - 1/6/2001; 
· BTE n.º 23 - 1.ª Série, de 22/06/2002 (Alteração salarial e outras);
· BTE n.º 27 - 1.ª Série, de 22/07/2002 (retificação);
· BTE n.º 45 - 1.ª Série, de 08/12/2002 (Portaria de Extensão - e. v. em 12/12/2002, com exceção das Tabelas Salariais - 1/6/2002; 
· BTE n.º 23 - 1.ª Série, de 22/06/2003 (Alteração salarial e outras);
· BTE n.º 28 - 1.ª Série, de 29/07/2004 (Revisão global);
· BTE n.º 28 - 1.ª Série, de 29/07/2004 (Retificação);
· D.R. n.º 208, 1.ª Série-B, de 28/10/2005 (Regulamento de Extensão);
· BTE n.º 04 - 1.ª Série, de 29/01/2006 (Alteração salarial e outras);
· BTE n.º 29 - 1.ª Série, de 08/08/2007 (Alteração salarial e outras);
· BTE n.º 07 - 1.ª Série, de 22/02/2008 (Regulamento de Extensão - e. v. em 27/02/2008, com exceção das Tabelas Salariais - 1/01/2007);
· BTE n.º 24 - 1.ª Série, de 29/06/2008 (Alteração salarial e outras);
· BTE n.º 42 - 1.ª Série, de 15/12/2008 (Integração em Níveis de Qualificação);
· BTE n.º 8 - 1.ª Série, de 28/02/2009 (Regulamento de Extensão - e. v. em 5/03/2009, com exceção das Tabelas Salariais - 1/01/2008).   

D – OBJECTO DO RECURSO

A única questão que é suscitada no âmbito deste recurso de Apelação radica-se na improcedência dos pedidos de reconhecimento da prestação de Trabalho Suplementar por parte do Autor e na condenação da Ré no pagamento da retribuição correspondente, tendo o Apelante deixado cair, portanto, a matéria relativa ao despedimento formal e com invocação de justa causa que a recorrida tinha promovido contra ele, o que significa que, nessa parte (bem como em outras questões menores, referentes a créditos salariais - pagamento da remuneração de um feriado), a sentença do tribunal recorrido já transitou em julgado.

E - ARTIGOS 27.º E 72.º DO CÓDIGO DO PROCESSO DO TRABALHO 

Importa realçar que o recorrente, como questão prévia, suscita, desde logo, nas suas conclusões, a seguinte problemática de natureza processual:
«1. Se o M. Juiz considerou que o trabalho suplementar não estava, no seu entender, devidamente peticionado, deveria em cumprimento do artigo 27.º-A do Código do Trabalho bem como do preceituado nesta matéria no C.P.C.
2. Não o tendo feito, e tendo a matéria do trabalho suplementar resultado da discussão em audiência de julgamento, este deveria ser objeto de decisão e de, caso entendesse o M. Juiz que era necessário, serem solicitados à parte os esclarecimentos necessários.»
Sustenta o Autor que o juiz do tribunal da 1.ª instância, ao constatar que a petição inicial era omissa, em termos de acervo fáctico necessário à eventual procedência da pretensão por ele formulada contra a Ré, deveria ter lançado mão do disposto no artigo 27.º, alínea b) do Código do Processo do Trabalho (o mesmo, quer nas suas alegações, como conclusões, faz uma incorreta alusão ao artigo 27.º-A, que respeita à mediação, quando pretende fazer menção ao artigo 27.º, alínea b) do mesmo diploma legal, como decorre, inequivocamente, da seguinte afirmação constante de fls. 5 (fls. 326 dos autos) das suas alegações: «Assim, não tendo o M. Juiz a quo notificado as partes (artigo 27.º-A do Código do Trabalho), até à audiência de discussão e julgamento, para completar ou corrigir os articulados, sempre deveria, em cumprimento do artigo 72.º do Código do Trabalho a atendendo a que no decurso do julgamento surgiram factos relevantes para a boa decisão da causa, tomá-los em consideração»).  
O artigo 27.º, alínea a) do Código do Processo do Trabalho determina que “o juiz deve, até à audiência de discussão e julgamento: b) Convidar as partes a completar e a corrigir os articulados, quando no decurso do processo reconheça que deixaram de ser articulados factos que podem interessar à decisão da causa, sem prejuízo de tais factos ficarem sujeitos às regras gerias sobre contraditoriedade e prova”. (cf., quanto ao alcance desta disposição, que tem redação idêntica à da alínea c) do artigo 29.º do Código do Processo do Trabalho de 1981, Alberto Leite Ferreira, “Código do Processo do Trabalho Anotado”, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 1996, páginas 152 a 154 e Carlos Alegre, “Código do Processo do Trabalho Anotado e Atualizado - Decreto-Lei n.º 38/2003”, 6.ª Edição, 2004, páginas 119 e 120).
Tal omissão de convite ao aperfeiçoamento, nos termos e para os efeitos do artigo 27.º, alínea b) do Código do Processo do Trabalho, traduz-se numa nulidade processual secundária, conforme enunciada nos artigos 201.º e 205.º do Código de Processo Civil que, caso não seja arguida oportunamente pelo demandante, implica a sua sanação.
No sentido dessa qualificação jurídica, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/10/2006, processo n.º 1731/06 - 4.ª Secção, em que foi relatora a Juíza - Conselheira Maria Laura Leonardo, publicado em www.dgso.pt (Sumário):     
I - A omissão do juiz consistente em não ter convidado o autor a completar e corrigir a petição em despacho pré-saneador - art.º 27.º, al. b) do CPT e 508.º do CPC - é suscetível de produzir nulidade nos termos do art.º 201.º do CPC, a arguir no tribunal da 1.ª instância onde foi cometida e no prazo do art.º 205.º do mesmo diploma.
Também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/10/2008, processo n.º 08S1536, em que foi relator o Juiz - Conselheiro Sousa Peixoto, publicado em www.dgso.pt (Sumário) sustenta o seguinte, quanto a tal nulidade:
“6. O não cumprimento pelo juiz do dever que lhe é imposto de convidar as partes a aperfeiçoar os articulados traduz-se na omissão de um ato processual, suscetível de produzir nulidade, por poder influir no exame e na decisão da causa (art.º 201.º, n.º 1, do CPC).
7. Tal nulidade reveste natureza processual e a sua arguição tem de ser feita junto do tribunal onde foi cometida, no prazo previsto no art.º 205.º, n.º 1, do CPC, sendo absolutamente descabida a sua invocação em sede de recurso, uma vez que os recursos têm por objeto as decisões judiciais (art.º 676.º, n.º 1, do CPC).”

O Professor José Alberto dos Reis, no seu “Comentário ao Código de Processo Civil”, Volume II, página 507 a 510, a este respeito, afirma o seguinte: “a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou a reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente.
Eis o que a jurisprudência consagrou nos postulados: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se (…)”.
Impõe-se trazer de novo à colação, a propósito da clássica doutrina sustentada pelo Professor Alberto dos Reis e da sua aplicação prática, o primeiro Aresto do Supremo Tribunal de Justiça acima identificado, quando afirma, na segunda conclusão do seu Sumário:
«II - Mas se a violação da norma processual se consubstanciar no facto de o tribunal de 1.ª instância ter dispensado a audiência preliminar, onde o poder - dever de convite ao aperfeiçoamento podia ser exercido, conhecendo, de seguida, do mérito da ação, então porque a nulidade já estaria coberta por uma decisão judicial, o meio adequado para reagir seria o recurso e não a arguição de nulidade.»
Será que o recorrente podia suscitar a questão aqui em apreço, como o veio a fazer, nas suas alegações de recurso ou tinha de o fazer previamente perante o tribunal da 1.ª instância, mediante requerimento próprio e autónomo, tendo em atenção que os presentes autos conheceram a realização, em 12/09/2011, da Audiência de Discussão e Julgamento (fls. 290 a 295), a correspondente Decisão sobre a Matéria de Facto Provada (e não provada), datada e notificada em 21/09/2011, conforme ressalta de fls. 304 e seguintes, bem como, finalmente, a sentença de fls. 309 e seguintes, proferida em 7/10/2011?
A primeira dúvida que pode aqui ser colocada é a de saber a partir de que momento é que podia o Autor arguir a aludida nulidade consistente na omissão de convite ao aperfeiçoamento, conforme o estatuído no artigo 27.º, alínea b) do Código do Processo do Trabalho?
A questão suscitada não é de resposta tão simples e esquemática como, à primeira vista, parece, pois não se nos afigura lógico nem razoável exigir tal arguição nos 10 dias contados desde o início da Audiência de Discussão e Julgamento pois, em regra - a não ser que haja uma expressa declaração judicial nesse sentido -, a parte não sabe se o juiz considera ou não sua alegação dos factos suficiente, para efeitos de preenchimento da causa ou causas de pedir invocadas, o mesmo se podendo dizer, com as devidas adaptações, no que toca à leitura da própria Decisão sobre a Matéria de Facto.    
Pensamos, assim, que a parte afetada só com a notificação da sentença final, é que se apercebe, por um lado, da improcedência da sua pretensão formulada contra o réu (no caso dos autos, relativa ao trabalho suplementar reclamado pelo Autor) e dos fundamentos para tal decisão (inexistência de factos), bem como do incumprimento do poder/dever que impunha ao julgador uma atuação adjetiva diversa daquele que o mesmo adotou (prévio convite ao aperfeiçoamento da petição inicial até ao início da Audiência de Discussão e Julgamento).
Chegados aqui, importa saber se a sentença final dá, de alguma forma, cobertura, nos moldes doutrinais e jurisprudenciais já acima enunciados, a tal nulidade secundária, assumindo-a e justificando-a juridicamente, julgando nós que a resposta a tal essa nova questão tem de ser negativa, o mais que não seja por o poder/dever de convite ao aperfeiçoamento do juiz se ter esgotado em momento processualmente diverso e anterior (à boca da Audiência de Julgamento).
Aprofundando a questão, dir-se-á que nada impedia o Autor de arguir tal nulidade dentro do prazo de 10 dias contado a partir da notificação da sentença final (artigos 201.º e 205.º do Código de Processo Civil) e, caso a mesma viesse a ser indeferida, interpor recurso de agravo (e não de apelação) do correspondente despacho, em paralelo com o recurso de apelação da sentença final, conforme se mostra expressamente previsto nos artigos 735.º e 736.º do Código de Processo Civil (na sua redação anterior à reforma dos recursos) e que, por força, da manutenção dessas duas espécies de recursos no quadro do Código do Processo do Trabalho, têm de ser aqui aplicadas.
O Autor, numa segunda linha de argumentação, chama ainda à liça o regime constante do artigo 72.º, número 1, do Código do Processo do Trabalho, por entender que o Tribunal do Trabalho deveria ter dado como assentes outros factos (que, naturalmente, não foram alegados pelas partes) que, sendo complementares dos articulados e dados como assentes, também deveriam ter sido considerados.    
 Alberto Leite Ferreira, obra e local citados, afirma o seguinte acerca da ligação que pode ser estabelecida entre o artigo 27.º, alínea b) - antes, alínea c) do artigo 29.º do Código do Processo do Trabalho de 1981 - e o artigo 72.º - antes, artigo 66.º do anterior Código do Processo do Trabalho -, ambos do Código do Processo do Trabalho de 1999: “IV - Apesar da doutrina expressa na alínea c) do artigo em nota, pode o juiz não ter utilizado, até à audiência de discussão e julgamento, o dever que lhe é imposto de convidar a parte a completar e a corrigir o seu articulado com a alegação de factos que, no decurso do processo, se reconheceu serem de interesse para a decisão da causa.
Ainda que tal aconteça, não está o julgador impedido de os quesitar na audiência de julgamento, nos termos do n.º 1 do artigo 66.º do presente Código”. 
Ora, não só a circunstância do Autor não ter vindo suscitar essa matéria no lugar e através do instrumento processual próprio - impugnação da Decisão sobre a Matéria de Facto, nos termos e para os efeitos dos artigos 685.º- e 712.º do Código de Processo Civil, como a circunstância da prova testemunhal não ter sido alvo de oportuno registo-áudio, impede este tribunal de recurso de analisar a problemática em presença nesta outra vertente (julgamos que o não cumprimento do disposto no artigo 72.º do Código do Processo do Trabalho tem de ser abordado em sede de recurso de Apelação, na sua vertente fáctica, mas ainda que assim não fosse e se encarasse tal omissão igualmente como uma nulidade secundária - artigos 201.º e 205.º do Código de Processo Civil -, certo é que a mesma se teria sanado, dado não ter igualmente sido invocada no prazo de 10 dias após o seu conhecimento e que terá ocorrido, pelo menos, com a notificação da sentença, caso não se possa presumir o mesmo, no dia 21/09/2011, com a leitura daquela Decisão sobre a Matéria de Facto).
Logo, este recurso tem de ser julgado improcedente quanto a esta parte, pelos fundamentos expostos.         
     
F - TEMPOS DE TRABALHO E DE DESCANSO - ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA PRESTAÇÃO LABORAL DO AUTOR

Considerando que o vínculo laboral dos autos teve início em 1 de Junho de 2002 e o seu fim em 6 de Dezembro de 2007, temos de ter em atenção, como regime legal regulador do tempo de trabalho e de repouso, o derivado dos artigos 5.º (ainda que devidamente conjugado com o artigo 1.º da Lei n.º 21/96, de 23/07), 6.º, 7.º, 8.º, 10.º a 15.º, 35.º a 40.º, 44.º a 48.º do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27/09, artigos 1.º a 6.º do Decreto-Lei n.º 73/98, de 10/11 e, já no âmbito do Código do Trabalho de 2003, os artigos 155.º a 159.º, 162.º, 163.º e 170.º a 179.º.     
O Professor João Leal Amado, em “Contrato do Trabalho», 2.ª Edição, Janeiro de 2010, Publicação conjunta de Wolters Kluwer Portugal e Coimbra Editora, páginas 271 a 273, ainda que no quadro do atual Código do Trabalho, afirma o seguinte acerca das noções de tempo de trabalho e tempo de repouso e dos limites constitucionais e legais à sua fixação:      
«Quando celebra um contrato de trabalho, o trabalhador não vende o seu corpo ao empregador. Nem, decerto, a sua alma. Mas talvez se possa dizer que aquele vende o seu tempo, parte do seu tempo. Recor­dem-se as belas palavras de FERNANDO PESSOA: «O patrão Vasques. Tenho, muitas vezes, inexplicavelmente, a hipnose do patrão Vasques. Que me é esse homem, salvo o obstáculo ocasional de ser dono das minhas horas, num tempo diurno da minha vida?» [4] Compreende-se, por isso, que a ordem jurídica se preocupe com esse tempo alienado, com determinar que tempo será esse e quanto tempo será esse. A este propósito, devemos começar pela CRP: todos os trabalhadores têm direito «ao repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas», lê-se no seu art.º 59.º, n.º 1, al. d); e o n.º 2, al. b), do mesmo preceito acrescenta incumbir ao Estado «a fixação, a nível nacional, dos limites da duração do trabalho». Trata-se, aliás, de preocupações que acompanham o Direito do Trabalho desde o seu nascimento: limitar o tempo de trabalho, proteger o equilíbrio físico e psíquico do trabalhador, tutelar a sua saúde, garantir períodos de repouso para este, salvaguardar a sua autodisponibilidade, assegurar a conciliação entre o trabalho e a vida pessoal e familiar - conciliação esta que surge como um desiderato constitucional, nos termos do art.º 59.º, n.º 1, al. b), da CRP, analisando-se num dos deveres a cargo do empre­gador na relação laboral (art.º 127.º, n.º 3, do CT, segundo o qual «o empregador deve proporcionar ao trabalhador condições de trabalho que favoreçam a conciliação da atividade profissional com a vida fami­liar e pessoal») -, enfim, criar e preservar a própria noção de tempo livre, de tempos de não trabalho durante a vigência do contrato que não se reduzam aos períodos indispensáveis ao sono reparador.
Nesta matéria, a lei assenta no binómio tempo de trabalho/período de descanso, sendo certo que o tempo de trabalho compreende dois módulos diferentes: o tempo de trabalho efetivo (art.º 197.º, n.º 1) e os períodos de inatividade equiparados a tempo de trabalho (as interrupções e os intervalos previstos no n.º 2 do art.º 197.º); por sua vez, aquele tempo de trabalho efetivo corresponde, não apenas ao desem­penho da prestação («período durante o qual o trabalhador exerce a atividade» ), mas também ao tempo de disponibilidade para o trabalho («ou permanece adstrito a realização da prestação»). O período de descanso é recortado negativamente pela lei, consistindo, nos termos do art.º 199.º, em todo aquele que não seja tempo de trabalho.
Depois de esclarecer o que se entende por tempo de trabalho e por período de descanso, a lei procede à organização da dimensão temporal da prestação recorrendo a um conjunto de conceitos operatórios básicos, dos quais cumpre destacar os dois que seguem:
i) Período normal de trabalho (art.º 198.º) - tempo de trabalho que o trabalhador se obriga a prestar, medido em número de horas por dia e por semana (o quantum da prestação, a determinação do volume de trabalho)[5];
ii) Horário de trabalho (art.º 200.º) - determinação das horas de início e termo do período normal de trabalho diário e do inter­valo de descanso, bem como do descanso semanal (o quando da prestação, a distribuição das horas que compõem o período nor­mal de trabalho ao longo do dia)[6]»
O Apelante reconduz a sua prestação de serviço diária e semanal entre as 17,30 horas e a 1,00 horas da manhã, em 45 horas semanais de trabalho efetivo (cf. artigo 45.º da Petição Inicial), realidade temporal que só é confirmada em parte pela Ré, dado referir no artigo 68.º da sua contestação que a prestação funcional e efetiva do Autor só se estendia por 39 horas semanais, dado ter uma hora diária para tomar a sua refeição.
O tribunal recorrido acabou por dar como provado o Ponto 6. (“O Autor tinha um horário de trabalho com entrada às 17h30 e saída às 01h, com meia hora de intervalo para jantar.”) que, embora não totalmente esclarecedor, por não especificar em quantos dias por semana tal acontecia, permite-nos presumir que tal ocorria em 6 dias por semana, quando confrontado e conjugado com a referida alegação do Autor e da Ré (45 horas e 39 horas semanais de trabalho, respetivamente, considerando o primeiro 7,5 horas x 6 dias e a segunda 6,5 horas x 6 dias, por retirar uma hora diária para a refeição e descanso daquele) e com os documentos juntos por esta última a fls. 209 e seguintes - onde  o trabalhador tem, em regra, um dia de descanso por semana, surgindo, o domingo como «dia de folga» com bastante frequência.
Este quadro fáctico permite-nos preencher suficientemente a noção de «período normal de trabalho», a saber, «o tempo de trabalho que o trabalhador se obriga a prestar, medido em número de horas por dia e por semana», bem como o conceito de “horário de trabalho”, ou seja, a «determinação das horas de início e do termo do período normal de trabalho diário, bem como dos intervalos de descanso» (artigo 11.º, número 1 do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27/09 e 159.º do Código do Trabalho de 2003), delimitando o horário de trabalho, dessa forma, os «período(s) de trabalho diário e semanal» (número 2 do artigo 159.º)
Chegados aqui e face à circunstância do trabalhador, durante os referidos 6 dias por semana e as 7 horas e 30 minutos diários, ter um intervalo em cada dia de meia hora para jantar, importa saber se esses 30 minutos devem ser qualificados como tempo de trabalho ou tempo de descanso (intervalo de descanso).
Tal implica que se cruzem os factos dados como assentes com as definições jurídicas de tempo de trabalho e de tempo e de intervalo de descanso, sendo certo que, quer no quadro da LCT e legislação complementar, como do Código do Trabalho de 2003.º (cf. disposições e diplomas legais já antes identificadas), os trabalhadores, ao lado das realidades inequívocas ou puras de trabalho ou repouso efetivo, sempre foram confrontados com situações ambíguas ou mistas, em que estão simplesmente na disponibilidade do empregador sem estarem a ter qualquer desempenho funcional concreto (que poderá mesmo não ocorrer) - ver, acerca desta problemática, Professor Júlio Manuel Vieira Gomes, em “Direito do Trabalho - Relações Individuais de Trabalho”, Volume I, Coimbra Editora, Março de 2007, páginas 651 e seguintes, com especial incidência para as páginas 655 e seguintes, bem como a doutrina e jurisprudência aí referidas, sendo parte desta última emanada do TJCE, com referência às sucessivas Diretivas Comunitárias relativas às matérias dos tempos de trabalho e de descanso.
São considerados, para o que aqui nos interessa, como “tempo de trabalho”, «os intervalos para refeição em que o trabalhador tenha de permanecer no espaço habitual de trabalho ou próximo dele, à disposição da entidade empregadora, para poder ser chamado a prestar trabalho normal em caso de necessidade” (artigo 2.º, número 2, alínea d) da Lei n.º 73/98, de 10/11) ou «os intervalos para refeição em que o trabalhador tenha de permanecer no espaço habitual de trabalho ou próximo dele, adstrito à realização da prestação, para poder ser chamado a prestar trabalho normal em caso de necessidade» (artigo 156.º, alínea d) do Código do Trabalho de 2003), impondo-se ainda atender à regulamentação coletiva aplicável, que a esse propósito, foi determinando na cláusula 33.ª, número 3 (CCT de 2001) e depois 34.ª, número 3 (CCT de 2004), o seguinte: “O tempo destinado às refeições, quando tomadas nos períodos de trabalho, será acrescido à duração deste e não é considerado na contagem do tempo de descanso, salvo quando este seja superior a duas horas.”.
Interessa também atentar nas duas seguintes cláusulas do CCT de 2004 (na versão anterior do CCT, de 2001, eram as cláusulas 81.ª, número 2 e 85.ª, número 1):

Cláusula 82.ª
Direito à alimentação
1 - (…)
2 - Nos estabelecimentos onde se confecionem ou sirvam refeições, a alimentação será fornecida, obrigatoriamente, em espécie; nos demais estabelecimentos, será substituída pelo seu equivalente pecuniário.
Cláusula 86.ª
Tempo destinado às refeições
1 - O tempo destinado às refeições é de quinze minutos para as refeições ligeiras e de trinta minutos para as refeições principais.

A factualidade que importa considerar restringe-se ao já transcrito Ponto 6., convindo ainda na atividade da Ré (restauração) e da categoria do Autor (Chefe de Cozinha).
Ora, da conjugação do regime legal e convencional acima reproduzido com tais factos (sendo crucial a circunstância da meia hora para jantar do Autor se integrar no período normal diário de trabalho), resulta a classificação do tempo despendido na refeição como tempo de trabalho.
Logo, o recorrente laborava para a Ré 7 horas e 30 minutos e 45 horas semanais de tempo efetivo ou equiparado de trabalho (cf. com interesse, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/11/2008, processo n.º 08S0930, relator: Sousa Grandão, publicado em www.dgsi.pt). 
 
G - TRABALHO SUPLEMENTAR - REGIME LEGAL E CONVENCIONAL APLICÁVEL

Definido o tempo de trabalho efetivo ou considerado juridicamente como tal que era, diária e semanalmente, assumido pelo Autor, tratemos de averiguar se parte dele pode ser legalmente reconduzido a trabalho suplementar. 
Face ao começo e término da prestação laboral, tenha-se em atenção o que determinavam, sucessivamente, os artigos 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 1, 4.º, n.º 1, 5.º, n.º 1, 7.º e 9.º do Decreto-Lei n.º 421/83 de 2/12 e 197.º a 200.º e 202.º a 204.º do Código do Trabalho de 2003, no que respeita ao trabalho suplementar, estipulando os mesmos, na parte que importa, o seguinte:

Artigo 2.º
(Noção)
1 - Considera-se trabalho suplementar todo aquele que é prestado fora do horário de trabalho.
2 - (…)
Artigo 3.º
(Obrigatoriedade)
"1 - Os trabalhadores estão obrigados à prestação de trabalho suplementar, salvo quando, havendo motivos atendíveis, expressamente solicitem a sua dispensa.
2 - (…)
Artigo 4.º
(Condições)
1 - O trabalho suplementar pode ser prestado quando as empresas tenham de fazer face a acréscimos eventuais de trabalho que não justifiquem a admissão de trabalhador com carácter permanente ou em regime de contrato a prazo.
2 - (...)
Artigo 197.º
Noção
1 - Considera-se trabalho suplementar todo aquele que é prestado fora do horário de trabalho.
2 - (…)
Artigo 198.º
Obrigatoriedade
O trabalhador é obrigado a realizar a prestação de trabalho suplementar, salvo quando, havendo motivos atendíveis, expressamente solicite a sua dispensa.
Artigo 199.º
Condições da prestação de trabalho suplementar
1 - O trabalho suplementar só pode ser prestado quando a empresa tenha de fazer face a acréscimos eventuais e transitórios de trabalho e não se justifique a admissão de trabalhador.   

Este é o regime legal que, em conjugação com as cláusulas pertinentes da Regulamentação Coletiva de Trabalho (cf. cláusulas 39.ª a 42.ª, no CCT de 2001 e 40.ª a 43.ª no CCT de 2004), serve de pano de fundo à análise do cerne do presente recurso.

H - LITÍGIO DOS AUTOS

Importa, antes de mais, abordar uma questão prévia que se prende com o que o Tribunal do Trabalho de Lisboa afirmou, quanto aos factos não provados: «Ficaram por provar todos os demais factos constantes dos articulados das partes, nomeadamente e com especial relevância para a causa, que a gerência da Ré desse ordens ao cozinheiro sem conhecimento do Autor, que o Autor não tivesse intervalo para refeição ou que este fosse de 1 hora, bem como qualquer trabalho suplementar que tivesse sido prestado».
Esta declaração final parece, desde logo, fechar qualquer discussão em torno da última problemática trazida a este tribunal de recurso pelo Apelante.
Mas, sem prejuízo de nos acharmos face a uma afirmação conclusiva e sem substrato mínimo material, não deixa de ser também contraditória com a circunstância de ter sido dado como provado o Ponto 6., que, em conjugação com a documentação junta pela Ré aos autos e aposição assumida pelas partes nos articulados, permitiu-nos concluir pela prestação semanal por parte do Autor de 45 horas de trabalho efetivo ou equiparado.
Ora, a ser assim e atendendo ao regime decorrente da Lei n.º 21/96, de 23/07, que impõe uma jornada semanal de 40 horas, e que veio depois a ser secundado pelo número 1 do artigo 163.º do Código do Trabalho de 2003 e pelas cláusulas 32.ª e 33.º dos CTT de 2001 e 2004, descortinamos aqui uma prestação de 5 horas acima desse período normal de trabalho.
Dir-se-á que para o regime legal acima referenciado só é trabalho suplementar aquele que extravasa o horário de trabalho e não o período normal de trabalho, o que significa que as cinco horas executadas pelo Autor e que excedem as tais 40 horas semanais nunca poderiam ser encaradas como tal, por estarem normalmente inseridas no horário de trabalho acordado entre as partes ou definido pela entidade empregadora (cf. artigos 11.º do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27/09 e 170.º do Código do Trabalho de 2003).
Julgamos que tal argumento, ainda que aparentemente conforme com o texto da lei (não sendo despiciendo referir que antes do Decreto-Lei n.º 421/83, de 2/12, como mesmo depois da publicação do Código do Trabalho de 2003, em alguma regulamentação coletiva, o trabalho suplementar era referenciado como aquele que excedia o período normal de trabalho - cf., a este respeito, Monteiro Fernandes, “Direito do Trabalho”, 13.ª Edição, Almedina, páginas 362 e seguintes), não resiste a uma análise mais rigorosa e objetiva do correspondente regime legal.
Uma posição como a exposta, levada ao extremo, permitiria a definição de horários de trabalho de 50, 60 ou mais horas, pelo valor da retribuição normal, num retrocesso ao trabalho praticado nos primórdios da Revolução Industrial, que não é moral, nem humana, nem juridicamente concebível ou tolerável.
É manifesto que o horário de trabalho não existe nem é definido no vazio ou só por si, tendo-o que ser em função dos limites temporais impostos pelo legislador (nem que seja, em última linha, o constitucional), de onde emergem, desde logo, aqueles fixados para os diversos períodos normais de trabalho juridicamente admitidos (e que, como vimos, na situação dos autos, é de 8 horas diárias e 40 horas semanais), bem como para a duração máxima do próprio trabalho suplementar em si.
Caso a Ré não pretendesse retribuir essas cinco horas semanais prestadas para além das 40 horas semanais como trabalho suplementar, teria que acordar expressamente com o Autor num acréscimo de remuneração que visasse remunerar tal trabalho a mais ou noutro tipo de compensação (dias de descanso ou dias de férias) - e alegar e provar depois tal acordo, o que não aconteceu nos autos -, dado que se nos afigura vedado, na hipótese dos autos, o recurso ao regime da isenção de horário de trabalho (IHT), conforme previsto nos artigos 13.º a 15.º do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27/09 e 177.º e 178.º do Código do Trabalho.
Chamemos em auxílio da nossa posição o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/12/2009, processo n.º 713/05.0TTGMR.S1, relator: Vasques Dinis, publicado em www.dgis.pt, que, em parte do Sumário, sustenta o seguinte:
III - No âmbito da vigência do Decreto-Lei n.º 421/83, de 2 de Dezembro, para que o trabalhador tenha direito à retribuição por trabalho suplementar, basta que se prove que ele existiu e que foi efetuado com o conhecimento e sem oposição do empregador, prova que se mostra feita quando se demonstra o cumprimento continuado, nas instalações da empregadora, ao longo de vários anos, de um horário de trabalho que excedia os limites máximos dos períodos de trabalho, diário e semanal, previstos na lei.
Deparamo-nos então com um quadro fáctico e jurídico em que, por determinação expressa da entidade empregadora, o Autor fazia, habitual e semanalmente, 5 horas para além do que estava legalmente obrigado, num quadro de habitualidade e normalidade que justifica a sua alegação de que, por ano, fazia 5 horas x 48 semanas, de trabalho suplementar, dado esse trabalho suplementar integrar-se, fazer parte da própria estrutura dos período e horário normais de trabalho.
É portanto difícil, num cenário como o descrito, sustentar que nenhuma alegação e prova foram feitas de que o Autor tinha prestado trabalho suplementar, como faz o tribunal da 1.ª instância.
Naturalmente que não se desconhece a jurisprudência dos nossos tribunais superiores (conforme ressalta do excerto da sentença recorrida, que acima se deixou reproduzida) no que concerne à necessidade de alegação e prova de diversos factos, considerados essenciais e constitutivos da causa de pedir referente à prestação de trabalho suplementar e ao direito à perceção da correspondente (horário de trabalho, período normal de trabalho, remuneração auferida ao longo do tempo, discriminação do trabalho prestado «fora do horário de trabalho» para além da sua determinação pelo empregador, de forma expressa ou tácita, ou, pelo menos, aceitação do mesmo, a posteriori) - ver, ainda, quanto aos requisitos enunciados habitualmente pelos nossos tribunais superiores, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16/09/2008, processo n.º 08S1032, relator: Sousa Grandão e de 7/01/20010, Processo n.º 459/05.0TTFAR.S1, relator: Vasques Dinis, ambos publicados em www.dgsi.pt.
Impõe-se, todavia, realçar que tal doutrina (que reputamos excessiva, por vezes, e por outro, incompreendida por alguns dos seus aplicadores) se justifica para vínculos laborais em que o trabalho suplementar é irregular, inconstante, imprevisível, reclamando, por tal motivo, uma criteriosa, concreta e discriminada alegação e prova das horas e dias em que o mesmo foi executado.
Numa hipótese como a desta ação, em que a parte do trabalho que é suplementar tem um carácter intrínseco à normal prestação de trabalho contratada acordada, apresentando-se como permanente e essencial ao cumprimento do inicialmente acordado entre as partes, há como que uma (permita-se-nos a imprecisão jurídica) quase inversão do ónus da prova, “competindo” antes ao empregador demonstrar as falhas ou lacunas em tal normalidade ou habitualidade.       
Julgamos, portanto, que neste condicionalismo muito especial, está o Autor desonerado de alegar e provar com o rigor e exigência impostos pelos nossos tribunais superiores alguns desses pressupostos da relevância jurídica do trabalho suplementar, julgando nós que a alegação e prova do seu período normal de trabalho diário e semanal, bem como do seu invariável horário de trabalho ao longo de 48 semanas por ano, é suficiente para se concluir pelo desempenho de trabalho para além das 40 horas semanais, com um limite máximo de 5 horas por semana.
O facto de tal acontecer por acordo expresso entre as partes e no manifesto interesse da Ré preenche plenamente a exigência que a nossa jurisprudência faz de que o trabalho suplementar tem de ser expressa e antecipadamente ordenado (nas palavras do último Aresto citado pela decisão impugnada).  
Também se nos afigura, por isso, excessiva a posição assumida pelo tribunal recorrido (nota de rodapé acima transcrita) no sentido de estarmos face a uma situação de ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir, pois o Autor alegou um quadro mínimo fáctico (como aliás já deixamos acima) que não permite qualificar ou reconduzir a eventual insuficiência de alegação a essa nulidade principal prevista no artigo 193.º, números 1 e 2, alínea a) do Código de Processo Civil.          
Entendemos, que, na situação particular dos autos, mostram-se reunidos os elementos factuais constitutivos mínimos da causa de pedir do pedido de reconhecimento da existência de trabalho suplementar e da sua correspondente remuneração.
Logo, o Autor no sexto dia de cada semana de trabalho, presta trabalho suplementar nas cinco últimas horas desse período «normal» de trabalho semanal de 45 horas (ao contrário do que o recorrente afirma, não existe a ultrapassagem diária do período normal de 8 horas, dado o mesmo executar somente 7,5 horas diárias, só sendo excedidas as 40 horas semanais no sexto dia de cada período de 7 dias e com referência às últimas cinco horas dessa jornada de trabalho).
Ainda que não se concorde com a posição que deixámos acima exposta, sempre se poderá chamar à colação, numa outra perspetiva da problemática em análise e relativamente a um caso idêntico aos dos autos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/04/2012, processo n.º 229/09.6TTBRR.L1.S1, relator: Fernandes da Silva, publicado em www.dgsi.pt (Sumário), sustentou o seguinte:
I - A Convenção Coletiva, enquanto modalidade dos Instrumentos de Regulamentação Coletiva de Trabalho negociais, constitui uma fonte específica do contrato de trabalho – artigos 1.º e 2.º, do Código do Trabalho de 2003.
II - Na relação CCT/contratos individuais de trabalho, as cláusulas de feição normativa que as integram constituem um mínimo de condições de trabalho, que apenas podem ser afastadas/alteradas na contratação individual se resultarem efetivamente em melhoria de condições para os trabalhadores, conquanto que daquelas disposições não resulte o contrário – artigos 4.º e 531.º do Código do Trabalho de 2003.
III - Dispondo o CCT que o período normal de trabalho tem a duração de sete horas por dia e trinta e cinco horas por semana, e considerando-se trabalho suplementar o prestado fora do período normal de trabalho, é nulo qualquer acordo que estabeleça um horário superior, porque obviamente menos favorável para o trabalhador.
IV - Pese embora, após a revisão do CCT, publicada em 8 de Janeiro de 2005, nele esteja prevista a possibilidade de o período de trabalho normal diário ser ampliado, mediante acordo expresso do trabalhador, são, in casu, irrelevantes os acordos firmados nesse sentido com os autores, na medida em que emitidos em data anterior àquela, razão pela qual lhes é devido o pagamento, a título de trabalho suplementar, da hora efetivamente prestada, diariamente, que esteja para além das 7 horas determinadas pelo CCT.   
Segundo essa muito recente jurisprudência do nosso mais alto tribunal, o acordo firmado entre as partes é, de qualquer forma, nulo, na exata medida em que pretende firmar um horário de trabalho superior ao legal e convencionalmente permitido, havendo que o reduzir (artigos 14.º da LCT, 114.º do Código do Trabalho de 2003 e 292.º do Código Civil) ou fazer substituir por este outro (de 40 horas semanais), o que nos reconduz à mesma conclusão que já acima deixámos exarada: o Apelante prestava semanalmente e em regra 5 horas para além do seu horário de trabalho, ou seja, executava nos moldes já acima definidos, 5 horas por semana de trabalho suplementar. 

I – INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO        

A matéria de facto dada como provada com interesse para esta matéria do trabalho suplementar é, para além da contida no já transcrito Ponto 6., ainda a seguinte: 
«12. O Autor por vezes saía antes da hora de saída e, outras, para além desta.
13. Ao longo do contrato de trabalho, o Autor esteve diversos períodos sem trabalhar por motivo de baixa por doença.
14. Era o Autor quem registava os períodos de trabalho que efetuava e os entregava à Ré, bem como as horas extra e as compensações das folgas, liquidando a Ré a respetiva remuneração de acordo com aquele registo.»
A não demonstração, dia a dia, semana a semana, mês a mês, ano a ano, das horas de trabalho executadas – em rigor, das que não foram prestadas, atento o que já acima dissemos e a posição global e não concretizada, assumida pela Ré na sua contestação –, bem como de todos os montantes remuneratórios auferidos, ao impedir o cumprimento do artigo 75.º do Código do Processo do Trabalho, acarreta para o Apelante a relegação para incidente de liquidação da inerente quantificação dos mesmos e correspondente cálculo da retribuição devida pela Ré, nos termos dos artigos 661.º, número 2, e 378.º e seguintes do Código de Processo Civil (sendo exigentes no estabelecimento das fronteiras que separam a improcedência dos pedidos, pela não alegação e prova dos factos enformadores do correspondente direito, da possibilidade de remeter para momento posterior, ao abrigo deste regime legal, a sua determinação quantitativa, pensamos que, no litígio dos autos, estão reunidos os pressupostos mínimos que permitem ao Autor cruzar essa linha de procedência parcial e ilíquida da sua pretensão).               
O já referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/12/2009, processo n.º 713/05.0TTGMR.S1, relator: Vasques Dinis, sustenta isso mesmo, ao afirmar o seguinte noutra parte do seu Sumário:
“IV – Na falta de prova dos concretos dias em que foi prestado o trabalho suplementar e do exato valor da retribuição, relevante para efeito do cálculo do montante em dívida, nada impede que, ao abrigo do disposto no artigo 661.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, seja proferida condenação ilíquida, relegando-se a liquidação para momento ulterior à prolação da sentença.”
Também o Juiz-Conselheiro Carlos Valverde, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/02/2011, de que foi relator, no processo n.º 25/07.5TTFAR.E1.S1, publicado também em www.dgsi.pt, refere o seguinte no segundo ponto do seu Sumário: 
“II – Resultando provado que a trabalhadora prestou trabalho suplementar, mas fracassando a prova dos dias e do número exato de horas em que trabalhou, para além do período normal de trabalho, deve o respetivo apuramento – e, consequentemente, o apuramento dos valores a esse título devidos – ser relegado para posterior liquidação, ao abrigo do disposto no art.º 661.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.”  
Logo, dado não possuirmos todos os elementos de facto necessários à quantificação, com exatidão e rigor, da remuneração devida ao Autor em virtude da execução do trabalho suplementar ao longo dos cinco anos e cinco meses de contrato de trabalho, relega-se a mesma para liquidação de sentença, nos termos dos artigos 661.º, número 1 e 385.º e seguintes do Código de Processo Civil.
Não se ignora o estatuído no artigo 381.º, número 2, do Código do Trabalho de 2003, quanto à exigência de documento idóneo para o trabalho suplementar vencido há mais de 5 anos, mas foi a própria Ré que juntou aos autos, como meio de prova das ausências do recorrente, as folhas mensais de registo do trabalho prestado preenchidas pelo Autor e entregues à entidade empregadora, sendo a própria a afirmar – como ficou, aliás, provado no Ponto 14. acima reproduzido - que era sobre elas que processava a retribuição mensal e o eventual trabalho suplementar (que não o dos autos, entenda-se!) a pagar-lhe.
Sendo este o (único!) sistema instituído pela entidade empregadora com o propósito de controlar e fiscalizar o trabalho normal e suplementar executado pelo trabalhador, tem o mesmo de ser encarado como documento idóneo para os efeitos previstos no número 2 do artigo 381.º de 2003, não se acompanhando, nessa medida, a posição defendida pelo Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 20/05/2009, no processo n.º 08S3536, em que foi relator o Juiz-Conselheiro Vasques Dinis, publicado em www.dgsi.pt.      
Sendo assim, o recurso de Apelação do Autor tem de ser julgado procedente nesta parte, com a subsequente alteração da sentença impugnada.                                       

IV – DECISÃO

Por todo o exposto, nos termos dos artigos 87.º, número 1, do Código do Processo do Trabalho e 713.º do Código de Processo Civil, acorda-se, neste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar procedente o presente recurso de apelação interposto por AA, nessa medida se decidindo alterar a sentença recorrida no que respeita à absolvição da Ré do pedido de liquidação do trabalho suplementar formulado pelo Autor, substituindo-se a mesma pela condenação da BB, LDA no pagamento ao Autor da remuneração correspondente ao trabalho suplementar pelo mesmo efetivamente prestado entre 1/07/2002 e 06/12/2007, a quantificar em incidente de liquidação, nos termos dos artigos 661.º, número 2 e 378.º e seguintes do Código de Processo Civil, não podendo tal quantificação exceder as 5 horas semanais e ultrapassar, em termos globais, o montante aqui peticionado de Euros 39.600,00, mantendo-se, em tudo o demais, a sentença recorrida.
*
Custas da ação a cargo de Apelante e Apelada na proporção do decaimento, fixando-se, provisoriamente, em metade, no que concerne à ação, a responsabilidade tributária das partes, sendo as custas devidas por força do presente recurso a cargo da Apelada, tudo nos termos do artigo 446.º, número 1 do Código de Processo Civil.

Registe e notifique.


Lisboa, 10 de Outubro de 2012     

José Eduardo Sapateiro
Sérgio Almeida
Jerónimo de Freitas
--------------------------------------------------------------------------------------
[1]
Acórdão de 05/02/2003, acessível em www.dgsi.pt.
[2]
Aliás, somos em crer ser a petição, nesta parte, inepta, por ausência de factos que suportem o pedido. Com efeito, como é hoje unanimemente entendido, o trabalho suplementar deve ser pedido com recurso aos dias e horas, estes convenientemente discriminados, em que foram prestados, expressa e antecipadamente ordenado pelo empregador, ou pelo menos que tenha sido por ele previsto e consentido.
[3]
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06/03/2002, acessível em www.dgsi.pt.   
 [4] «Livro do Desassossego, Obra essencial de Fernando Pessoa», I, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006, p. 46 (itálico meu).
[5]
Conceito que não deve ser confundido com o de período de funcionamento, consagrado no art.º 201.°: período de tempo diário durante o qual o estabelecimento pode exercer a sua atividade (período de abertura ou de laboração, consoante se trate de um estabelecimento de venda ao público ou de um estabelecimento industrial).
[6]
Sendo certo que o início e o termo do período normal de trabalho diário podem ocorrer em dias do calendário distintos, desde que consecutivos, como escla­rece o n.º 3 do art.º 200.º (pense-se, p. ex., em certas hipóteses de trabalho noturno)